abril 12, 2013

"¿Quién puede matar a un niño? de Narciso Ibáñez Serrador", por Leandro Calbentes

PICICA: "O filme começa com uma montagem de alguns minutos de imagens que registram situações reais de violências contra crianças. São imagens de guerras e situações de exceção, nas quais as crianças sofrem e são massacradas pela loucura dos adultos. Essa inserção documental, que poderia muito bem ter sido deixada de lado, serve apenas para reforçar um nexo explicativo claro para a trama: a revolta infantil não é contra esse ou aquele adulto, mas sim contra o próprio mundo adulto, no qual é possível que milhares e milhares de criança morram de fome, de ataques, guerras, doenças, etc. Enfim, é uma revolta contra um mundo incapaz de olhar para as crianças, de garantir-lhes um espaço, uma zona de proteção." 


O filme espanhol ¿Quién puede matar a un niño? (algo como Quem pode matar uma criança?) é uma interessante variação do gênero de terror apocalíptico. A trama começa com a viagem de um casal de turistas, Tom e Evelyn, que pretendem passar alguns dias descansando numa pequena e tranqüila ilha espanhola. Tom esteve na ilha durante sua infância e pretende aproveitar a parte final da gravidez de sua esposa para passar algum tempo sossegado num lugar que não atrai a agitação comum dos turistas. Porém, algo estranho está ocorrendo no local. As primeiras evidências são as de corpos de adultos que apareceram mortos numa localidade vizinha. Ninguém sabe de onde aqueles corpos saíram. Ainda assim, os dois decidem seguir a viagem e alugam uma pequena embarcação. Quando chegam ao local, o mistério vai apenas aumentando. A ilha parece completamente abandonada de todos os adultos, o casal encontra apenas algumas crianças que os encaram com desconfiança e nervosismo. É como se todos os adultos tivessem partido, ou sumido. Diante desse cenário estranho e misterioso, o casal busca abrigo no único hotel da cidade. Lá também não encontram nenhum adulto. Deparam apenas com mais sinais desconcertantes: a comida do dia anterior se encontra abandonada no restaurante do hotel, como se alguém tivesse fugido com urgência, sem poder arrumar nada. A partir de então, o mistério revela um cenário catastrófico. Eles encontram primeiro o corpo de um homem morto, em seguida vêem uma menina espancando um homem idoso, finalmente descobrem a existência de um número cada vez maior de mortos, todos adultos, todos violentamente assassinados. Quando encontram o único adulto vivo, um pescador que vive na ilha, ele explica que algo aconteceu com as crianças, estas parecem terem sido tomadas por uma loucura coletiva, ou alguma forma de transe violento e passaram a atacar todos os adultos. O estado das crianças parece ser contagioso: quando elas se aproximam das crianças ainda dóceis, estas passam a agir com a mesma violência. Desconcertados com tal relato inverossímil, como acreditar que inocentes crianças podem ser tomadas por uma fúria assassina e tentar matar todos os adultos, o casal tenta desesperadamente entender o que está acontecendo. Mas mesmo o pescador que presenciou o massacre parece incapaz de acreditar no que viu. Tanto é que quando sua filha o chama, dizendo que precisa de ajuda, ele logo acredita e tem o mesmo destino dos demais habitantes da região, é assassinado pelas crianças. Nesse sentido, o filme opera com o contraste entre uma representação da infância como um tempo de inocência e pureza e a possibilidade mesma das crianças exercerem um gesto de completa (e violenta) destruição da ordem adulta. O desconcerto de Tom e Evelyn, mas também dos moradores da ilha, não é provocado apenas pela violência dos assassinatos que foram cometidos, mas principalmente pelo fato dos agressores serem apenas crianças. Como a infância pode se revoltar e tentar destruir o mundo adulto? O sentido apocalíptico do filme nasce justamente da impossibilidade de compreender tal possibilidade. A violência infantil implica numa ameaça direta à própria continuidade do mundo. A loucura das crianças aparece simplesmente como uma espécie de revolta vingativa contra a ordem mesma que os adultos carregam consigo. Nesse sentido, o filme utiliza um recurso bem pouco sutil para explicitar sua tese (o que constitui também o principal problema do filme, a falta de sutiliza na construção de sua tese). O filme começa com uma montagem de alguns minutos de imagens que registram situações reais de violências contra crianças. São imagens de guerras e situações de exceção, nas quais as crianças sofrem e são massacradas pela loucura dos adultos. Essa inserção documental, que poderia muito bem ter sido deixada de lado, serve apenas para reforçar um nexo explicativo claro para a trama: a revolta infantil não é contra esse ou aquele adulto, mas sim contra o próprio mundo adulto, no qual é possível que milhares e milhares de criança morram de fome, de ataques, guerras, doenças, etc. Enfim, é uma revolta contra um mundo incapaz de olhar para as crianças, de garantir-lhes um espaço, uma zona de proteção. É por isso que as crianças querem não apenas destruir fisicamente os adultos, mas desmoronar o mundo que estes construíram e mantêm. E diante dessa potência negativa, não existe remédio ou resposta: deixar as crianças agirem implica na destruição completa, mas detê-las também resultaria no mesmo. Afinal, são estas que estão encarregadas de garantir a continuidade mesma do mundo, na medida em que se tornarão adultas eventualmente. É por isso que o filme ganha interesse. A proposta apocalíptica de crianças que se levantam contra a sociedade é muito mais ameaçadora do que, por exemplo, uma horda de zumbis que se levantam contra os vivos. Estes são elementos essencialmente externos à sociedade: podem invadi-la, destruí-la, mas em última instância é possível se proteger deles, mantendo de alguma maneira os resquícios de ordem necessário para a manutenção do tecido social (em grande medida, podemos entender os filmes de George Romero como uma reflexão sobre isso, sobre o que sobra da sociedade diante da ameaça dos mortos). Na medida em que as crianças são tomadas por uma loucura vingativa, não resta nenhuma proteção ou possibilidade de manter a estrutura mesma da sociedade adulta. O mundo se encontra fadado a terminar, ou pelo menos o mundo que é conhecido e está estabelecido. A revolta infantil se torna, assim, uma espécie de negativo, ou melhor, de uma desconstrução de uma tópica central da modernidade, qual seja, a do governo da infância. De maneira muito simples, é a ideia de que a infância é um momento de docilidade, na qual nos deparamos com seres que podem ser moldados e conduzidos de acordo com propósitos definidos e claros. Esse processo de condução das crianças é o que chamamos de educação e é aquilo que garante a continuidade do mundo, na medida em que as crianças são introduzidas numa ordem que lhes é anterior e que deverão abraçar no futuro. É isso que torna compreensível, por exemplo, uma afirmação como esta: a “educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens”. O amor ao mundo seria a transmissão dessa ordem existente para o infante, garantindo o movimento de renovação e perpetuação do mundo. A revolta infantil é a recusa desse movimento e de sua vontade educativa, desse governo da infância que acompanha nossa modernidade. Por isso, ela traz um sentido ambivalente, ao mesmo tempo é um gesto de ruína, de vontade de arruinar esse mundo, mas também traz consigo uma abertura para a recriação do mundo. Uma recriação infantil do mundo. A cena final é muito clara, as crianças tomaram controle da ilha e agora pretendem espalhar sua revolta para o resto do mundo. Ou como uma delas diz, “brincar com outras crianças”.
Fonte: Ensaios Ababelados

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