março 26, 2013

Comentário crítico à reportagem da Folha de S. Paulo sobre o imbróglio jurídico que opõe comunidades tradicionais ribeirinhas do Amazonas e a implantação de um Distrito Industrial Naval em Manaus

PICICA: O vídeo foi feito pelo Movimento Socioambiental SOS Encontro das Águas estabelece a relação entre o Polo Naval do Amazonas e a prática de Racismo Ambiental. A matéria da Folha de S. Paulo foi submetida a uma leitura crítica pelo movimento citado, de modo a esclarecer algumas passagens da reportagem que permitem ao leitor ampliar sua visão dos acontecimentos dessa nova fase do capitalismo brasileiro.
As comunidades tradicionais ribeirinhas deram uma lição de democracia no dia 8 de março de 2013, depois de obter junto ao Ministério Público Federal, o direito de ser ouvida na Assembléia Legislativa do Estado do Amazonas em audiência articulada com a Comissão de Meio Ambiente. O líder da comunidade de S. José do Jatuarana, Doramir Viana da Cunha, conhecido como Radir, fez um dos pronunciamentos mais importantes do dia ao repudiar a desapropriação de 31 km de terras para a construção do Polo Naval. A iniciativa envolve investimentos estrangeiros, depõe contra a soberania nacional e é fruto da prática de racismo ambiental, a mesma que impede, há oito anos, a passagem do Programa Luz Para Todos, projeto do governo federal, afetando a vida de três comunidades que vinham resistindo à essa arbitrariedade. Agora são 19 comunidades unidas com o propósito de fazer valer seus direitos de cidadania.
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Comunidades do AM mapeadas por projeto premiado são ameaçadas

Comunidades tradicionais da zona rural de Manaus mapeadas num projeto premiado nos Estados Unidos estão ameaçadas de desaparecer.

As terras foram desapropriadas pelo governo do Amazonas para a instalação de um distrito industrial naval.

Os territórios dessas comunidades foram mapeados de 2005 a 2011 pelo sistema de satélites do projeto “Nova Cartografia Social da Amazônia”, premiado em 2011 pela Fundação Ford, nos EUA, com US$ 100 mil e liderado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas. (Informação imprecisa: o processo de articulação com a "Nova Cartografia Social da Amazônia" ocorreu no ano de 2011, período em que se deu o mapeamento das três comunidades - Jatuarana, Mainã e Tiririca - que lutam até hoje pela direito ao Programa Luz Para Todos, arbitrariamente impedidos pelo Exército sob a alegação de que a terra dos ribeirinhos lhes pertence; portanto seu alcance limitou-se às três comunidades citadas, das dezenove que, embora tenham sido contempladas pelo Programa do governo federal, se uniram a partir do momento em que tomaram conhecimento do decreto que desapropria terras para a primeira etapa do distrito naval.)

As terras fazem limites com imóveis de empresários, do Exército e da União.

Excluídos de consulta prévia sobre o megaempreendimento, líderes das 19 comunidades afetadas dizem que vão pedir à Justiça a revisão do decreto, assinado pelo governador Omar Aziz (PSD) em outubro do ano passado.

A Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Católica, relatou o caso ao Ministério Público Federal, que abriu inquérito civil. “O governo deveria ter antecipado uma consulta às comunidades”, afirma o procurador da República Leonardo Macedo.

Essas comunidades, agora ameaçadas, surgiram em terrenos planos e barrancos na margem esquerda do rio Amazonas, em 1900. (Para melhor contextualizar, há registros históricos que confirmam que a existência da maioria das comunidades tradicionais de ribeirinhos remonta ao século XIX, como o cemitério de São José do Jatuarana, inaugurado em 1894, conforme relato da pedagoga Marisa de Lima, ribeirinha nascida na costa do Jatuarana, militante do Movimento Socioambiental SOS Encontro das Águas. Os títulos de propriedade, sim, é começaram a surgir no início do século XX, como a do ex-presidente da comunidade do Jatuarana, Doramir Viana da Cunha.)

Os aglomerados são formados por casas, escolas, igrejas, jardins com árvores gigantes, como sumaúmas, e lagos com vitórias-régias.

São cerca de 5.000 habitantes: pescadores, agricultores e extrativistas.

A área contínua de floresta desapropriada pelo governo tem 10,2 mil hectares –10 mil campos de futebol — e fica entre os lagos do Puraquequara e Jatuarana, onde o governo quer construir estaleiros com benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus. (Outra informação imprecisa: a primeira parte do projeto inicia pela comunidade do Mainã, no lado do Puraquequarara, e ultapassa a comunidade do Jatuarana, numa extensão de 31 km.)

A Secretaria de Planejamento do Amazonas diz que as famílias serão notificadas após estudo fundiário da área e análise de impacto ambiental. Não há prazo para retirar e indenizar as famílias. (Faltou informar que as análises de impacto ambiental são processos demorados; além do que a retirada e indenização das famílias está sendo contestada no Ministério Público Federal).

Litígio na mata – A Folha visitou três comunidades ameaçadas: São Francisco do Mainã, Jatuarana e Bom Sucesso. (Registre-se que a Folha fretou uma "voadeira" para visitar essas comunidades - coisa rara e bem-vinda, pois que os demais meios de comunicação só tiveram acesso à região mediante "voadeiras" fretadas pelos riberinhos do Jatuarana, uma das comunidades mais resistentes ao arbítrio de que está sendo vítima. Curisoamente, o único companheiro a quem foi permitido 'ciceronear' a visita, integrante do Movimento SOS Encontro das Águas - movimento apoidador da causa ribeirinha -, sequer foi mencionado na reportagem. Como a memória é um processo coletivo, fica a lição: mais cabeças pensantes facilitam o registro dos acontecimentos.)

