março 16, 2013

"América Latina: a última fronteira dos papas", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Ainda é incerta a influência que Francisco I poderá ter sobre o Brasil. E isso talvez se deva aos motivos errados, dentre eles o ufanismo anti-argentino que domina do discurso futebolístico às elocubrações dos setores conservadores — que, em tese, deveriam apoia-lo. Para a América Hispânica, no entanto, ele será um contraponto permanente e poderoso. E chega a ser curioso a ascensão desse papa, ainda mais em uma época em que tantos líderes locais vieram da resistência às ditaduras — e testemunharam pela causa social com o flagelo do próprio corpo — ao contrário do novo líder católico.

América Latina: a última fronteira dos papas

15/03/2013
Por Hugo Albuquerque


Por Hugo Albuquerque | UniNômade, blogueiro do Descurvo

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Porfírio Díaz (Paulo Autran) em Terra em Transe 

Loucura Sagrada 


Sonhei que o Papa enlouquecia

E ele mesmo ateava fogo ao Vaticano

E à Basílica de São Pedro.

Loucura sagrada!

Porque Deus atiçava o fogo que os

Bombeiros, em vão, tentavam extinguir.

O Papa, louco, saia pelas ruas de Roma

Dizendo adeus aos embaixadores

Credenciados junto a ele

Jogando a Tiara ao Tibre.

Espalhando pelos pobres, todos,

O dinheiro do banco do Vaticano.

Que vergonha para os cristãos!

Para que um Papa viva o Evangelho

Temos que imaginá-lo em plena loucura


(Dom Hélder Câmara)

 A escolha do cardeal Bergoglio como papa Francisco I é um marco que vai para além do fato dele ser o primeiro não-europeu em mais de um milênio — e o primeiro jesuíta — a ocupar o trono de pontífice romano. Sua escolha vai mais além até do significado peculiar que representa na continuidade da cruzada internacionalista neoliberal da Igreja — na esteira de Wojtyla e Ratzinger, cujas indicações marcaram uma gradual expansão para além da Itália. Trata-se de um marco singular sobretudo porque, por meio de sua aclamação, a Igreja reconhece a América Latina, onde estão a maior parte de seus fiéis, como fronteira final e, ao mesmo tempo, seu refúgio existencial. 


 Se com Wojtyla o internacionalismo católico vinha do Leste para afirmar o Oeste, agora, ele se põe ao Sul para defender e salvaguardar o Norte. Sob Ratzinger, havia a preocupação de reevangelizar a Europa, de centrar os esforços da Igreja numa Europa extra-italiana, mas isso não surtiu lá muito efeito. Enquanto a Igreja se preocupava com a Europa e os Estados Unidos voltavam-se para o Oriente Médio, a América Latina via suas minorias usarem os mecanismos da (limitada) democracia representativa contra quem os inventou: mesmo depois dos ciclos ditatoriais militares e a distensão pela pax neoliberal, ainda havia resistência e luta. A história continuou viva e a América Latina foi o maior laboratório de experiências políticas da última década.


O cardeal Bergoglio esteve presente em todos esses ciclos. Seus silêncios e intervenções formam a cacofonia do discurso da dominação na América Latina nas últimas décadas. Ter se calado em relação à ditadura local enquanto gritava para enquadrar a Companhia de Jesus –  tanto que acabou suspeito de participação em episódios bisonhos de desaparecimentos durante o regime militar argentino – ou, também, sua mudez com Menem e sua histeria contra o casal Kirchner — sobretudo sua investida estridente contra o casamento gay na Argentina — são interessantes e relevadores contrastes.

Bergoglio foi o mais papista entre os jesuítas, tanto que virou papa — e Bergoglio é, hoje, o mais europeu dos latino-americanos. Sua arritmia atenta para uma aritmética moderna de indignação seletiva — e muito bem calculada. Sua presença no trono de Pedro é uma reação política à liberação reformista latino-americana: em verdade, uma nova contrarreforma. Se a Igreja se voltou contra o Leste Europeu, tanto menos por democracia — coisa com a qual jamais compactou, platônica que é — e mais por outros interesses, agora o alvo da vez parecem ser os governos democrático-populares latino-americanos.

Enquanto a multidão que se mobiliza em torno do legado de Chávez na Venezuela é, em grande parte, católica, a hierarquia de sua Igreja é visceralmente antichavista — a ponto de ter participado do golpe de 2002, como não deixa de ser recorrente na nova onda de golpes brancos que assolam governos populares: em Honduras e no Paraguai, onde a participação do clero foi decisiva. Francisco I tem uma importância geopolítica central para o Vaticano, portanto.

Outro ponto é a captura da potência produtiva dos pobres. Depois de décadas sob o discurso da ortodoxia marxista, o quadro mudou com forças populares antineoliberais que pensam para além da racionalidade industrial e do fetiche proletarista: a esquerda se abriu para os pobres, reconheceu sua dimensão produtiva e governou para o povão ou, até mesmo, com o povão. 

O novo papa, ao assumir um discurso generalista e abstrato pelos pobres, que coloca a caridade — e a carência — no lugar da catalisação do desejo de viver, emprega um meio, poderoso, de adestrar e fazer novamente dóceis quem se levantou depois de séculos de submissão. A estética da resignação e da renúncia se afirma sobre a vida. 

Ainda é incerta a influência que Francisco I poderá ter sobre o Brasil. E isso talvez se deva aos motivos errados, dentre eles o ufanismo anti-argentino que domina do discurso futebolístico às elocubrações dos setores conservadores — que, em tese, deveriam apoia-lo. Para a América Hispânica, no entanto, ele será um contraponto permanente e poderoso. E chega a ser curioso a ascensão desse papa, ainda mais em uma época em que tantos líderes locais vieram da resistência às ditaduras — e testemunharam pela causa social com o flagelo do próprio corpo — ao contrário do novo líder católico.

Francisco pode ser o santo de Assis — que falava com os animais e pregava o amor aos pobres — quanto o Xavier, jesuíta colonizador dos confins do Globo: e, como ele, os jesuítas protagonizaram a dialética da colonização latino-americana; de um lado havia os colonizadores laicos (como os bandeirantes) fazendo dos nativos objetos a serviço da metrópole, enquanto a Companhia de Jesus seguia nas clareiras abertas pelos primeiros fazendo dos índios su(b)jeitos da Cristandade. 

Os jesuítas faziam dos índios sujeitos: eles eram postos sob a Lei da Cristandade, embora fossem assim submetidos enquanto gente, e não como coisa, o que abria uma linha de fuga em meio ao paradoxo. E os jesuítas tornavam-se, assim, perigosos. Mas jamais romperam com a Igreja. 

Figuras como Bergoglio são esses ícones do lastro fiduciário que sempre houve para com o papa, unindo o (aparentemente) irascível e insubmisso da Companhia de Jesus com a hierarquia celeste. Mas Bergoglio particularmente talvez tenha transposto uma linha vital, na ditadura pela qual passou seu país, para ter se tornado tão confiável. O tensionamento entre o biopolítico e o bipoder na Terra do Sol chega, portanto, em um nível altíssimo.
Fonte: Rede Universidade Nômade

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