abril 07, 2013

"Não existem nós x eles: só existe o outro", por Bruno Cava

PICICA: "“As raízes índias e negras do povo latino-americano devem ser compreendidas como a única força desenvolvida neste continente. Nossas classes médias e burguesias são caricaturas decadentes das sociedades colonizadoras.”Gláuber Rocha." 

Não existem nós x eles: só existe o outro
“As raízes índias e negras do povo latino-americano devem ser compreendidas como a única força desenvolvida neste continente. Nossas classes médias e burguesias são caricaturas decadentes das sociedades colonizadoras.”Gláuber Rocha.



As manhas da modernidade

A artimanha dos modernos foi construir uma guilhotina para se separarem dos não-modernos. A guilhotina moderna separa de maneira irreversível um nós de um eles, sustentando múltiplos níveis de racismo. Dessa fratura que constitui a sociedade moderna, passam a ser elaborados e operar os projetos e as teorias da modernização. Para os modernos, o ocidente inaugurou um um tempo evoluído, uma nova era que doravante cabe aos demais perseguir. Que sejam ajudados a perseguir.

Iluminado pela razão desinteressada e professando a aspiração ao bem geral, o moderno declara a sua própria assunção a uma capacidade ímpar para produzir ciência, economia, estado, arte e direito. Conhecemos bem a conversa, está nos livros de história geral como uma lição central e decisiva.

Politicamente, é quando aparece o estado-nação republicano: unidade abstrata do povo e síntese da vontade geral dos cidadãos, dotados de liberdade e igualdade formais. Economicamente, o mercado mundial: espaço-tempo homogenizado em que todas as coisas, capacidades e necessidades podem ser medidas e comensuradas entre si, na métrica unidimensional do valor, e segundo a república da propriedade. Juridicamente, são editadas grandiloquentes constituições de direitos, garantias e princípios normativos: vontade abstrata da lei a camuflar as divisões concretas na base da sociedade, por meio do que se exerce a violência de raça, classe e gênero, especialmente mediante o sistema penal. Artisticamente, a começar pelas academias nacionais, é conformada a atividade autônoma dos heróis-artistas, que se veem como legisladores das formas e sensações do futuro, alavancando a realidade sensível da “humanidade”.

A operação moderna deixa contudo um resto. Há muitas maneiras de sobrar do lado de lá da guilhotina, de pertencer a alguma minoria desconsiderada pelo processo geral da modernização. Esta precisa do resto, como matéria prima que impulsiona seus projetos e operações. O nós modernizado é subtraído de um eles a modernizar. Coloca os dois polos em relação de assimilação do primeiro pelo segundo. O eles que ainda sobra são os pré-modernos, um objeto, um conteúdo a ser assujeitado, que tanto pode ser uma pessoa, uma formação social, um povo, uma identidade, ou uma fração da pessoa, um resíduo interno de pré-modernidade que cumpre ser curado e progredido.

Em qualquer dos casos, os elementos arcaicos frustram a razão desinteressada ou a ciência, apartam a pessoa do reino do universal, do acesso ao sublime artístico e da compreensão dos direitos humanos, tornando-a desconhecedora do evoluído estado e do direito, ou mantendo-a fora da competitividade do mercado, atrasada em práticas econômicas saturadas de códigos, entraves, tabus e fetiches.

Tudo isso é um problema crucial para a modernização, e será enfrentado por ela, nos termos da dialética nós x eles.

Teleologias redentoras

Para o moderno, é preciso eliminar qualquer resíduo resistente aos fachos de luz da razão, que esteja ainda na escuridão do instinto. É preciso arrancar a paixão pelos interesses mais imediatos ou de fé que o vulgo pré-moderno ainda alimenta. Esse atraso deve ser combatido sem trégua. Porque antes da alta humanidade e suas revoluções francesas, só pode existir a animalidade pré-jurídica, a vontade tiranizada por estômago e sexo.  Nos processos de desenvolvimento, os povos rudes pagãos precisam ser primeiro civilizados, para o próprio bem e o bem da nação, para só depois poder desfrutar da condição superior da modernidade, sua cidadania, sua voz política. A educação vem primeiro. É empreendido um enorme esforço teórico e publicitário para elevar o ser brutal da dominação ao status de dever-ser civilizacional. A didática política assumida pelos modernos: salvar os selvagens sem-lei-nem-rei do estado de natureza em que se encontram, longe da ciência, da razão ou da arte. É elaborada uma catequese para que possamos educar, esclarecer e conscientizar o pré-moderno, incluí-lo socialmente, em cândido humanismo. Didática em algumas ocasiões escoltada pela guerra, o medo e a tortura, e em todas as ocasiões pela polícia. Levar-lhes, à sombra militar, as benesses da modernidade, o estado-nação, a propriedade e o mercado mundial. Sobretudo o mercado mundial, alfa e ômega das fronteiras da modernização.

O racismo habita o âmago da modernidade, tecido nos esquemas econômicos, sociais e políticos com que se governa. Essa representação racista circula nas instituições, nos discursos, no senso comum, e em toda forma de poder modernizador, e é própria das sociedades marcadas pela dialética colonizadores-colonizados: a dialética moderna.

Os modernos traçam uma linha no tempo. Projetam essa linha desde um passado distante, desde a natureza selvagem em épocas imemoriais, e a seguir fazem passar a linha pelo neolítico, a antiguidade, a idade média, um período depois do outro até chegar a… si mesmos, no ápice ocidental dos tempos que é hoje, ponto de chegada e estágio mais desenvolvido da saga civilizatória. No meio do caminho, não deixam de espalhar os retardatários, em diferentes graus de atraso, aqueles ainda na sala de espera para entrar no clube da história. Esses que ficaram no caminho não são capazes de elevar-se ao ponto de vista universal, então não podem falar senão de sua cultura orgânica e originária. Para viver no mundo moderno, logicamente precisem ser guiados, educados. Os modernos costumam chamar essa cronologia de “aventura humana do conhecimento”. Estampam-na nos livros distribuídos às escolas e nos discursos oficiais. As muitas histórias e temporalidades do mundo terminam achatadas como pré-história de si próprio.

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Antimodernidade

Diante da modernidade, proliferaram lutas antimodernas. O tempo todo. A conquista das Américas, da África e da Ásia nunca foi um processo pacífico, mas uma pacificação violenta. Uma “paz de vencedores” que, pela força das armas e o respaldo da tortura, e muitas teorias e projetos e artes, impôs o humanismo do mercado. Mas por trás dos intercâmbios culturais, não cessaram o conflito e a resistência. As forças antimodernas, essas forças negras de recusa radical, recusam aos modernos a prepotência do discurso, cospem em sua boa consciência humanista e, à atrocidade humanizada, lhes contrastam uma violência sem rodeios, cruel, implacável.

Com efeito, a memória da colonização é rica em insurreições, massacres, quilombos, revoluções malês, guerrilhas indígenas, Haitis de diferentes escalas. Não aceitam a lorota escolar dos colonizadores. Eles não viviam o tempo progressivo e homogêneo das forças progressivas do capital moderno, nem a boa consciência dos valores republicanos, mas a urgência das lutas. Esses protocolos e rituais históricos são para eles inaceitáveis. Sem determinismos históricos, a história tem outra estrutura: não-linear e em saltos. O eterno retorno do escravo perturba o avanço da modernidade, desmascarando o Grande Projeto na medida em que se defende do colonizador. Por isso, se sucede ambivalência no núcleo da modernização, consiste na resistência que lhe acompanha, criativa, e determinante de outros caminhos para deslocar o poder modernizador e reapropriar-se da riqueza subtraída.

O lance dos modernos foi manhoso porque conseguiu justificar um projeto político que se tornava insustentável, quando pipocou a resistência. Solapados por revoltas e êxodos, por uma luta anticolonial ocorrendo descontroladamente, foi preciso redimensionar a dominação de uns sobre outros, de um nós sobre um eles. Adaptar-se aos novos tempos, fazer concessões, formular outros consensos e outra boa consciência. Daí tantas teorias da modernidade, tantas estéticas e sociologias, tanto empenho em formar núcleos colonizadores nas próprias colônias, em novas versões de apologia ao presente colonizador.

Ódio x tristeza apocalíptica

Afora a luta anticolonial, dentro e fora da Europa, endógena ou exógena, a modernidade também sofreu por assim dizer “críticas internas”. Os experimentos políticos europeus do século 20 deram um banho de água fria no otimismo das teorias da modernização. O terror estremeceu o europeu. Numa atmosfera de desencanto e culpa, as promessas do projeto moderno perderam o vezo retórico, causando uma sensação de irremediável cinismo sempre que evocadas. É quando se retomam as narrativas da queda. A modernidade afinal gira ao redor do vazio. Muitos são acometidos de um tom apocalíptico, de que nada resta a fazer senão lamentar a falência do ocidente.

A Europa chegava assim à meia noite do século, ao fundo do poço da história. Perdeu-se o horizonte ontológico, como diria Heidegger, talvez o maior representante da necessidade de refundar o ocidente enquanto ontologia. Multiplicam-se os diagnósticos baseados no vazio, na contramão do iluminismo: a razão é reduzida ao instrumental, a técnica passa a dominar o conteúdo humano, desumanizam-se a política, a ciência e a arte. Os ideais modernos adoentaram a civilização europeia, que esqueceu o Ser para entronizar fantasmas metafísicos.

O decadentismo moral do novecentos alimentou pelo menos duas gerações de uma esquerda impotente e temerosa do sujeito, da luta e do futuro. A esquerda do “vazio”, organizada ao redor do “menos pior”, e coincidente com os conservadores liberais, para quem sempre é melhor não se mexer muito, porque o poder é perigoso (para o monopólio deles).

Regressão mítica

Outros menos apocalípticos decidem odiar a modernidade. Acusar-lhe de impotência. Menos para combater o colonizador do que para reinventá-lo, mais rijo, mais à altura de uma época de guerras e evolução. E proclamam: faz-se necessário destruir o erro original da modernidade, e recriar novos valores, mais genuínos. Nesse clima, alguns manejaram a crítica à modernidade para legitimar regressos míticos a um passado nunca acontecido. É a nostalgia de uma idade de ouro situada no futuro. O futurismo do passado. Nisso, a regressão nazifascista de Carl Schmitt a um soberano que decide além do bem e do mal, para revitalizar a Alemanha infectada de “legalismo judeu”. Nisso, a paixão de Heidegger pela ancestralidade poética dos pré-socráticos. Nisso também, os indianistas verde-amarelos, que serviram tão bem ao regime autoritário do Estado Novo (momento de fundação da burguesia nacional no poder), atrás do elo perdido da brasilidade, um sentimento genuíno de comunidade. O realismo soviético também cantou em prosa e verso o musculoso estivador a serviço da Мать Россия, uma estética humanista contra todos os “formalismos” revolucionários.

Nesses exemplos, elogiam-se o arcaico e as raízes menos para combater o colonizador, do que para repô-lo mais potente e sadio, à altura do desafio da dominação do mundo. O dispositivo do racismo é muitas vezes fortalecido. A regeneração de uma modernidade doente só pode vir do paraíso perdido do bom camponês, do bom operário, do “bom selvagem”. Ora identificado ao índio Peri e sua Iracema, ora nas virtudes sadias da mulher ariana, em ambos os casos muito mais saudáveis do que o homem adoentado pelo confinamento urbano. É a “aristocracia” dos sentimentos puros, nostálgica de paisagens amplas e arejadas e belos campos de batalha. O racismo entre nós e eles agora passa a dividir os puros dos impuros, os sadios representantes de sangue e raça dos povos degenerados e moderninhos.

Nada tão distante do pânico moral que vivemos hoje, na onda de neocons reacionários, religiosos ou não, prontos a ridicularizar os “pós-moderninhos” e “alternativos”, os gays e descolados: tudo para elogiar o bom e saudável operário, o bom e saudável camponês, o bom e saudável soldado. O extremo desse fenômeno sociocultural acontece quando o racismo atinge o ponto da eugenia, e são conhecidos os próximos episódios.

Cultura da autenticidade


Em uma versão menos extremada, o ódio ao moderno conduz à cultura da autenticidade. As leituras existencialistas de Paris, a Meca do mundo intelectual do segundo pós-guerra, apelam para uma retomada do autêntico diante da banalização civilizatória. A luta é contra o esvaziamento de sentido, contra o nojo diante de uma pasmaceira moderna, sua falta de verdade profunda. E assim encontrar dentro de si uma nova voz, um estar-no-mundo menos falsificado pela razão dominante, reabrindo a experiência genuína além das coisas. Essa cultura da autenticidade confinou com a cultura jovem, desejosa de abrir caminhos em relação à vidinha formatada e tediosa das gerações anteriores. A modernidade é vista, então, como cultura de massa, vulgarização cultural, automatismo de gestos, institucionalização da política e da arte, déficit cotidiano de Ser.

O antimoderno, agora, não está voltado para o arcaico como depositário de uma verdade mais virtuosa e inocente dos pecados civilizatórios. Mesmo porque, para os existencialistas, não é possível recriar a autenticidade perdida. Ela se perde de uma vez e para sempre. Nessa lógica, uma vez provada a condição moderna, perde-se o acesso às manifestações vivas de culturas orgânicas, das tradições originárias. Não é mais possível vivenciá-las, por exemplo, as culturas dos negros, porque constitutivamente o homem branco perdeu a potência de fé, contaminando-se de uma inautenticidade irreversível no nível dos corpos e das mentes. Por isso, ele pode tentar de todas as maneiras aproximar-se do eles, mas o gesto acabará reduzido a protocolos e cópias esmaecidas, não atingindo a experiência plena do colonizado, das raças e minorias.

Os existencialismos trazem, como nota comum, um elogio da interioridade, do que “vem de dentro”, quase uma aposta mística (não por acaso simpática a orientalismos) em que cada um deva expressar o que tem de mais próprio, em relação ao banal “lá fora”. Seja um indivíduo independente e diferente! Toda uma sensibilidade política e artística nasce daí, contemporânea ao baby boom e ao Plano Marshall, que vai dos indies musicalmente mais esnobes, do situacionismo mais isolacionista, das estéticas mais “profundas” às propostas de salvar a política do vazio dos políticos, refundando tudo a partir de um sentimento mais autêntico do que seja bom para todos.

Multiculturalismo

O multiculturalismo não deixa de ser uma espécie de conciliação da “crítica interna” à modernidade. Aceitam de bom grado a existência de muitas culturas e povos com igual valor. Rejeitam abertamente o eurocentrismo, propondo uma modernidade mais aberta, mais colorida, uma modernidade capaz de conviver com as diferenças e praticar a tolerância. Cada grupo se compraz de se constituir pelo pertencimento, o que também deve ser reconhecido política e juridicamente. O moderno pode conviver com o “arcaico”, que na verdade é arcaico somente no nosso mundo. No mundo deles, pode ser moderno. Elogiam-se sem problemas as raízes, os ancestrais, as tradições, as culturas antes inferiorizadas, nivelando as diferenças numa coleção de particularidades de igual valor. É preciso respeitar o mundo do outro, inacessível para nós, uma vez que somos definidos, antes de tudo, por nossa própria e particular cultura.

Em consequência, a cisão entre nós e eles permanece, mas dentro de uma matriz mais comunitarista, fundada no pertencimento e no reconhecimento recíproco. O multiculturalismo assume um caráter ambíguo quando se fala em acentuar o conflito e tende a torcer o nariz com contestações ao capitalismo. É apenas uma forma cultural, podendo-se reconhecer espaços de não-capitalismo para as “culturas menos egoístas”. Como se esse não fosse o próprio discurso da modernidade: incluir diferencialmente para explorar. Não adianta elogiar a mestiçagem e a hibridação, replicar maquinalmente conceitos e léxicos pós-modernos, sem perceber como toda imanência implica imanência de conflito. Se tudo é imanente, o mundo está em disputa. Não que qualquer verdade seja válida, mas que a validez se torna um terreno de luta. Não que possamos ser qualquer coisa indiferentemente, que impere um construtivismo relativista, mas que toda construção seja política. E aquilo que difere se diferencia exatamente ao suplantar, reapropriar e reconquistar, em relação à repetição de idêntico. A diferença destitui as representações dominantes, e é só por isso que perturba tanto os modernos. A diferença tem um caráter imediatamente político e agressivo ao poder constituído, ou não é.

Antimodernidade que repõe o moderno

As três correntes — reacionária, existencialista e multicultural — partem da “crítica interna” à modernidade, mas perdem de vista o principal. À diferença das lutas antimodernas, esses três grupos antimodernos destacam as ideias da materialidade em que fazem sentido e funcionam, como se pudessem existir em suspenso nalgum plano inteligível da conversação universal.

Pode-se distinguir uma antimodernidade materialista (digamos, a do Quilombo dos Palmares ou de Frantz Fanon) daquela idealista, que não passa de contra-signo da mesma coisa. A maquinaria modernizante não assume os valores da modernidade senão para expandir a dominação capitalista, colonial e profundamente atravessada pelo racismo. Atacar os valores da modernidade mas manter essa matriz de dominação é a mesma coisa que repor os mesmos valores, com outras palavras. As ideias estão emaranhadas às matrizes de poder e exploração, e nesse sentido se coordenam para a sofisticação e o aprofundamento das divisões reais entre nós e eles. Não é meramente um problema na cabeça dos racistas, dos colonizadores, que coubesse denunciar no plano da crítica e assim, da noite para o dia, remediá-lo. O racismo se infiltra em formas novas, e o capital se amolda aos novos modos produtivos, e tudo muda para ficar como está.

As regressões míticas, em primeiro lugar, não passam de tentativas de refundação radical do racismo na base do estado, mercado e arte modernas. Em consequência, essas teorias continuam o projeto moderno noutros termos, e não por acaso rapidamente serviram à classe dominante e convergiram em regimes tendentes à eugenia, do nazifascismo ao Estado Novo, do white power americano aos ultranacionalistas europeus. Nos países pobres, isto significa antes uma tentativa de criar uma autêntica cultura colonizadora, que convém à emergente burguesia nacional, do que destruir a própria dialética entre nós (colonizados) e eles (colonizadores), destituindo assim a burguesia nacional e internacional.

Em segundo lugar, o retorno ao Eu profundo do existencialismo remete ao individualismo burguês, interessadíssimo em reproduzir a sua diferença também em termos de capital cultural, para distinguir-se da massa pré-moderna. Os mecanismos de reprodução da matriz moderna passam, também, pela reprodução dos signos de poder. Existem teorias perfeitas para essa perfurmaria teórica. Por trás das digressões infinitas sobre a angústia, a originalidade e a vontade-de-arte, é difícil não enxergar o bom burguês na origem da modernidade europeia.

A seu passo, o multiculturalismo mantém intocada a base material do estado e do mercado, e se torna cada vez mais cínico ao afirmar que incorpora a diferença. Não a acolhe em todos os níveis, pois postula, de uma forma ou de outra, um plano superior indiscutível, que é a democracia liberal contemporânea. Ao afirmar a independência última das culturas embute um racismo identitário, vedando as transformações, e a possibilidade de a cultura branca, moderna e capitalista ser destituída “desde baixo”, pelos devires minoritários. O modelo é de intercâmbio, e não de compartilhamento de luta. Disso, só pode advir ainda outra apologia ao presente, no estilo united colors of Benetton. Embora não se possa negar que o próprio multiculturalismo seja uma concessão arrancada pela luta antimoderna, o multiculturalismo tem o rosto do liberalismo, no conveniente senso acrítico em relação ao que de mais conservador a metrópole produziu: a economia política clássica e neoclássica.

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Altermodernidade


Dado esse quadro esquemático, pode-se perguntar. Como resistir à modernidade e aproveitar das lutas antimodernas, sem recair nos três (falsos) desvios citados: refundação reacionária, mergulho na interioridade ou pós-modernismo fraco?

Antes de qualquer coisa, em continuar lutando criativa e positivamente, ante o projeto colonizador da modernidade. Assumindo a nossa memória militante e, como pedia Walter Benjamin, saltando ao passado para escovar a história a contrapelo. Disputar cada vírgula e a história toda. Manter-se na recomposição do materialismo antimoderno, que é uma recomposição de classe e das minorias: feminista, negra, indigenista, queer.

Não importa crítica da modernidade que não esteja atrelada ao ataque à base material de racismo, classismo e patriarcalismo que constitui a própria agenda dos projetos de modernização. As alternativas à modernidade não podem ser engendradas fora dos pontos em que ela range de conflito e resistência. O grito do oprimido é produtivo. A copesquisa pelas condições de superação da modernização se situa no movimento real que já a está superando, ainda que minoritariamente. As lutas antimodernas já contém uma virtualidade, uma nuvem de projetos alternativos de consecução difícil e dificultada, mas que podem ser desembaraçados juntos e potenciados. Se a modernidade tem propiciado um enorme acúmulo de riqueza nas mãos de poucos, a alternativa também passa por um resgate: não só dos produtos e bens saqueados ao longo da história, mas do próprio processo produtivo que nos foi sequestrado, processo de produção subjetiva de nós mesmos, enquanto agentes anti-históricos. A revolução não deixa de ser permanente e imanente.

Mais do que concluir com uma tautologia, é caso de assumir uma perspectiva que coloca a transformação em primeiro lugar. Quando se fala em luta de classe, portanto, fala-se de uma luta pela autoabolição da classe, pela autossuperação da condição de colonizado, o que significa transformar radicalmente a modernidade para que algo como uma classe não possa reunir as condições de existência. Quando se fala em lutas das minorias, não é caso de buscar o multiculturalismo, ainda que seja uma conquista tática, mas ir além para disparar um devir minoritário, uma potência de transformação do sistema como um todo, excedendo-o, pondo-o em curto circuito. O que virá depois? Esse não é meu problema nem tem como sê-lo. Não me interesso por utopias.

Negri e Hardt (2009, 106) chamam essa luta criativa de “movimento de autotransformação”. Nem tanto uma luta para “ser o que se é”, mas sim para “se tornar o que se quiser ser”. A marcha das vadias não é para a mulher ser feminina, mas para ela ser o que bem entender. Da mesma forma que lugar de índio não é na floresta, mas onde ele quiser estar. Como sempre atuaram os zapatistas e sua teoria riquíssima, para quem o indígena é uma condição acessível inclusive para aqueles que os modernos acusam de terem perdido a autenticidade, o índio é uma condição de devir e transformação. Como na Bolívia da última década, onde um movimento constituinte foi capaz, em alguma medida, de indigenizar o próprio poder, — e não só levar alguns índios a cargos preexistentes.

Isso vai além das representações e promessas da modernidade, incapaz de enxergar a alteridade de si senão em termos depreciativos — abertamente racistas ou culturalistas. Os autores citados veem nessa alteridade uma força paralela em relação à modernização universal: uma altermodernidade. É nesse sentido, também, que Sandro Mezzadra (2008, 144) contorna a edulcoração pós-colonialista para falar em “condição pós-colonial”. Este é um tempo-espaço irredutivelmente heterogêneo, quando não basta se posicionar contra a modernização, mas continuar preparando o terreno comum de transição à alternativa (no caso, o comunismo sem estado). Lutar contra o presente não pode significar deixar de salientar a sua positividade, o que de latência e alteridade pulsam dentro e contra.

Não nós e eles, mas o outro

Assumir essa perspectiva de transformação não se resume, porém, apenas a ouvir melhor eles, a simplesmente dar voz a eles, a simplesmente estar com eles. Essas são tarefas importantes, mas ainda incipientes. O desafio maior consiste em ultrapassar a gramática nós x eles, uma tarefa prática e sem recair em unitarismos abstratos ou multiculturalismos piedosos. Longe disso, é perceber como a cultura de resistência é uma só e acessível para quem puder se recriar na luta, ainda que seja uma cultura não-linear, heterogênea e inacabada — jamais universal. Essa única cultura de resistência exprime-se de uma única maneira: criando o que ainda não existe, como mais processo de luta. O resultado disso, a sua atualidade evidentemente é diversa e depende das circunstâncias de tempo e espaço. Não é certamente uma luta universal, nem admite cartilha, porque cada componente dela excede qualquer generalização ou universalização, uma vez que cria ser novo a cada vez.

Ultrapassar a dialética entre nós e eles é uma tarefa espinhosa e repleta de armadilhas, que exige uma ética de alteridade radical. Uma ética que, mais do que compromisso ideológico, compartilha uma condição de resistência e recriação. Ela não pode significar relativizar a existência do colonizador e suas muitas faces. Nem render-se aos relativismos fracos. Não se pode renunciar ao exercício edificante de odiar o colonizador, de identificar a dor que nos causa, o que precisamente nos impele para fora, para o lado B de nós mesmos e do mundo. A perspectiva de transformação é, nesse sentido, antropofágica, segundo uma “linha não-linear” desse conceito, um mosaico que, na teoria, vai dos manifestos de Oswald de Andrade à antropologia deleuziana de Eduardo Viveiros de Castro, passando pelo tropicalismo, o movimento negro, o vivir bien sul-americano, o indigenismo e todas as lutas antimodernas, anticoloniais e minoritárias que contenham um suplemento de vida e alteridade, além de algum comunitarismo autocentrado e redutor.

O desafio de superar, sempre nas transformações e nas lutas, o nós x eles tem por objetivo desbaratar o racismo na base do moderno. A luta final é contra o racismo. Na altermodernidade que já somos, e que podemos ser mais, não existe nós. O que existe antes de qualquer coisa é o outro. E o outro não são eles. Eles (e nós também) só são o outro como limite inferior de existência compartilhada. Então não é caso de redimensionar a dialética, em vez do nós x eles pelo nós x o outro, ou entre Eu x o outro (existencialismo delenda est). Mesmo porque eu não sou o outro do outro. O outro do outro ainda é outro. Então é menos o mundo do outro contraposto ao meu mundo, do que o outro do mundo, em que passo a transitar (eu, nós, eles, e as relações recíprocas).

É preciso depor toda a dialética. O outro é primeiro e “só me interesso pelo que não é meu”. O outro, na verdade, é a condição perspectiva de nós e de eles, de qualquer interioridade ou identidade ou racismo, condição da existência de sociedade e socialidade. Essas formações sociais só podem existir despotenciando o outro, mitigando-o até se tornar uma potência esquálida e sem tensão, uma subtração do outro. Mas o outro continua real, e acessível em cada tempo e espaço. O outro permite comutar condições de luta, tarefa sempre exigente dos sujeitos, e assim formar uma Legião que não é Um, mas Muitos, irredutíveis e singulares. O outro é demoníaco e ameaça o sono dogmático da modernidade. O racismo é um dispositivo anti-alteridade. O grande inimigo da modernidade é o outro.
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REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, Walter. 18 teses sobre o conceito de história. [1940]

COCCO, Giuseppe. Mundobraz: o devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil. 2009.
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. 2005 [1961].
MEZZADRA, Sandro. La condizione postcoloniale. 2008.
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Commonwealth. 2009.
ROCHA, Gláuber. A revolução do cinema novo. 2004 [1963]
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metaphysiques Cannibales. 2008.
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. 2012 [1997]

Fonte: Quadrado dos Loucos

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