março 10, 2013

"Espinosa, Deleuze e Guattari: o desejo como metamorfose", por Elton Luiz Leite de Souza

PICICA: "Segundo Espinosa, o desejo nunca é cego, embora cego possa estar o homem que deseja. A cegueira em questão não diz respeito ao objeto do desejo, ela concerne ao que é o desejo: quando o desejo ignora a si mesmo, isto tem por causa a ignorância do homem acerca de sua essência , pois a essência do homem é a essência mesma do desejo.
Em latim, o termo correspondente a desejo é cupiditas. Este termo se refere ao deus Cupido. Em grego, Eros. Cupido era um daimon, isto é, um ser das fronteiras, dos limiares. O daimon guia a quem quer fazer a travessia entre o que nasce e morre e o que é eterno. O daimon é o habitante desse espaço que é travessia, meio, devir. Trata-se de um meio depassagem: não passagem de um lugar para o outro, mas passagem de uma existência a um grau dela mais potente. É por isso que Cupido possuía asas. Todavia, a maioria das representações que temos de Cupido estão impregnadas com a visão cristã do mundo. Tal visão chama de “anjo” o que os romanos designavam como daimon. A principal diferença entre o daimon e o anjo reside no seguinte: os anjos possuem asas feitas de penas, como as que possuem os pássaros, ao passo que o daimon, incluindo o Cupido, possuía asas também, mas estas eram asas de borboleta. Isso não é um mero detalhe. Há uma razão para Cupido ter asas de borboleta, e não de pássaro. Entretanto, as representações cristãs fizeram essa adaptação, trocando as asas de borboleta pelas de um pássaro. Os pássaros já nascem com asas. Contudo, as asas da borboleta nasceram quando houve um segundo nascimento: elas são a expressão de uma metamorfose, tal como ocorre com o garoto do filme espanhol A língua das mariposas (cuja tradução mais correta seria A língua das borboletas): contagiado pela Natureza, ele vive a alegria de um conhecer que é metamorfose."



ESPINOSA, DELEUZE & GUATTARI: O DESEJO COMO METAMORFOSE
Por Elton Luiz Leite de Souza 1
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo ─
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes.
Manoel de Barros


I

Como se sabe, Espinosa escreveu sua Ética em latim. Nesta obra ele faz uma das afirmações mais ousadas e surpreendentes que um filósofo já fez, e que confere à sua filosofia uma atmosfera de vida que toca de alguma maneira mesmo aqueles que não estudam filosofia. Não estranharíamos encontrar essa afirmação em um poeta ou em um artista. É uma afirmação de alguém que vive da melhor forma, e não apenas teoriza sobre a melhor forma de viver. “O desejo é a essência mesma do homem” (Ética III, “Definição dos Afetos”, I). Esta é uma das sustentações da Ética de Espinosa, uma vez que o é de todavida que se quer mais viva. Todo homem segue seu desejo, embora pouquíssimos sigam a si mesmos quando seguem o que imaginam ser seu desejo. Segundo Espinosa, o desejo nunca é cego, embora cego possa estar o homem que deseja. A cegueira em questão não diz respeito ao objeto do desejo, ela concerne ao que é o desejo: quando o desejo ignora a si mesmo, isto tem por causa a ignorância do homem acerca de sua essência , pois a essência do homem é a essência mesma do desejo.

Em latim, o termo correspondente a desejo é cupiditas. Este termo se refere ao deus Cupido. Em grego, Eros. Cupido era um daimon, isto é, um ser das fronteiras, dos limiares. O daimon guia a quem quer fazer a travessia entre o que nasce e morre e o que é eterno. O daimon é o habitante desse espaço que é travessia, meio, devir. Trata-se de um meio depassagem: não passagem de um lugar para o outro, mas passagem de uma existência a um grau dela mais potente. É por isso que Cupido possuía asas. Todavia, a maioria das representações que temos de Cupido estão impregnadas com a visão cristã do mundo. Tal visão chama de “anjo” o que os romanos designavam como daimon. A principal diferença entre o daimon e o anjo reside no seguinte: os anjos possuem asas feitas de penas, como as que possuem os pássaros, ao passo que o daimon, incluindo o Cupido, possuía asas também, mas estas eram asas de borboleta. Isso não é um mero detalhe. Há uma razão para Cupido ter asas de borboleta, e não de pássaro. Entretanto, as representações cristãs fizeram essa adaptação, trocando as asas de borboleta pelas de um pássaro. Os pássaros já nascem com asas. Contudo, as asas da borboleta nasceram quando houve um segundo nascimento: elas são a expressão de uma metamorfose, tal como ocorre com o garoto do filme espanhol A língua das mariposas (cuja tradução mais correta seria A língua das borboletas): contagiado pela Natureza, ele vive a alegria de um conhecer que é metamorfose.

Foi de um ser que rasteja pelo chão, a lagarta, que as asas da borboleta nasceram. Para estas nascerem, foi preciso que a lagarta se dobrasse sobre si: é assim, dobrada sobre si, inventando para si um casulo, que a lagarta pôde desabrochar. O desabrochar é um desdobrar aquilo que nos é imanente. Isto nos mostra que a reflexão, o dobrar sobre si, é um acontecimento da própria natureza. Este acontecimento é uma metamorfose da qual nascem asas, asas estas com as quais não nascemos em um primeiro nascimento. A metamorfose também é uma prática de paciência. A paciência não é uma passividade, ela é uma ação. Ela não significa exatamente suportar o que nos acontece, mas nos preparar para sermos o que de fato somos independentemente das flutuações dos fatos ao redor. A paciência é uma virtu , uma força da alma. A paciência não é uma espera por algo, ela é a conduta que devemos ter para produzirmos aquilo pelo qual não devemos esperar que um outro faça por nós. O casulo expressa a arte da paciência da qual nasce a autêntica autoconfiança. Padecer é tornar-se paciente de uma ação externa. Todavia, quando agimos sobre nós mesmos é com paciência que se obra. A paciência não é o tempo de espera por algo que virá, ela é o processo de afirmação e produção do que já se é. Não se deve confundir o desejo com o prazer. O prazer quase sempre faz o desejo cessar quando o tomamos como a finalidade ou fim do desejo. Quando possuímos de fato nossa capacidade de desejar, fazemos com que o prazer esteja subordinado ao desejo, e não o inverso; de tal modo que reinventamos o prazer, ou conseguimos extrair prazer das coisas mais simples. Decerto que vivemos em uma sociedade do prazer, mas raros são aqueles que v ivem conforme o seu desejo. As drogas, o consumismo e processos semelhantes evidenciam que a mera busca pelo prazer pode ser movida pela infelicidade ou alimentá - la. Há no desejar autêntico uma potência de metamorfose. É por isso que Espinosa afirma que o desejo é a essência mesma do homem. Mas o desejo também constitui sua existência. A passagem da existência à essência não se faz em linha reta , atravessando uma porta ou percorrendo um caminho sinalizado. A passagem é, na verdade, um atravessar de frontei ras, de limiares, de zonas intensas como aquelas que apenas Cupido sabia como nos fazer atravessar, conduzindo - nos não sobre as costas dele, mas guiando - nos pelas mãos, pois é preciso que nos apoiemos sobre nossas próprias pernas, mesmo que seja para saltar. Do contrário, não há travessia, não há passagem, tampouco conhecimento e autoconhecimento. A passagem para a essência do desejo é uma metamorfose. Nós não nascemos com tais asas, e é por isso que a visão cristianizada das asas nos representa como tendo caído aqui na Terra. Além disso, o cristianismo e outras religiões tentaram reduzir a experiência da metamorfose a uma espécie de "conversão". Contudo, a conversão é um morrer para uma determinada vida para renascer em outra reputada a 'Vida Verdadeira', ao passo que a metamorfose é um potencializar a vida: é um aumentar a vida através da Vida. A visão da metamorfose não nos introduz em outro mundo: ela é um amar este mundo, é um "dizer eu-te-amo para todas as coisas", tal como acontece na experiência poética descrita por Manoel de Barros 2. A metamorfose é um afirmar que nasce do amor à Imanência. Em seu livro sobre Espinosa (Espinosa e outros hereges ), Yovel se refere ao terceiro gênero de conhecimento como uma “metamorfose mental”. O desejo é a causa dessa metamorfose: as asas que nascem são a expressão de um pensar e agir livres.

II 

Conforme afirmam Deleuze e Guattari, um quadro é produzido de perto, mesmo que ele seja visto de longe. Enquanto pinta, o artista vê o que ele produz a partir de uma distância que não se mede por uma medida fixa. Ele vê perto o que vê. Ele vê o mais perto do seu ver aquilo que pinta, como se este lhe saísse daquele ato. Na verdade, o pintor não pinta apenas com suas mãos, ele pinta também com seus olhos, uma vez que estes produzem aquilo que vão vendo nascer. Este perto não é o perto da afecção, ele é ter o afeto perto, próximo. O perto da afecção indica uma ação que sofremos, ao passo que viver o afeto perto nos impulsiona à ação. Ver de perto faz nascer um afeto fruto da afecção, mas ver perto é experimentar um afeto que nasce imediatamente da compreensão.Ver perto é ser tocado e tocar a ideia daquilo que compreendemos, tal como o artista que vê perto a obra: o perto está s empre pronto, e é sempre a partir dele que se produz, embora ainda não esteja pronta a obra. O perto está pronto não como obra: ele o e stá como desejo, como atividade ou potência que nunca falta a si mesma. 

Pintar, produzir, é um drama 3. No sentido original, “drama” significa o trabalho de parto. O drama expressa o processo de um nascimento. Não é a dor exatamente o que lhe caracteriza, mas o esforço, o trabalho. Não apenas a mãe é agente desse trabalho, também o é aquele que nasce. Ao contrário do que faz ia Sócrates, para quem partejar a alma significa apartá-la do corpo, o drama do qual nasce uma obra, seja um quadro ou um modo de vida, expressa as núpcias entre o espírito e o corpo. Eis o drama: dar um corpo ao espírito, espiritualizar o corpo, experimen tar cada um perto quando vivemos o outro: sentir o corpo perto quando pensamos, sentir o espírito perto quando agimos. 

Em todo drama há um método, que é o processo de reflexão sobre a produção de si mesmo. Há um drama em Espinosa, assim como em Deleuze, ma s não há tragédia, a não ser como momento preliminar de instauração de um diagrama e enfrentamento do caos, uma vez que a tragédia é a vivência de um Pathos, diante do qual muitos sucumbem e furam os olhos. A salut, a clínica , ao contrário , é um exercício de abrir os olhos: “as demonstrações são os olhos do espírito”, ensina-nos Espinosa. De olhos abertos, despertos, experimentamos o limiar do perceptível, de tal modo que é ao imperceptível que apreendemos em nosso devir intenso, molecular, imper ceptível. 

O artista vê perto, próximo. O pintor nunca está diante do quadro: ele está no quadro, como o germe em seu meio, como a lagarta em seu casulo. Ele está no quadro e o quadro está nele, e a distância entre os dois não é uma linha intermédia, ela é distância absoluta percorrida por afetos expressos em cores, linhas, volumes. 

Esta proximidade não é apenas física, ela é, ao mesmo tempo, anímica, espiritual, sensorial. Mais do que vistas, as entidades que o artista produz são também tocadas, sentidas e vividas como o produto de um Afeto em obra. Este perto, esta proximidade, é a expressão de uma distância na qual nasce o Afeto como produto de uma vida e de uma potência próximas de si mesmas. Quando produz sua música, o músico a ouve perto, como aquilo que lhe é o mais próximo, embora de longe a ouça a entusiasmada platéia. Todavia, ouvir perto do ouvido físico aquilo que a alma sentiu dentro dela faz nascer no músico um encantamento que o leva a desejar produzir mais. Este perto, esta proximidade, torna o artista mais próximo dele mesmo e de sua capacidade de produzir o que nunca se viu ou ouviu. Este Afeto torna mais potente sua capacidade de ver e o ouvir. 

Ver perto e ouvir perto não são a mesma coisa que ver ou ouv ir de perto. Eventualmente, o espectador pode ver de mais perto o que via de longe, embora tal deslocamento no espaço jamais o leve a ver perto tal como o produtor vê seu prod uto, pois o produtor vê/sente sua obra como se ela estivesse nele mesmo, no limiar de si mesmo. Por mais que o espectador veja de perto a obra, isto não o faz passar à atividade que somente o produtor experimenta, embora o próprio es pectador possa experimentar muita coisa. Nossa época vive um triste afã por ver as coisas de perto, sobretudo a vida alheia. Mas ver de perto com curiosidade mórbida pode se tornar um pôr-se longe da própria capacidade de afetar e se afetar. Ver perto a vida nos torna aptos para compreender todos os seus matizes, todas as suas cores, as de alegria e as de dor. Ver perto nos permite ver longe. Ver longe não é ver de longe, ver longe é ampliar a visão, tal como aquele paciente que passava o dia a descrever aos outros enfermos o que ele via através de uma pequena janela da enfermaria. Em sua descrição cristalina da vida, esta fulgurava em beleza e em intensidade através de suas palavras: estas faziam renascer o afeto na alma daqueles que, reclusos naquele recinto, lutavam contra a morte. Ele descrevia acontecimentos que seus olhos viam através daquela janela, que era como uma aber tura a vazar com luz espiritual, a “luz natural” de Espinosa, aquela escura e fechada mônada. Um dia, porém, o tal paciente permanecia mudo. Ao se aproximar dele, a enfermeira constatou que ele havia morrido. Ele era o mais doente entre todos, embora nunca abrisse a boca para lamentar ou lamuriar. Então, um outro paciente foi posto no mesmo lugar. Ao olhar para fora da janela, um silêncio se fez. E perdurou por muito tempo. Os outros pacientes indagaram ao paciente mudo por qual razão ele também não fazia como o outro. Por fim , ele diz aos outros pacientes que diante da janela não havia paisagem: havia apenas, constatava ele, um espesso muro cinza. Incapaz de produzir perceptos e afetos portadores de uma fabulação como linha de fuga (pois foi isto que fizera o paciente - poeta), o paciente-analítico foi vencido pela presença do muro, cuja lógica o fazia calar. Por ver/sentir a Vida perto, o primeiro paciente, o poeta, via longe: via a partir de sua “visão fontana”. 

Há uma distância ideal para se usufruir a obra, mas para produzi- la existe uma proximidade optima que só conhece quem a produz e frui da sua própria potência, ou se esforça para tal; pois não se trata de ver uma coisa pronta, mas do produzir um ver que seja, também ele, causa eficiente do que se produzirá como objeto artístico que se poderá ver de perto ou de longe. O espectador vê a maçã pintada, ele vê a montanha individuada pelos seus contornos. Tais imagens poderão lhe suscitar associações psicológicas com maçãs e montanhas que ele já experimentou e viu. Talvez ele julgue a maçã e a montanha pintadas a partir destes referenciais psicológicos que nutrem sua opinião. O pintor, no entanto, vê a potência da cor com a potência do seu ver: o ver e a cor como graus ou modos de uma mesma Potência que se experimenta para poder se expressar. O artista percebe a modulação da força esposando uma matéria heterogênea, de tal maneira que ele vê o que nunca viu e nunca viveu a não ser ali, enquanto produz. O pintor vê a obra se fazendo, não ela feita. E é isto que é o ver perto: ver o "se fazendo" que requer, como dizia Manoel de Barros, uma "visão fontana": “olho divinatório” de transver as coisas, tal como as transviu Espinosa em seu terceiro gênero de conhecimento. Ao experimentar este "ver perto", o artista consegue fazer sobreviver a ele o que ele viu, de tal forma que aquilo que ele viu perto tem a potência para ir o mais longe dele, expandindo - se ele próprio neste longe, afirmando de si o que é eterno. 

Quando produzimos nosso modo de vida de forma adequada, quando nos t ornamos agentes ativos daquilo que obramos, é dessa maneira que percebemos nossa vida: a vemos perto, a vemos se fazendo de acordo com a ideia adequada de nós mesmos. Não a vemos de longe ou perto, como se fosse o produto de outra coisa, pois mesmo que vej amos nossa vida de perto, ou de muito perto, isso não nos torna menos passivos diante daquilo que nos acontece. Quando duas pessoas se amam, por exemplo, elas não se vêem de perto sem antes se verem perto uma da outra, e este estar perto não é apenas uma questão física, ele é também da ordem do afeto. Ou seja, cada uma atribui à outra a liberdade de estar perto, de tal modo que o afeto que as une é vivido como uma necessidade. Estar perto da outra é estar perto do próprio afeto, do próprio amor: este as acompanha. Do mesmo modo, quando o artista vê perto o que ele produz, é porque a obra tem uma certa autonomia que é a marca de sua atividade: o estar perto do artista e o estar perto da obra são expressões de uma atividade. Por ser também uma atividade, um agente, a obra também produz: ela produz no ver do artista um aumento de potência que ressoa na própria arte. De tal maneira que ao ver perto a obra, o artista vê perto a própria arte: quanto mais perto esta, mais potência o artista conquista para ver, pa ra ver e ver - se naquilo que produz, embora a obra não seja o resultado de suas viv ências e opiniões pessoais. O espectador, ao contrário, crê que é o único pólo ativo na relação com a arte que ouve ou vê, uma vez que ele imagina que a pode ver ou ouvir de perto ou longe, supondo que a obra é um mero objeto que nada produz. Mas o artista que vê ou ouve perto compreende que o visto ou o ouvido também é ativo, também é agente e, como tal, produz no artista um afeto que é a própria obra se fazendo, com liberdade e necessidade. Ver o espírito de perto, como relatam alguns místicos, ou ver o corpo de perto, como se gabam os hedonistas, nada tem a ver com ver o espírito perto e o corpo perto um do outro. Não há como vermos o espírito perto sem que vejamos perto também o corpo. É na distância de nós em relação a nós mesmos que se dá nossa existência, ao passo que nossa essência é o que nos mostra a necessidade de sermos próximos, pertos, a nós mesmos. 

III 

Descartes defendia que a Ideia verdadeira é inata ao espírito. Quando se identifica Espinosa a essa posição, coisa que muitos comentadores fazem, inúmeras dificuldades aparecem. Deleuze, por sua vez, distingue o inato do natal. Acreditamos que tal distinção nos permite compreender melhor o que Espinosa denomina como Ideia, e que já faz de Espinosa Espinosa, e não um continuador de Descartes. 

O inato é aquilo com o qual nascemos, e que independe de onde tenhamos nascido, pois está apenas dentro de nós, ao pa sso qu e o natal é onde nascemos : a "cidade natal", por exemplo. O natal está dentro e fora de nós, dado que ele é a conjugação da ideia e do afeto. Combray , a cidade natal do personagem de Proust, não estava apenas dentro dele, estava-lhe também fora, fora inclusive de sua memória pessoal. O natal nos faz compreender que há mais dentro de nós do que imaginamos, e que o fora de nós também concerne à nossa vida espiritual. Enquanto o inato é objeto apenas de uma razão fechada sobre si mesma, de costas para o mundo , o natal é a ideia através da qual o espírito nasce, abre-se para o mundo, como ideia viva do corpo. Assim, a ideia verdadeira não é aquela com a qual nascemos, ela é a aquela que nos permite nascer ou renascer, e isso a todo momento, embora ela não seja fruto do momento, mas da eternidade. Em francês, a palavra que corresponde a conhecimento é co-naitre , “nascer junto”. O conhecimento adequado nos faz nascer junto com a ideia que nos liberta de toda tristeza, de todo ódio, de toda inadequação e confusão, teórica e existencial, uma vez que conhecer também é, em Espinosa, agir, existir. 

O natal ganha toda sua urgência quando estamos dele afastados e desejamos a ele retornar. O afastamento do natal não é exatamente no espaço físico, via de regra é um afastamento mental, anímico, afetivo, espiritual. Nesse caso, o afastamento é entre nós mesmos e aquilo que nos potencializa, e que não se encontra fora de nós . Quando referimos o natal à cidade onde nascemos, tal cidade ocupa duplamente nossa alma, por isso mesmo cindido a alma em duas: ora ela ocupa nossa memória como uma lembrança, atestando uma saudade, ora ela ocupa nosso desejo: neste ela é uma expectativa de uma ação que faremos no futuro, ao retornar, mesmo que em visita, ao natal onde nascemos. Na memória, o natal nos prende ao ontem; no desejo, ao amanhã. Contudo, quando experimentamos o natal como a própria ideia adequada, vencemos o ontem e o amanhã, integrando- os a um pensar e agir adequados que confere consistência aos dias que passaram e aos que estão por vir, uma vez que lhes dá sentido um a duração conquistada, na qual sentimos de algum modo que somos eternos. E isto nos liberta da saudade, bem como da angústia e da expectativa que alimenta a esperança. Como ter saudade do que nunca passou, passa ou passará? Como esperar por aquilo que já somos? A ideia adequada restitui a alma a alma, impedindo que ela padeça dividida, cindida em duas. O natal não lhe falta como uma coisa passada ou futura, mas lhe está imanente como sua parte eterna. Passado e futuro são no presente: eles são afecções, isto é, o resultado da ação dos corpos sobre o nosso. Passado e futuro são modos da imaginação. O passado é uma afecção presente que nos retira de todo presente que não seja o dela. O futuro também é uma afecção presente que enfraquece nossa relação com o presente em troca de imagens que a imaginação fornece. Na verdade, passado e futuro não enfraquecem exatamente nossa ligação com o presente, eles nos retiram do eterno, uma vez que o presente que passa é a realidade inconstante da afecção mesma, como o resultado em nós de algo que não somos. É por isso que a afecção perdura sempre fora dela mesma, e imaginativamente nos projeta ao que não é mais e ao que ainda não é. E quanto mais nos projetamos assim, mais a afecção se enraíza , diminuindo nosso sentimento de existir. 

É por essa razão que a experiência com o eterno se faz mediante uma duração que nos faz experimentar o que é, não o que foi, o que será ou o que passa. Ter saudade de uma felicidade passada ou viver na esperança de uma no futuro nos afasta da real felicidade que não nasce das afecções dos corpos exteriores, uma vez que ela nasce quando de fato nascemos no natal que não está no passado ou futuro: é no eterno que se dá um nascer sempre no infinitivo. Este nascer é a experiência com o natal. O “viveu” é uma ação passada, o “viverá” é uma ação futura, mas o viver é uma ação que dura enquanto estivermos dentro dela. Ela não nasceu no passado, nem depende do futuro para nascer: ela nasce quando experimentamos que somos eternos, e quando nos esforçamos para tornar essa experiência singular o mais constante que pudermos, dado que é ela que nos torna constantes, isto é, de acordo c onosco. 

Pensar não é alterar a consciência, tampouco apenas sair dela ou negá-la. Pensar é experimentar um natal que não é a consciência, natal este no qual já estamos e jamais saímos, a não ser quando nos alienamos. Não se trata, aqui, de um alienar - se em relação às coisas, e sim alienar-se em relação a si mesmo. Alcançar o natal é libertar-se igualmente da ideia confusa que confunde o pensar com o alterar da consciência. O alterar da consciência é condicionado pelo encontro com substâncias externas, ao passo que o pensar é produzido pelo encontro conosco enquanto modificação da Substância Eterna, isto é, da Natureza. Seria tão absurdo desejar que o contato com o natal nos altere quanto o seria alguém nascido no Rio alterar seu natal, e passar a dizer que nasceu em outro lugar. Viver o natal, experimentá-lo, não se faz para obter artificialmente alterações de nós mesmos, mas potencializações de nós mesmos conforme a luz natural que já nos é imanente. Potencializar-se não é alterar-se, potencializar-se é encontrar-se, encontrando-se e estando de acordo consigo mesmo naquilo que se pensa e faz. 

1 Mestre e Doutor em Filosofia pela UERJ. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. ProfessorAdjunto do Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universidade Federal do Estadodo Rio de Janeiro. E-mail: ellds@gbl.com.br
2 Desenvolvo esse tema e suas relações com a filosofia no livro de minha autoria: Manoel de Barros: a poética do deslimite (FAPERJ/7letras, 2010).

3 Cf. Deleuze, “La méthode de dramatisation”, L’île deserte et autres textes. Paris: Minuit,2002.
4 Sobre a “visão fontana”, a visão da qual brota o visto do ato de ver: Manoel de Barros, “Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11

ALEGRAR nº10 - dez /2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

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Fonte: ALEGRAR

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