abril 20, 2013

"Práticas migratórias e movimentos na história: índios urbanos", por Tania C. Clemente de Souza e José Wilhame Pinto Araújo

PICICA: "Segundo dados do IBGE, há um contingente aproximado de 30.000 índios vivendo no Rio de Janeiro, pertencentes a diferentes etnias oriundas de várias regiões do Brasil. Contradizendo esses dados, o Estado e a Funai afirmam haver apenas um total aproximado de 500 índios Guarani, não incluindo nesse total os índios urbanos. A presença, porém, de índios de diferentes etnias no estado é facilmente comprovada. Num encontro realizado na UERJ no ano passado, foi registrada a presença de diferentes etnias, tais como: Guajajara, Krikati, Tukano, Xukuru Kariri, Tembé, Guarani, Pataxó, Tikuna, Kaiapó e Tabajara. Válido é afirmar que os representantes dessas etnias vivem no Rio de Janeiro, ou como diz José Guajajara “vivem em cinco complexos: Maré, Rocinha, Alemão, Jacarezinho e Juramento”.

O exemplo desse apagamento da ordem do burocrático vem ao encontro de um imaginário de que lugar de índio não é na cidade, e sim nas aldeias. Essa é uma naturalização que tem por base um imaginário que se institui na força de um conflito entre identidade e alteridade. O conceito de imaginário implica dinâmica e processo, opera clichês, cristalização ideológica. O imaginário se constrói na base de uma interação constituída de mecanismos discursivos que jogam com o “eu” e o “outro”. E o que se entende por índio imaginário? O índio imaginário é, assim, um ser de ficção ao qual se junta um sem número de valores ideológicos de todo gênero: o primitivo, o herói idealizado, o exótico, o ser ecológico, o político, e que, ao mesmo tempo, exclui o índio (do) urbano."

Práticas migratórias e movimentos na história: índios urbanos


por Tania C. Clemente de Souza – UFRJ
e José Wilhame Pinto Araújo (José Guajajara) – UFRJ

O trabalho atual é parte de um projeto que visa entender a relação do índio urbano com a cidade. Uma relação, no caso, cercada de conflitos dentre os quais estão os movimentos de ocupação de certos espaços pelo índio. Por ora, vamos falar do movimento de ocupação de uma área de Niterói, a praia de Camboinhas, colocando em pauta o tratamento dado à questão pela mídia e pelos “especialistas”.

Segundo dados do IBGE, há um contingente aproximado de 30.000 índios vivendo no Rio de Janeiro, pertencentes a diferentes etnias oriundas de várias regiões do Brasil. Contradizendo esses dados, o Estado e a Funai afirmam haver apenas um total aproximado de 500 índios Guarani, não incluindo nesse total os índios urbanos. A presença, porém, de índios de diferentes etnias no estado é facilmente comprovada. Num encontro realizado na UERJ no ano passado, foi registrada a presença de diferentes etnias, tais como: Guajajara, Krikati, Tukano, Xukuru Kariri, Tembé, Guarani, Pataxó, Tikuna, Kaiapó e Tabajara. Válido é afirmar que os representantes dessas etnias vivem no Rio de Janeiro, ou como diz José Guajajara “vivem em cinco complexos: Maré, Rocinha, Alemão, Jacarezinho e Juramento”.

O exemplo desse apagamento da ordem do burocrático vem ao encontro de um imaginário de que lugar de índio não é na cidade, e sim nas aldeias. Essa é uma naturalização que tem por base um imaginário que se institui na força de um conflito entre identidade e alteridade. O conceito de imaginário implica dinâmica e processo, opera clichês, cristalização ideológica. O imaginário se constrói na base de uma interação constituída de mecanismos discursivos que jogam com o “eu” e o “outro”. E o que se entende por índio imaginário? O índio imaginário é, assim, um ser de ficção ao qual se junta um sem número de valores ideológicos de todo gênero: o primitivo, o herói idealizado, o exótico, o ser ecológico, o político, e que, ao mesmo tempo, exclui o índio (do) urbano.

E é justamente esse imaginário que trabalha as vozes que se colocam contra a presença de índios em Camboinhas, balneário de classe media, como se verifica, por exemplo, no jogo de diagramação da primeira página do Jornal O Globo (Caderno de Niterói, 28/02/2010).Ao lado da chamada principal – “Áreas nobres têm altos índices de homicídio” – há dois blocos de chamada menores onde se lê: “Praias – Dados do Inea mostram que caiu a balneabilidade” e “Índios em Cambinhas – Tribo ainda está no bairro”, onde se percebe, claramente, a associação entre o nível de violência do local e a presença dos índios em Camboinhas. Desde 2004, os Guarani vêm, num processo esparso, ocupando essa área e desde 2007 este grupo cresceu em número com a presença de várias famílias, dando lugar, num processo direto, à formação de uma aldeia Guarani. 

A escolha por Camboinhas não é aleatória. Nessa área se encontram cinco sambaquis: Duna Grande, Duna Pequena, Camboinhas, Sossego e Pontal, nomeação dada pela arqueóloga Lina Kneip. A datação mais antiga (e mais profunda) desses sambaquis é de aproximadamente 4475 AP e a mais recente é de aproximadamente 1410 AP, ficando este 80 cm acima do sambaqui mais antigo. Aí também foi localizado um cemitério indígena com datação de 1500 AP. 

A junção desses dois dados, além do histórico da colonização, favorece a dedução de que toda esta área de Niterói (loteada com mansões e condomínios) já foi território indígena, por isso o desejo – e até mesmo o direito – dos Guarani em aí se estabelecerem. Entretanto, o mesmo discurso científico que comprova a datação, desautoriza, no caso, os Guarani a pleitearem direitos sobre a área. Segundo arqueólogos, ali habitou o povo denominado Termiminó, povo de Araribóia, filiado à linhagem Tupinambá. Logo, nesse sítio, não se atestaria a presença dos Guarani, e sim de outros grupos Tupi. Eis aí a forma em termos discursivos, mas com base de cunho científico, para se definir terra, no caso, uma definição pensada em âmbito tribal estrito. Por consequência, uma terra devoluta, imemorial, já que não mais existem os Termiminó, nem os Tupinambá.

A outra face da história revela, porém, de que forma podemos deslizar o sentido tribal de terra para o sentido étnico de território: os Guarani, por se filiarem ao Tupi, mesma filiação dos Termiminó, pleiteiam um território indígena. Lembrando, aqui, Cardoso de Oliveira, “é preciso fazer essa diferença entre terra e território. Terra é uma mercadoria. Território é o país! Para o índio, o que se discute é seu país. Para o branco colonizador considerando esse processo de colonialismo interno que vivenciamos ainda hoje, discute-se uma mercadoria, o valor da terra e do que se encontra nela”. É bom lembrar, também, que Camboinhas é alvo de grande especulação imobiliária. Mas não é,explicitamente e exclusivamente, o discurso da especulação que coloca impedimentos à ocupação pelos Guarani. Dois outros aspectos são inseridos na discussão.

A datação mais antiga negaria ao indígena o pleito pelo território: um povo mais antigo, pré-indígena, chamado de sambaquieiro, teria habitado a região. Há pesquisas arqueológicas atuais (como as da arqueóloga Rita Scheel-Ybert, do Museu Nacional) que vêm atualizando a presença dos Tupinambá no litoral do Rio de Janeiro em aproximadamente 4500 AP, no entanto, argumentos de outra ordem somam aos da arqueologia na esfera desse conflito. Na matéria do Globo, já citada acima, a razão principal para a retirada dos Guarani residiria no fato de os mesmos estarem instalados numa reserva ambiental que, segundo o Instituto Estadual do Ambiente, faz parte do Parque Estadual da Serra da Tiririca, por isso, o Inea informa que eles terão que ser retirados. Curioso é verificar que no mesmo jornal, do dia 27 de junho de 2010, uma grande reportagem, ilustrada com gráficos e mapas, divulga um estudo feito pelo Tribunal de contas do Município que revela que “a cidade do Rio já tem 65 favelas [ocupando] em parte ou totalmente áreas de preservação ambiental”. 

Enfim há um todo um cálculo, um bom arrazoado de fatores, para disciplinarizar o urbano face à presença do índio. Lidamos com diferentes prismas sobre um mesmo fato: o Inea conclama a retirada do índio da reserva; o TCM revela a ocupação das reservas. Lembrando Orlandi (2001): “Quem decide esses sentidos? O político.” E é pelo político que procuramos entender os movimentos do índio urbano: que se movimentam tanto nos “complexos” (Rocinha, Alemão, Maré…), quanto nas reservas ambientais, ou em casarões históricos (como o prédio em ruínas do ex Museu do Índio). São esses espaços pontos de fuga onde o índio se recolhe, encolhe, se mostra. Locais que acabam por re-significar toda uma memória discursiva transversa sobre as antigas rotas migratórias tribais. Todos esses movimentos vão além de simples movimentos na história: é toda uma identidade em movimento – a do índio urbano.

TEKOÁ YTARYPU.

José Guajajara.

Fonte: União Campo Cidade e Floresta

Nenhum comentário: