abril 19, 2013

"O direito estatal e a luta dos índios: resistência e potência", por Rafael A. F. Zanatta

PICICA: "Será que os direitos indigenas serão mais protegidos se a competência para demarcação for resultado de deliberações entre lideranças do Legislativo intimamente ligadas com produtores rurais que possuem profunda aversão às comunidades tradicionais? Ora, o protesto dos índios não é um sinal claro da desconfiança com relação aos interesses do Congresso Nacional em tutelar os direitos de minorias e populações tradicionais? Não está claro que, para as partes interessadas, a transferência do competência para o Congresso é potencialmente prejudicial?
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Não há legitimidade nesse processo legislativo. Os argumentos são falaciosos, as partes interessadas (os índios) não são ouvidas e não há um verdadeiro debate público. No mais, trata-se de uma estratégia de reforma do direito estatal, do direito do colonizador, que protege o índio como um incapaz. Nesse sentido, o que há de mais belo nesse protesto é aquilo que Bruno Cava ressaltou em seu brilhante texto A Hora do Mau Selvagem: a potência das lutas e confronto com o poder estatal. É o que há de mais legítimo na esquerda: a luta por vida, contra as codificações do sistema.

O direito estatal e a luta dos índios: resistência e potência







Apesar de pouco noticiado, na terça-feira ocorreu em Brasília um dos maiores protestos indígenas do século 21. O Congresso Nacional foi ocupado por centenas de índios que protestavam contra a Proposta de Emenda à Constituição nº 215, elaborada em 2000 por Almir Sá (PEC 215/2000), retomada em 2012 pela bancada ruralista e aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Durante o protesto, o plenário foi ocupado por lideranças indígenas, que tomaram os assentos dos parlamentares. A ocupação incomodou a elite política e gerou comentários reacionários. O deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) caracterizou a invasão como "deplorável". O deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) - formulador do "AI-5 digital" - mostrou seu conservadorismo repressivo típico: "É uma sequência de eventos em que os abusos ocorreram. Já tivemos o cancelamento da reunião da CCJ por conta dos índios. Precisamos de regras mais claras para permitir a entrada aqui no Congresso", disse o representante dos cidadãos mineiros no Legislativo.

Mas, afinal, por que os índios ocuparam a "casa do povo"? O que diz a PEC nº 215?

Basicamente, ela pretende modificar a Constituição Federal para garantir ao Congresso Nacional - e não à União, como ocorre desde 1988 - a competência exclusiva para aprovar demarcações das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. O texto diz: "Art. 1º. Acrescente-se ao art. 49 um inciso após o inciso XV, renumerando-se os demais: Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (...) XVIII - aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homolagadas".

Caso a emenda seja aprovada, ela também modificará o art. 231 da Constituição Federal. É justamente este artigo que garante à União (o Executivo) a competência para aprovar demarcações: "Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

A justificativa para a emenda constitucional, tal como formulada há treze anos, baseia-se em dois argumentos: (i) que a demarcação pelo Executivo se dá sem consulta ao Legislativo e que (ii) a demarcação é um ato de invasão ao território dos Estados-membros: "No sistema de mútuo controle entre os Poderes da República, adotado pela Constituição Brasileira, busca-se o necessário equilíbrio para evitar que no desempenho desmedido das respectivas competências se criem entraves na área de atribuição de outro Poder ou de outra esfera de Poder. (...) No caso da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, verifica-se que implementada a atribuição pela União Federal no caso, por meio do Poder Executivo - sem nenhuma consulta ou consideração aos interesses e situações concretas dos estados-membros -, tem criado insuperáveis obstáculos aos entes da Federação. No fim e ao cabo, a demarcação das terras indígenas consubstancia-se em verdadeira intervenção em território estadual, com a diferença fundamental que, neste caso e ao contrário da intervenção positiva no inciso IV do art. 49, nenhum mecanismo há para controlá-la, ou seja, a falta de critérios estabelecidos em lei torna a demarcação unilateral. Por isso, e valendo-se do próprio precedente constitucional, que exige a aprovação congressual para a intervenção federal, é que se propõe a presente emenda à Constituição, para que o Congresso, em conjunto com as partes interessadas na demarcação, passem a aprovar a demarcação das terras indígenas".

Será que os direitos indigenas serão mais protegidos se a competência para demarcação for resultado de deliberações entre lideranças do Legislativo intimamente ligadas com produtores rurais que possuem profunda aversão às comunidades tradicionais? Ora, o protesto dos índios não é um sinal claro da desconfiança com relação aos interesses do Congresso Nacional em tutelar os direitos de minorias e populações tradicionais? Não está claro que, para as partes interessadas, a transferência do competência para o Congresso é potencialmente prejudicial? 

O que as lideranças indígenas defendem é que os canais de comunicação são muito mais facilitados com o Poder Executivo do que com o Congresso. O argumento elaborado em 2000 é falacioso, não se aplica mais à realidade de 2013. É preciso outro argumento para fundamentar de forma legítima essa Proposta de Emenda à Constituição.

Há ainda um outro fator político, talvez imperceptível sem uma leitura mais crítica do desencadeamento dos fatos em Brasília. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) enxerga as nomeações dos deputados Marco Feliciano (PSC/SP) e Blairo Maggi (PR/MT) para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e Comissão de Meio Ambiente do Senado, respectivamente, como uma estratégia de enfraquecimento das pautas a respeito dos direitos dos indígenas. A PEC iria consolidar essa agenda de proteção dos interesses ruralistas através de um mecanismos formalmente legítimo (uma vez atribuído por meio da Constituição Federal), aprovado pelos representantes do "povo". Não bastasse a manipulação do Judiciário para opressão indígena (cf. 'O Sangue a Luta dos Índios Guarani-Kaiowá: uma análise a partir da sociologia jurídica'), a estratégia da elite europeizada brasileira é a de retirar do Executivo (Partidos dos Trabalhadores) o poder de consolidação de uma agenda de proteção dos índios e de garantia do uso tradicional de suas terras - ocupadas por nós, colonizadores.

Não há legitimidade nesse processo legislativo. Os argumentos são falaciosos, as partes interessadas (os índios) não são ouvidas e não há um verdadeiro debate público. No mais, trata-se de uma estratégia de reforma do direito estatal, do direito do colonizador, que protege o índio como um incapaz. Nesse sentido, o que há de mais belo nesse protesto é aquilo que Bruno Cava ressaltou em seu brilhante texto A Hora do Mau Selvagem: a potência das lutas e confronto com o poder estatal. É o que há de mais legítimo na esquerda: a luta por vida, contra as codificações do sistema.

Fonte: E-MANCIPAÇÃO

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