janeiro 18, 2013

Para Paulo de Tarso, o Paulo "Mamulengo", filósofo-artesão, criador do boneco do Armando da BICA



PICICA: Quinta-feira, 10 de janeiro, Bar do Armando. A Bica realizou seu primeiro esquenta na volta ao carnaval amazonense, depois de elaborado o luto pela perda do amado português Armando Soeiro Soares, patrono do carnaval mais escrachado da história do Amazonas. E que luto! Que elaboração!

Com Armando morto, houve quem quizesse por fim ao carnaval irreverente, que ganhou simpatia popular e entrou para o calendário da festividade momesca. É compreensível que a morte de um ente querido deixe todo mundo "despirocado", é de lei, mas mais alta é a potência da vida. Ou então nada se aprendeu em 28 anos da construção ético-política do novo processo de subjetivação que tomou conta de Manaus, para o qual a Bica contribuiu ao subverter a linguagem viciada das esferas social e política da cidade.

A multidão entendeu o recado e se fez contra-poder. Não um contra-poder qualquer, que almeja ocupar o lugar do poder decadente, mas um poder crítico - crítico e desconstrutivo -, capaz de misturar o político, o social, o econômico e o afetivo, sob o ponto de vista do desejo e da ousadia de sustentar um espaço de liberdade tão cara neste país.

É nesse espaço bioplítico - para lembrar Foucault - que a ordem hegemônica vem sendo recusada, forjando um percurso singular no carnaval amazonense em sua linha de fuga. Sustentar essa diferença não tem sido nada fácil. Que o diga o compositor Afonso Toscano, alvo de dois processos por vocalizar o sentimento da multidão, como se a judicialização do carnaval fosse impedimento para a irreprimível criação de novos valores reclamados por homens e mulheres que não tem necessidade só de pão.

É dessa potência que o carnaval da Bica do Armando, dado como morto, reterritorializa a comunidade dos sem comunidade, e posto que ela não coincide consigo mesma é inútil procurar nela alguma utilidade, salvo a recusa da servidão; nisso reside sua soberania.

Vale lembrar que a Bica surgiu no processo de luta pela redemocratização do país, na luta contra o regime militar, quando a linguagem havia sido sequestrada, ensejando múltiplas formas de resistência. Deixar a Bica morrer é contemporizar com o processo civilizatório que já nos quis adestrados e disciplinados.

Nesses 28 anos de existência da Bica, um grupo de homens e mulheres, que não reconheciam em política senão o valor da vida, traçaram entre a resistência e o poder uma linha de fuga que os libertassem da sujeição ao poder, sendo grande o desafio, até hoje, de não sucumbir, na luta por liberdades e direitos, aos encantos e à sedução do poder do qual se quer libertar. Até as pedras do ICHL - envolto até o pescoço com os clássicos da sociologia -, sabe que toda a potência que se autoriza a si mesma recusa toda a autoridade. O tema dá panos para manga.

Por isso, mesmo sabendo que a vida se basta e que não se precise do homem para resistir, quero prestar minha homenagem a um desses homens que vive na carne a resistência contra as formas de servidão que se manifestam em dois tipos de crença baseadas na verdade moral e na hieraquia de valores: a dos que destróem valores antigos para conservar a ordem estabelecida, abrindo mão de produzir algo novo; e a dos que se comprometem com um "tempo por vir", ao introduzir o intempestivo na comunicação entre sistemas vivos, como nos ensina Peter Pál Pelbart.

Paulo de Tarso, filósofo-artesão, é um destes sujeitos que encara o devir biopolítico não como o poder sobre a vida, mas como uma potência da vida. Quando entrou na Universidade Federal do Amazonas, o filóso-brincante, já tinha uma larga folha de prestação de serviços à cultura daqui e de além-floresta. Foi presidente do Cafca da Ufam, numa gestão pra lá de combativa. Fez história em defesa do serviço público de Iranduba, fazendo greve de fome quando teve seu salário suspenso pela prefeitura. Promoveu a defesa da orla fluvial do vilarejo onde mora: Paricatuba, em frente de Manaus. Tantas proezas lhe valeram várias crônicas de escritores locais.

Peter Pál Pelbart, filósofo e ensaísta, autor entre outros de Vida Capital, O tempo não-reconciliado e A vertigem por um fio, quando atravessou o rio Negro para vê-lo e trocar idéias, vinha de uma experiência extraordinária com a Cia. Teatral Ueinzz, partilhada com pessoas esquizofrênicas. Estou certo de que encontrou um parceiro conhecedor das exigências do nosso tempo, tanto no campo da narrativa de uma outra história, como na nova estética dos sujeitos em revolta.

Guerreiro, Paulo de Tarso vem perdendo progressivamente a visão. Nem por isso se deixou abater. Amparado numa bengala foi conferir a alegria que brota da banda carnavalesca onde inscreveu sua história ajudando a desinventar a tristeza. Confidenciou-me, logo no princípio, quando a visão foi ficando turva, sentiu-se abatido pela possibilidade da cegueira. Ato contínuo, disse-lhe: não me peça para matá-lo, como poderia fazê-lo se te amo. Ele sorriu e balbuciou algo, não consegui ouvi-lo, abafada sua voz pelo som estridente da corneta anunciando a abertura do carnaval. O sorriso cúmplice se explica. Lembrei-me do final de uma das suas peças para o teatro mamulengo: um dono de circo, homem cruel, fica cego, passando a ajudá-lo o funcionário com quem mantinha uma relação despótica. Incapaz de suportar a delicadeza do tratamento, cansado de viver sob os cuidados do outro, mergulhado em incessável gentileza, pede ao cuidador: "Mata-me, não suporto mais viver". Ao que se segue a surpreendente resposta: "Não posso. Como poderia, se te amo".

Este é o Paulo "Mamulengo", a quem rendo homenagem pela maestria na arte de criar territórios da nova sensibilidade, guerrilheiro das táticas de resistência em tempos sombrios, criador de estratégias subjetivas que emergem da sua sensibilidade ao intolerável, jamais movido por curiosidade sociológica, mas por uma política e uma ética que faz tudo para que o outro viva. E ao fazê-lo, criou novos parâmetros que forram o chão do desejo de comunidade, aberta à dimensão da alteridade, contra todas as formas de submissão da subjetividade. Não conheço quem mais tenho produzido diferenças na arte de inventar a vida. Evoé Paulo de Tarso!

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