fevereiro 26, 2013

"ARQUITETURA DE MORAR", por Severiano Porto (Studio Blog)

PICICA: "Vamos tentar sacudir um pouco tudo que aprendemos e nos condicionamos a utilizar, para ver se conseguimos atirar longe conceitos de construção, soluções e espaços inadequados, substituindo-os com criatividade, segurança e coragem por outros adequados a nossa região para benefício das pessoas que aqui vivem e moram nas casas que aqui fazem.

ARQUITETURA DE MORAR (por Severiano Porto)




Transcrição de um importante texto que o arquiteto Severiano Mário Porto havia datilografado para uma discussão sobre os saberes e o modo de construção das habitações na Amazônia, logo quando chegou na região, o discurso foi apresentado em 1984, durante o seminário Visual de Artes da Amazônia.

Casa flutuante no Rio Negro-AM. Foto Keyce Jhones 1999.

Questionar a casa, a habitação, os seus elementos construtivos e a região onde se situa, as pretensões e a necessidade de seus moradores e um tema importante e interessante.
Abordaremos alguns aspectos do mesmo mais direcionados a nossa região e ao tema geral deste evento.

Quando aqui chegamos cerca de vinte anos, chamou-nos a atenção de imediato, a casa, a morada que tem como necessidade maior abrigar a família.

Era comum visitarmos pessoas de certa posição social, que moravam em casas simples de madeira, de duas águas, piso elevado de tábuas pintadas, etc. ,com aspectos semelhantes ao do homem ribeirinho ou do interior, Este fato nos chamou atenção, pois de um centro urbano maior, onde a ideia de casa sempre vem acompanhada das necessidades de ser duradoura, permanente, a fim de que significasse o futuro garantido juntamente com a aposentadoria, dinheiro em banco, jóias e não simplesmente abrigo, morada.

Este aspecto aliado a outros como por exemplo, dos homens que habitavam e habitam toda esta imensa Amazônia, nas regiões mais distantes, junto aos rios e igarapés, como também distante dos mesmos, no meio das matas (os caboclos de terra firme, seringueiros, mateiros, caçadores e outros), que nos impressionavam toda a vez que tínhamos oportunidade de voar para o interior de mono motor em vôos diretos de três e meia a quatro horas de viagem. E aí nos púnhamos a pensar sobre a coragem e autoconfiança deste homens, a certeza de obtenção de recursos para a sua subsistência, o conhecimento de plantas, raízes, que lhe permitia fazer chás e remédios caseiros como se fosse mais um dos seus sentidos, que os habitantes das cidades tivessem perdido por atrofia. E a imagem desse homem rapidamente muda de dentro de nós.

De analfabeto e ignorante, imediatamente assume a postura de um gigante, de um profundo conhecedor da região, integrado a ela, sabedor de como construir a morada no local correto de acordo com as necessidades ecológicas e com os seus recursos técnicos.
Nós que chegávamos precisávamos aprender. Substituir nossos conceitos, chegamos a dizer a um grande amigo em janeiro de 65, quando subíamos o rio Amazonas, que alfabetizar este homem naquele momento a nosso ver seria um mal maior de que deixá-lo ir absorvendo estes ensinamentos, transmitidos de geração a geração e que não constam em livros, pois estes eram tão importantes neste região quanto a necessidade do homem nas cidades ler, escrever, tirar cursos e ter diplomas.

E aí encontramos as casas bem situadas e bem orientadas. Construídas de madeira, de palha e até mesmo de alvenaria.

Encontramos a casa flutuante, construída sobre troncos de madeiras de balsas, exemplo de solução ecológica adequada às condições de nossos rios, onde a variação de seus níveis anualmente atingem a média de 10 a 12 metros, transportando as suas margens a centenas de metros de distância.

E a casa se desloca e acompanha estas margens.

Na cidade víamos e vemos bem forte a presença desse homem e dos seus recursos para trabalhar a madeira, afeito que é ao processo construtivo de embarcações e nos bairros de população ribeirinha e nos de menos recursos encontramos as soluções mais criativas, ricas de elementos construtivos importantes como varandas, treliças, passadiços, sanefas (fechando a noite áreas abertas durante o dia), etc.

Em algumas casas vemos os seus proprietários desejando dentro de seus conceitos de "evoluir" atingir a primeira frase de transformação das casa de madeira para a de alvenaria, substituir a sua fachada principal antes de madeira por outra feita com tijolos e cimento.

A criatividade, a espontaneidade, o domínio do processo construtivo torna o seu proprietário apto a qualquer momento e muitas vezes em horas, introduzir alterações na mesma, abrindo vãos, criando cômodos, evidenciando desse forma o domínio absoluto do espaço em que vive.

Contrastando com essa flexibilidade construtiva, vemos todo o restante das habitações, cujo exemplo maior são os conjuntos habitacionais, onde os seus altos custos, as suas soluções e elementos construtivos são em sua maioria inadequados a região.
Há que se questionar a habitação seriamente em todos os seus níveis e elementos componente de suas soluções.

Grades, elementos vazados, brises verticais ou horizontais, treliças, venezianas fixas ou reguláveis, jalousie, devem ser usados fartamente e corajosamente sempre que necessário.

A ventilação cruzada deve ser uma preocupação constante bem como a proteção das fechadas com beirais generosos, pérgolas, vegetação e outros elementos.

Vamos tentar sacudir um pouco tudo que aprendemos e nos condicionamos a utilizar, para ver se conseguimos atirar longe conceitos de construção, soluções e espaços inadequados, substituindo-os com criatividade, segurança e coragem por outros adequados a nossa região para benefício das pessoas que aqui vivem e moram nas casas que aqui fazem.

SEMINÁRIO "ARTES VISUAIS NA AMAZÔNIA"
09 DE NOVEMBRO DE 1984
ARQUITETO SEVERIANO MÁRIO PORTO
Fonte: Studio Blog

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