Moradores de São Francisco do Mainã, os irmãos Raimundo, 41, e Valdir Silva, 36, mapearam com GPS todo o seu território, que já era alvo de uma disputa de posse com o Exército antes mesmo das desapropriações do Estado. (Trabalho orientado pela "Nova Cartografia Social da Amazônia", em 2011.)

“Os mapas confirmam a permanência da quinta geração da nossa famílias nesta terra”, disse Raimundo.

Com o litígio, a comunidade permanece sem luz, já que programas para o fim da exclusão elétrica não atingem áreas em conflito e sem o reconhecimento da posse.

Também sem energia elétrica, a comunidade do Lago do Jatuarana, com 25 famílias, recebeu com temor a notícia da desapropriação. (Tanto o discurso do Governo como o do Exército são coincidentes: ambos defendem medidas para evitar a ocupação desordenada do solo, ainda que não mencionem o objeto desse temor: a expansão da região metropolitana de Manaus, que atinge uma extensão região que compreende os municípios de Itacoatiara, Novo Ayrão, Presidente Figueiredo, Iranduba e Manacapuru, sendo o mais distante deles a mais de 260 km de Manaus. Essa preocupação legítima, é também a dos ribeirinhos tradicionais que poderão ter suas terras invadidas. O que surpreende é que não tenha sido adotada a medida de criação de uma Área de Conservação Sustentável, medida que poria fim à prática de racismo ambiental que atinge a área rural de Manaus, onde situam-se a maioria das dezenove comunidades a serem afetadas pelo distrito naval. Tal medida daria uma proteção mais ampla ao fenômeno do Encontro das Águas, que se estende por todas as comunidades mencionadas.)

O presidente da comunidade, Doramir Viana da Cunha, 64, afirma que funcionários do governo passaram a plotar marcos para a construção do distrito naval “sem consultar ninguém”.

Ele tem título de terra de 1903. “Vamos brigar na Justiça para reverter essa desapropriação. A terra é nossa.”

Com 40 famílias, a comunidade Bom Sucesso fica em cima de um barranco de 30 metros. O lugar tem vista privilegiada do Amazonas.


Francisco Soares, 82, presidente da comunidade, tem um título de terra de 1911, dos avós. “Para onde vamos? Nasci e me criei aqui, tenho fé em Deus de morrer aqui”, disse. (Francisco Soares - também conhecido como Chicute - declarou num depoimento para um vídeo do Movimento SOS Encontro das Águas, intitulado "Comunidades Tradicionais de Ribeirinhos, o Polo Naval e o Racismo Ambiental", exibido em Audiência Pública, no dia 8 de março, na Assembléia Legislativa do Amazonas, sobre "O Polo Naval e as Populações Tradicionais de Ribeirinhos", que teria três coisas a dizer às autoridades: 1. Nasci aqui, e aqui quero morrer; 2. Como os senhores tiveram a coragem de fazer esse projeto sem conversar conosco; 3. Encontrem uma solução que satisfaça as partes". Sabedoria ribeirinha para democrata nenhum botar defeito.)

Outro lado – O governo do Amazonas afirma que a área desapropriada para instalação do distrito industrial é formada por terras da União. (Aqui temos um imbróglio jurídico: as terras são da União, ao mesmo tempo compõe a área rural do município de Manaus e usa-se de legislação estadual para executar um projeto que mereceria avaliação do Congresso Nacional, na medida que envolve recursos financeiros da Coréia e outros países da Ásia, comprometendo assim a soberania nacional. Nenhum dos nossos deputados federais, até o presente momento, atentou para o fato. Não temos nenhum pronunciamento alertando para a importância da matéria para o debate público.)

Títulos de posse privados, entre eles os de comunidades tradicionais, serão analisados, segundo o governo. Se a origem não for comprovada, as terras serão requeridas para desapropriação.

“Se não houve consulta prévia às comunidades tradicionais, foi para não gerar especulação imobiliária”, diz Airton Claudino, secretário de Planejamento.

Ele não soube informar quais comunidades serão retiradas da área. “Lamentavelmente alguém, com outros interesses, saiu fazendo terror pelas comunidades.” (Inversão típica do discurso oficial, que nega as origens do terrorismo. Imagine voce alguém demarcando seu território e anunciando a criação de polos navais. Tiraram o sono dos ribeirinhos e agora querem dormir sossegados?)

O distrito naval inclui a construção de estaleiros, cidade operária, estradas e pista de pouso. Os negócios devem gerar 50 mil empregos em dez anos, estima a gestão. (O Movimento Socioambiental SOS Encontro das Águas tipifica essa conduta como prática de racismo ambiental: comunidades tradicionais de ribeirinhos estão sendo desrespeitadas em seus direitos econômicos, sociais e culturais na medida em que não lhes perguntaram se eles querem trocar seu modo de vida. Uma das autoridades teve a pachorra de sugerir que os "caboclos" teriam a chance de trocar o cabo por remo pelo trabalho operário. Por trás do gesto civilizatório o neocolonialismo do capitalismo baré, quando o que está em causa é a posse da terra, que é anterior à constituição do próprio Estado.)

Claudino diz que as comunidades tradicionais podem ser inseridas no projeto, produzindo alimentos ou como mão de obra. “Essa é a premissa do estudo fundiário.” (Fonte: Folha.com)
Fonte: Ambiente Brasil

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