janeiro 21, 2013

"Isto Não é um Filme", por Pedro Henrique Gomes

PICICA: "Provocar, claro, quer dizer: dobrar a própria arquitetura narrativa, estrutural e poética do cinema enquanto linguagem estética e simbólica (imaginária, por que não, se lembrarmos de Maffessoli e a representação dos sentimentos e dos ritos – que, no caso de Panahi e Mojtaba, é o cinema: uma religião). Neste caso, para além de ver um filme, nos resta a interação com as imagens e a projeção que fazemos (a partir) delas, criação de noções coerentes e não vulgares sobre a condição da arte e do artista. É o espectador que precisa ver as coisas, logo essas coisas que Panahi parece ter sempre enxergado, para bem além da encenação do filme dentro do filme, da contaminação dessas atmosferas reais e imaginárias que as imagens vão montando (as atividades do cotidiano transam com o registro e com a narração; a interação com a iguana – seu animal doméstico -, o café da manhã, um telefonema para saber como está a questão judicial; a conversa proibida no elevador)." 


Isto Não é um Filme

by Pedro Henrique Gomes

Jafar Panahi é o personagem que a câmera de Mojtaba Mirtahmasb vai filmar enquanto um filme é contado (narrado). Mas pode acontecer também o inverso (Mojtaba como personagem e Panahi como cineasta), com ambos na busca por imagens, tentando corporificá-las, expor a sangria que compõe e dita o ato de filmar. Isso estabelece a força do vídeo, colocando-o em franca evidência – ingenuamente, diríamos, o vídeo é mais democrático que a república. A questão é que Isto não é um Filme será dificilmente desconectado de sua relação com o mundo lá fora, como que desprovido de toda uma peculiaridade histórica e social que lhe atravessa. Aqui, eles narram o que não deveria ser narrado: mesmo a mais trivial das ficções pode ser inenarrável em regimes com tendência ao autoritarismo.

É uma questão que transcende a rigidez dos conceitos e desejos artísticos, é bem mais forte, vibrante e consciente do que meramente potencializar vozes e discursos no vazio de suas concepções políticas e sociais como fazem os cineastas pretensamente “políticos”, pois, antes de tudo, Panahi devolve a si mesmo o direito de narrar a partir de uma unidade estética (e aí, sim, política): ali está representado o espaço fílmico, local de trânsito da câmera que vai esquadrinhar o cinema possível, que é o resultado da desmistificação do processo criativo que Isto não é Filme mostra com fôlego. E mesmo o simples ato de sair de casa com uma câmera torna-se substancial para a organicidade política do filme. Mas antes de ser político (já que a política é sua forma, não seu conteúdo), ele é motivado politicamente e está plenamente inserido num contexto nacional de busca por direitos que explode as vontades egoístas do artista diante de seus objetos de trabalho. É mais que a representação (ou encenação) de uma história, pois é na iminência (e a revelia) da pressão coercitiva exercida pelo aparato estatal e através das formas de resistência a ele que urge a provocação que vemos na tela.

Provocar, claro, quer dizer: dobrar a própria arquitetura narrativa, estrutural e poética do cinema enquanto linguagem estética e simbólica (imaginária, por que não, se lembrarmos de Maffessoli e a representação dos sentimentos e dos ritos – que, no caso de Panahi e Mojtaba, é o cinema: uma religião). Neste caso, para além de ver um filme, nos resta a interação com as imagens e a projeção que fazemos (a partir) delas, criação de noções coerentes e não vulgares sobre a condição da arte e do artista. É o espectador que precisa ver as coisas, logo essas coisas que Panahi parece ter sempre enxergado, para bem além da encenação do filme dentro do filme, da contaminação dessas atmosferas reais e imaginárias que as imagens vão montando (as atividades do cotidiano transam com o registro e com a narração; a interação com a iguana – seu animal doméstico -, o café da manhã, um telefonema para saber como está a questão judicial; a conversa proibida no elevador).

O próprio Pahani diz que atuar e ler o roteiro para si não deveria causar problemas com a censura e com o andamento de seu processo – afinal, ele está proibido de fazer filmes, escrever roteiros e/ou sair do país, mas não há menção alguma quanto a ler e encenar. É como se a imagem de Mojtaba com a câmera sobre o ombro refletisse na lente dos óculos de Panahi não apenas sua profusão estética e dialética, mas sua função cosmopoética: assim, assistimos ao nascimento de uma mise en scène. Panahi monta o cenário do filme no tapete da sala. Mas mais que anunciar a salvação do cinema pela mise en scène ele busca entender seu funcionamento, seus mecanismos mais íntimos, sua construção lógica e a aproximação realizável do olhar e das coisas. Um fazer cinema sem fazer filmes.

Ele é mais comedido, mais dedicado a complexificar as pequenas coisas e explorá-las até o limite do esgotamento. Sua força reside plenamente na representação/encenação. Mais que meramente engendrar e sugerir um discurso crítico contra o regime totalitário iraniano, Isto Não é um Filme é a própria acepção da revolta sem aquela histeria de que parece se fazer valer alguns “cineastas políticos” do lado de cá mundo – ou mesmo entre os conterrâneos de Panahi e Mojtaba, como parece o caso de Asghar Farhadi (principalmente em A Separação) e Majidi Majidi (da fase posterior a A Cor do Paraíso).

(In Film Nist, Irã, 2011) De Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb. Com Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb.

Fonte: Tudo [é] Crítica

Nenhum comentário: