março 14, 2013

"Papa da América do Sul, não obrigado", por Martín Granovsky

PICICA: "Até agora a História revela que os papas não trazem surpresas. Como pontífices não terminam sendo diferentes do que pensavam e atuavam enquanto eram bispos ou cardeais. Assim ocorreu com o progressista João XXIII, com o centrista Paulo VI, com o conservador João Paulo II sob quem floresceram os negócios do Banco Ambrosiano e com o ortodoxo Benedito XVI, braço direito de Karol Wojytila para questões doutrinárias.

Se esta comprovação histórica se mantiver, e para além de como seja ordenado o novo papa, é possível imaginar que um maior nível de ativismo na direção da América Latina se guiaria por preceitos rígidos, opostos a uma maior separação entre a Igreja e o Estado e reativos à perda de influência política da hierarquia da Igreja em bolsões importantes do poder.

Todas essas questões são independentes de como cada um exerce sua religiosidade ou seu ateísmo, e inclusive de como a exercem aqueles que têm vocação de experimentá-la coletivamente. O problema não é a religião, mas sim sua relação com o Estado."


Papa da América do Sul, não obrigado

O jornalista argentino Martín Granovsky, do Página/12, escreveu este texto antes de o Vaticano anunciar que o novo Papa é o cardeal Jorge Mario Bergoglio. Em tons proféticos, ele adverte sobre o risco da indicação de um papa latino-americano, em função do conservadorismo dos nomes então cogitados. “Os cardeais do Brasil e da Argentina são conservadores que dedicaram parte de seus esforços a questionar os processos políticos de reforma social nos dois principais países da região”.

Como antes ocorreu com o argentino Leonardo Sandri, agora o brasileiro Odilo Scherer aparece como um dos cardeais a quem a nobreza vaticana poderia eleger Papa. Perdão, mas não se trata de futebol. Nenhum orgulho nacional está em jogo. E tampouco um orgulho sulamericano. Muito pelo contrário: a pior coisa que poderia acontecer para a América do Sul seria a eleição de um papa daqui. Mais ainda quando se leva em conta que os cardeais do Brasil e da Argentina são conservadores que, nos últimos anos, dedicaram parte de seus esforços a questionar os processos políticos de reforma social nos dois principais países da região.

No Brasil, os bispos recebem o tratamento de Dom. O gaúcho Dom Odilo Scherer nasceu em 21 de setembro de 1949, no Estado do Rio Grande do Sul. Tem 63 anos. É um dos cardeais ordenados por Bento XVI em 2007, o mesmo ano em que foi designado arcebispo de São Paulo. Sua nomeação consolidou o deslocamento dos franciscanos das direções das dioceses brasileiras. Um deles foi Aloisio Lorscheider, ungido bispo em 1962 pelo papa João XXIII e cardeal em 1976 pelo papa Paulo VI, os dois pontífices do Vaticano II que se reuniu entre 1962 e 1965 para modernizar a Igreja.

Outro franciscano foi Paulo Evaristo Arns, bispo e cardeal por decisão de Paulo VI. Aposentado e em oração, aos 91 anos, Arns está completando quatro décadas como cardeal. Obviamente não integrou o pelotão de eleitores porque já passou há muito dos 80. Dom Paulo foi dirigente da organização Tortura Nunca Mais, do Brasil. Frei Betto, um dos fundadores das Comunidades Eclesiais de Base, contou que entre os devotos de Cristo e São Francisco de Assis, esteve sempre Luiz Inácio Lula da Silva. Leonardo Boff, o teólogo condenado ao silêncio pela Congregação para a Doutrina da Fé (a antiga Inquisição), costuma se definir como “católico, apostólico e franciscano”, porque “romano” refere-se a um lugar e não tem relação alguma com o espírito do cristianismo.

Ao contrário de bispos como Dom Aloisio, Dom Paulo e o célebre Dom Helder Câmara, Dom Odilo não foi de modo algum próximo à Teologia da Libertação nem esteve com os cristãos das comunidades de base que, junto com militantes de esquerda e dirigentes sindicais, foram uma das vertentes fundadoras do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Ao invés disso, Scherer representou o castigo com que a Santa Sé de João Paulo II e Bento XVI quis domesticar a hierarquia eclesiástica brasileira.

Em 2005, a morte de João Paulo II e a escolha do sucessor coincidiu com o ano mais crítico do primeiro governo Lula, que havia assumido no dia 10 de janeiro de 2003. Em abril de 2005, ainda não havia emergido o escândalo do chamado “mensalão”, que provocou inclusive a renúncia do chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu. Mas Lula estava na metade do seu primeiro mandato e a oposição preparava argumentos e candidatos para a campanha de 2006. O Partido da Socialdemocracia Brasileira, o PSDB do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), terminou indicando Geraldo Alckmin, então governador de São Paulo, cargo que hoje ocupa pela terceira vez. Alckmin é um membro destacado da Opus Dei, a instituição criada por José María Escrivá de Balaguer, um admirador do ditador espanhol Francisco Franco, que na década de 1960 incorporou membros da Opus na gestão econômica e financeira do Estado.

Em 1958, Escrivá disse a Franco: “Ainda que afastado de toda atividade política, não pude deixar de me alegrar, como sacerdote e como espanhol, de que a voz autorizada do chefe do Estado proclame que a Nação espanhola considera como questão de honra o acatamento da Lei de Deus segundo a doutrina da Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, a única e verdade e fé inseparável da consciência nacional que inspirará sua legislação. Na fidelidade à tradição católica de nosso povo se encontrará sempre, junto com a benção divina para as pessoas constituídas em autoridade, a melhor garantia de acerto nos atos de governo, e na segurança de uma justa e duradoura paz no seio da comunidade nacional”.

Em 2010, o indicado pelo PSDB para ser derrotado pelo PT foi José Serra, o mesmo candidato derrotado por Lula em 2002. Conseguirá Alckmin outro turno como desafiante da provável candidata à reeleição Dilma Rousseff, em 2014? O governador tem a mão suas cabalas. No Palácio dos bandeirantes, sede do governo estadual, há uma cópia da primeira edição do livro “Camino”, de Escrivá de Balaguer, com uma dedicatória estampada depois da frase “Victoria”. A vitória a que se refere o livro é a matança de republicanos por parte do bando nacional na Guerra Civil Espanhola, travada entre 1936 e 1939.

Encarregado da maior diocese católica da América do Sul, Scherer é um conservador que admira Joseph Ratzinger. Em 2007, enquanto preparava a viagem de Bento XVI ao Brasil, o país com maior número de católicos do mundo, defendeu as posições doutrinárias da hierarquia vaticana sobre a vida cotidiana desta maneira: “Entendo as dificuldades que existem em compreender a posição do Papa em um mundo controvertido, de diversidade de pensamento, de opiniões, pluralidade, mas não é competência da Igreja mudar o Evangelho”.

Scherer estava sintonizado com a posição do Papa. Na coletiva de imprensa concedida dentro do avião, durante sua viagem ao Brasil, Ratzinger justificou a excomunhão em caso de responsabilidade por aborto, com fundamento no Direito Canônico, e se mostrou preocupado com a expansão evangélica cristã no Brasil. Disse que por um lado respondia a “uma difundida sede de Deus” e, por outro, á busca de atender “a quem se apresenta e promete soluções para os problemas de sua vida cotidiana”. Sobre a Teologia da Libertação, condenada por ele desde que chefiava a Inquisição, Ratzinger disse que “com a mudança da situação política, mudou também profundamente a situação da teologia da Libertação e agora é evidente que esses milenarismos fáceis, que prometem no imediato, como consequência da revolução, as condições completas para uma vida justa, estavam equivocados”.

Em sua visita, Ratzinger condenou o aborto, apoiado então de maneira indireta pelo ministro da Saúde de Lula, José Gomes Temporão, que propôs a convocação de um plebiscito. Ainda que não tenha convocado esse plebiscito nem enviado um projeto ao Congresso, Lula comemorou a visita de Bento XVI lançando, duas semanas depois da partida do Papa do Brasil, um grande plano de entrega de contraconceptivos para os pobres.

Pressionado pelo crescimento dos evangélicos, Scherer oscilou desde 2003 entre criticar os governos do PT por uma suposta desatenção em relação aos problemas sociais e, ao mesmo tempo, não cair no questionamento selvagem porque a maioria dos fieis, em especial dos setores mais vulneráveis, vota no PT.

Até agora a História revela que os papas não trazem surpresas. Como pontífices não terminam sendo diferentes do que pensavam e atuavam enquanto eram bispos ou cardeais. Assim ocorreu com o progressista João XXIII, com o centrista Paulo VI, com o conservador João Paulo II sob quem floresceram os negócios do Banco Ambrosiano e com o ortodoxo Benedito XVI, braço direito de Karol Wojytila para questões doutrinárias.

Se esta comprovação histórica se mantiver, e para além de como seja ordenado o novo papa, é possível imaginar que um maior nível de ativismo na direção da América Latina se guiaria por preceitos rígidos, opostos a uma maior separação entre a Igreja e o Estado e reativos à perda de influência política da hierarquia da Igreja em bolsões importantes do poder.

Todas essas questões são independentes de como cada um exerce sua religiosidade ou seu ateísmo, e inclusive de como a exercem aqueles que têm vocação de experimentá-la coletivamente. O problema não é a religião, mas sim sua relação com o Estado.

A Argentina, por exemplo, introduziu na reforma constitucional de 1994 a possibilidade de que um presidente possa não ser católico, mas manteve o artigo segundo: “O governo federal sustenta o culto católico apostólico romano”.

Desde 2003, a ampliação de critérios para o registro de cultos na Chancelaria, tendeu a equilibrar o peso terreno da hierarquia católica argentina, e o mesmo fizeram medidas como a Lei do Matrimônio Igualitário, de 2010. Ao mesmo tempo, o debate sobre o aborto livre, seguro e gratuito, chegou à Câmara de Deputados. Mas os subsídios educativos continuam e, no dia a dia, o ministro da Saúde, Juan Manzur, tem sensivelmente menos entusiasmo pela realização e difusão de campanhas sobre contraconceptivos do que seu antecessor no cargo, Ginés González García.

Um papa latino-americano como o brasileiro Odilo Scherer ou como o argentino Leonardo Sandri, ex-auxiliar do secretário de Estado, Angelo Sodano, virtual primeiro ministro de João Paulo II, não soam como a melhor ajuda para separar a Igreja, ou as igrejas, do Estado e tampouco parecem ser sinais de estímulos para as mudanças que estão ocorrendo nos dois maiores países da América do Sul desde 2003.

Oxalá que nenhum cardeal da América latina chegue a Papa.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

Fonte: Carta Maior

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