março 21, 2013

"São Paulo: a fundação do universalismo, de Alain Badiou", resenha escrita por Bruno Cava

PICICA: "No capitalismo globalizado e integrado dos dias de hoje, só caberiam lutas menos pretensiosas, pequenas revoluções locais e específicas, quiçá individuais, jornadas de autoconhecimento, ou então confinadas a causas que não agridam diretamente a estrutura do poder, mais comportadas, “holísticas”, que não enunciem princípios “divisionistas” ou dicotômicos: tempo de lutas por direitos humanos, tolerância geral, reconhecimento da diversidade, identidade cultural, inclusão social, meio ambiente…

A militância edulcorada pelo “fim da história” prefere chamar-se ativismo.
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Resgatar a figura do militante nunca foi tão oportuno, quando a política do século 21 parece achatar esquerda e direita num monolítico consenso global-mercadológico. Contra qualquer diagnóstico do “vazio da política”, tão oportuno para os profetas salvadores de ocasião, aqueles com o estranho senso de urgência a “evitar a catástrofe” e refundar tudo do zero; o ponto é retomar a luta dos oprimidos, ainda que noutros termos. Retomar a luta dos que, no final das contas, não morreram. Isto significa retomar a luta de classe, que aliás nunca se interrompeu.

São Paulo, de Alain Badiou
Resenha de BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. Trad. Wanda Brant. São Paulo: Boitempo, 2009.



Escrito por um ateu confesso e impenitente, São Paulo é um elogio ao militante.

Um livro mobilizado afetivamente pela provocação, com a incorreção usual do filósofo maoísta, recheado de entrelinhas, sátiras, ataques diretos e boutades.

Resgata o militante, esse personagem tão anacrônico na era do “fim da história”, quando o mercado mundial festeja o próprio triunfo ridicularizando seus descontentes. Hoje, nenhuma trégua à figura do militante, animado pela transcendência da Grande Causa, servidor de algum ismo de museu, subordinado ao Partido, ao Sindicato, a outro Mestre qualquer.

Na grande narrativa do capitalismo, seus “livros negros” e suas N versões de apologia ao presente; o militante estaria condenado a atolar no século 20. Quando ainda não se sabia no que iria dar o papo de revolução, mas agora sabemos: totalitarismo, massacre, genocídio. Quando o militante se pôs no coração das revoltas com a ingenuidade de pretender dirigir as massas e no processo acabou consumido pelo incêndio insurrecional. Ponto final das vanguardas, engolidas pela própria pretensão absurda.

No capitalismo globalizado e integrado dos dias de hoje, só caberiam lutas menos pretensiosas, pequenas revoluções locais e específicas, quiçá individuais, jornadas de autoconhecimento, ou então confinadas a causas que não agridam diretamente a estrutura do poder, mais comportadas, “holísticas”, que não enunciem princípios “divisionistas” ou dicotômicos: tempo de lutas por direitos humanos, tolerância geral, reconhecimento da diversidade, identidade cultural, inclusão social, meio ambiente…

A militância edulcorada pelo “fim da história” prefere chamar-se ativismo.

Se acusam o militante de crenças e posturas religiosas, em São Paulo Badiou se declara culpado. Não se preocupa em separar o proselitismo religioso daquele político. Mas daí tira justamente o que, na história do cristianismo, verdadeiramente importa. Não faz isso laicizando a religião, mas entrando nela pelos fundos para, do interior da fé, fazer saltar pela janela a força política e transformadora.

O Paulo de Badiou é nada menos que o primeiro militante da história, e o seu exemplo máximo.

Como se sabe, a decisão paulina em militar por uma causa ocorreu no caminho de Damasco. Ele mergulha na tarefa de propagar a verdade de Cristo, devotando a vida. Paulo começa a longa e corajosa jornada por vários cantos do império, disseminando o ensinamento, organizando núcleos, redigindo cartas às bases, cultivando discípulos para, com a sua partida, prosseguirem a evangelização. A verdade nova, para Paulo, se resume numa única declaração: Jesus ressuscitou. O Cristo renasceu em carne e osso, neste mundo. Vive. Paulo não esteve ocupado em formular uma doutrina, nem instaurar uma nova igreja. E não erigiu Jesus a ainda outro Mestre entre os ídolos da tribo, no lugar dos existentes, como mais poderoso, misericordioso ou magnanimo, como pretendiam os apóstolos.

O propósito paulino era mais simples e decisivo: espalhar a boa nova que Jesus, de fato, ressuscitou.

Para Badiou, no caminho de Damasco, Paulo não teve iluminação divina, como se costuma dizer. Não foi arrebatado por alguma revelação, a sua decisão não conteve componente místico. Tampouco a verdade ali engendrada brotou como indizível, como fato incomunicável. Pelo contrário, foi uma verdade bastante comunicável, ainda que inédita e escandalosa. Uma verdade que inaugurou o processo de um novo tempo e um novo espaço.

Somos todos iguais ante a ressurreição da carne. Em vida, somos todos iguais. Jesus é o caminho pelo qual se pode concluir que, no final das contas, ninguém é superior a ninguém. Não havia ainda Igreja, e Paulo não equipara a condição cristã às identidades grego, judeu ou romano, — cada qual bem demarcada na sociedade do primeiro século. Todos cristãos, quer dizer, iguais. Cristão consiste numa condição transversal às identidades, um diferencial, um “nomadismo da gratuidade” (Badiou). Essa, a convicção paulina, nem grego nem judeu, nem homem nem mulher, nem sacerdote nem leigo, nem romano nem estrangeiro: um igualitarismo radical e de base. Sem eliminar as diferenças, porque, com elas, em última instância, somos todos iguais. Em Cristo. A teoria paulina-baudiounista não anula as diferenças, na medida em que reconhece o real como constituído delas, seu movimento e recombinação. As diferenças servem como pontos de apoio, necessários e incontornáveis, para a exposição da verdade comum.

Da noite para o dia, torna-se irremediavelmente injusta a ordem instituída.

Surge daí uma verdade revolucionária que, levada a efeito pela militância, significou nada menos do que a paulatina extinção do universo da antiguidade, num processo de corrosão desde dentro. Todas as hierarquias, estamentos, castas, todas as distinções instauradas pela ordem divina, imperial ou religiosa caem por terra no plano das crenças. O caminho de Damasco encerra uma disposição subjetiva, que já é meio caminho andado para a revolução. A disposição subjetiva está já nessa fundação do radicalmente novo, que excede todas as religiões existentes, pondo em xeque a estrutura em que se articulam. Uma disposição que deve ser assumida, como decisão de ruptura, porque não acorre razão natural, nenhuma lógica inexorável para a conclusão que somos todos iguais. Essa disposição já é a própria disparada da revolução, enquanto acontecimento rasgado na ordem temporal e espacial vigentes, e que daí por diante solicita a militância para efetivar-se às últimas consequências, trabalho multitudinario de organização e ação coletiva.

Paulo não acredita, no entanto, que se deva fundar outra religião, para concorrer ao lado do judaísmo ou do culto oficial de Roma. A meta consiste simplesmente em construir veículos militantes para sustentar e propagar a mensagem, transformando a realidade desde suas bases subjetivas. 


Quando chega em Atenas para disseminar a mensagem, o santo termina menosprezado pelos filósofos. Consideram a doutrina estapafúrdia. E é mesmo. Para Badiou, Paulo foi um antifilósofo. As declarações paulinas não fazem sentido nesse campo. Não se inserem numa totalidade de proposições, num plano de conceitos, num cosmo mais ou menos ordenado onde o sentido circula e é distribuído em função deste ou daquele sistema de pensamento. Paulo afinal não se interessa pelos torneios retóricos dos gregos, pelas pirâmides argumentativas, por caprichos e ninharias de metafísico. Não caiu na tentação da posteridade e não peca por vaidade de obra magna, enquanto a maioria dos filósofos escreve já póstumo.

O caso é aqui e agora. Para Paulo, o exemplo não é o melhor, mas o único caminho para influenciar as pessoas. Ele não vence, convence. O igualitarismo cristão se demonstra na energia inesgotável, na convicção inabalável do militante, cuja vida está dedicada apaixonadamente a uma única verdade em processo coletivo. Sem jamais abandonar a estratégia. Paulo sabe que a expansão da verdade escandalosa um dia termina por perturbar o poder, dia em que o desdém se converte em pedras. Daí ensinar, como se depreende das cartas às bases, que a obstinação se dosa com a estratégia e a astúcia; a autoconfiança, com a prudência.

O novo espaço inaugurado por Paulo foi a Cristandade e o novo tempo, o estado de Graça. A lei está abolida. Ninguém é mais culpado, e todos os pecados foram redimidos. Ipso facto. Na graça, desaparece o fundamento místico da lei, e a autoridade se divorcia da potestas. As instâncias judicativas passam a ser a encarnação da própria injustiça, formada por identidades discriminatorias, por hierarquias e assimetrias. O estado de graça é vivido como amor, na unidade de ação e pensamento, e além do poder constituído. Floresce o santo querer da destruição da ordem posta, que contém em si uma afirmação superior: a nova verdade. A revolução prorrompe, é um processo deflagrado, militante. É um sujeito. Renascido.

A ressurreição exprime a vitória da vida sobre a morte. A morte, aqui, entendida como disposição subjetiva. Como horizonte aberto na angustia, no temor, no pensamento e louvor do finito como suposta essência humana. Um antiexistencialista avant la lettre. Nós podemos vencer a morte. É acessível a todos e cada um, universalmente vivenciavel. A revanche sobre a morte é aqui e agora: vivendo. Para Paulo, Jesus lidera o levante dos mortos contra a própria morte, completando o gesto de Adão — o primeiro rebelde, aquele que preferiu a liberdade conflitiva e difícil neste mundo, ao conforto de uma felicidade subserviente. Novamente vivos! É essa a mensagem que enseja a militância: já estamos salvos, desde sempre, se alimentarmos essa convicção, despida de qualquer aspecto sobrenatural, nos corações e nas mentes.

Tem-se assim um São Paulo afirmativo da vida, o exato antípoda do anticristo execrado por Nietzsche em obra raivosa. Segundo Badiou, o filósofo alemão temia um rival, daí a ofensiva contra o santo.

Resgatar a figura do militante nunca foi tão oportuno, quando a política do século 21 parece achatar esquerda e direita num monolítico consenso global-mercadológico. Contra qualquer diagnóstico do “vazio da política”, tão oportuno para os profetas salvadores de ocasião, aqueles com o estranho senso de urgência a “evitar a catástrofe” e refundar tudo do zero; o ponto é retomar a luta dos oprimidos, ainda que noutros termos. Retomar a luta dos que, no final das contas, não morreram. Isto significa retomar a luta de classe, que aliás nunca se interrompeu.

Se Badiou deixa-nos um sabor de insuficiência, é por deixar de examinar as condições produtivas dessa militância hoje, o que exigiria uma análise do capitalismo, e das formas de cooperação que o excedem e o antagonizam. É certo todavia que os descontentes do capitalismo não morreram. O acúmulo (não-linear) de experiências militantes, daqueles que tiveram a coragem, organizaram, difundiram, proliferaram, e mesmo anônimos não temeram terminar os dias na Sala 101.

Essa memória está aí, vívida. Renasce a cada dia, novamente vivos. A memória de lutas generosas persevera, enquanto construção e reconstrução dos direitos que podemos exercer, e sobre o que podemos acreditar e lutar por outro mundo. Neste mesmo.

Fonte: Quadrado dos Loucos

Um comentário:

Anônimo disse...

Agradeço pelo comentário à obra de Badiou. Serviu como ótimo guia melhorar o entendimento do texto.
at'.e