junho 10, 2013

"A Epidemia da Claque", por Bruno Torturra

PICICA: "Todo meu respeito, toda minha compaixão aos dependentes, às famílias que sofrem com isso, aos muitos que se dedicam a ajudá-los. Reconheço também que existe uma verdade por trás do plano desastrado de Osmar Terra: há uma urgência real em lidarmos com o assunto. Mas, como em toda questão urgente, a primeira coisa a fazer é garantir a lucidez. 

Entendam: dependentes químicos são a minoria absoluta dos que usam drogas ilegais. E isso não é uma epidemia. Isso é normal. E o melhor que podemos fazer por eles, e por nós mesmos, é tratá-los, antes de tudo, como pessoas normais, que fizeram algo arriscado, e normal, como usar drogas. E, lamento informar, as únicas pessoas que tem condição de demonstrar isso, de servir como vacina para o vírus do proibicionismo, são os incontáveis e não rotuláveis usuários de drogas."


A Epidemia da Claque


A votação do projeto de Osmar Terra na Câmara prova: a histeria, a paranóia e a hipocrisia proibicionistas se alastram muito mais rápido que o crack. Contra essa epidemia, pode haver uma cura. É hora dos usuários de drogas, como eu, saírem do armário de uma vez.
  
             
OsmarTerra
Osmar Terra no plenário. Segurando um saco com a quantidade de pedra que um usuário de crack usa em 10 dias.

Ainda não sei se foi um mero teste de nervos ou puro masoquismo. O fato é que não saí ileso depois de ter assistido à votação do PL anti-drogas no início da noite de ontem. Nem tanto por conta do resultado, já previsto: aprovado com ampla margem. Muito mais pelas falas, pela deplorável argumentação de tantos de nossos excelentíssimos representantes. Pelo desfile de clichês, de ideias preconcebidas e moralismo – que já seriam ofensivos o bastante se fossem, enfim, sinceros. E eram sinceros, em meia dúzia por ali. Mas o tom, a empostação, a evidente falta de talento dramático de tantos deputados era a mais pura e bem destilada hipocrisia.

O fracasso mundial da lógica repressiva, e exemplos internacionais cada vez mais férteis do sucesso de políticas de redução de danos e penas, deveria obrigar qualquer parlamento decente a discutir o assunto com… sobriedade. Qualquer parlamento decente… não o nosso. Aqui, a discussão parte de uma tese vendida no atacado e no varejo. Planalto, ministérios, jornais, revistas, taxistas e manicures são unânimes: o Brasil vive uma EPIDEMIA DO CRACK. Algo TEM que ser feito.

É com esse meme no bolso que Osmar Terra sobe em tribunas. E gaba-se de ser médico para comprovar sua tese epidêmica. Chama a droga de vírus. Afirma no plenário que sua intenção é contê-lo. Acabar com a epidemia. Limpar o Brasil dessa infecção. Perdi a conta de quantos deputados repetiram o clichê. De quantos falaram em nome das famílias, das crianças, dos jovens que eram vítimas dessa moléstia nefasta chamada crack; às vezes chamada droga; às vezes chamada maconha…

Uma metáfora que se tornou real na cabeça das pessoas. Cria-se a ideia de que a droga é um agente em si, capaz de se multiplicar e se instalar ma sociedade. O traficante se torna um dissimulado propagador da enfermidade. O usuário, primeiro vítima, agora é um foco da doença. Melhor ser contido, ou melhor, internado à força antes que contamine alguém. 

O que antes era o diabo, agora é um vírus. O que antes era uma maldição, agora é uma epidemia. O mesmo moralismo, a mesma agenda do medo que agora se traveste de ciência para reproduzir a premissa proibicionista de sempre: precisamos livrar nossa sociedade das drogas. E ai de quem ponderar, defender algo que não signifique a erradicação da pólio. Quer dizer, das drogas.

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“Pessoas legais usam drogas”

O vírus do Terra

Osmar Terra e seu relator do projeto, o deputado Carimbão, apresentavam suas credenciais: viajaram 20 países em busca de exemplos. “20!”, bradavam de dedo em riste. Rodaram o Brasil todo e viram, pessoalmente, o drama de famílias e viciados. Abriram sei lá quantas audiências no congresso. Viram as cracolândias, as comunidades terapêuticas, os mortos. Estiveram lá. Eles, mais que qualquer outro no plenário, sabem qual é a realidade de quem infectou-se pelo vírus. Chegaram a dizer que traficante de drogas é pior que assassino. Pois matam no atacado… E, respondendo uma repórter na Câmara, Terra disse que a PM e o Judiciário são confiáveis na hora de diferenciar um usuário de um traficante. É pra rir?

Agora pergunto: quantos usuários de drogas típicos eles conheceram? Quantos dos mais de 90% de usuários de drogas ilícitas que não desenvolveram vícios ou problemas significativos foram escutados por eles? A quantos cultivadores de maconha eles tiveram acesso nessa turnê? Quantos contribuintes em dia com o fisco que fumaram crack uma, duas, vinte vezes na vida eles souberam da existência? Já viram um sujeito na natureza sob o efeito de LSD? Uma turma de amigos sob efeito de ecstasy? Um casal, que cria seus filhos sem dificuldades, que cheira pó para trepar de vez em quando? Um idoso que fuma maconha há 50 anos? Uma família ayahuasqueira? Onde estava o Osmar Terra que não veio falar comigo ou com meus amigos? 

É sempre a mesma ladainha: todo “especialista” em drogas que defende o proibicionismo e a abstinência como saídas, invariavelmente parte de uma premissa e um universo só. Um recorte absolutamente minoritário na população que se droga no mundo: o dos dependentes químicos que arruinaram parte de suas vidas. 

Aqui está o equívoco mais sério na visão pública sobre drogas. Que para mim precisa ser superado se quisermos de fato (para repetir outro clichê legislativo) “aprofundar o debate”. A ideia histérica, e absolutamente oca, de que drogas são necessariamente ruins. De que o drogado sempre tem um problema. De que a abstinência é um estado mais seguro, desejável e… correto. De que a sociedade precisa fazer tudo para separar as pessoas de substâncias psicoativas.

Pois eu digo: essa ideia é um vírus. 

Um perfeito meme, pela definição de Dawkins, que criou, sim, vida própria. Evolui, propaga-se e disputa consciências com as armas que tem. Cruzou com outros vírus meméticos: religiões, moralismo, o homem de bem. Há décadas vem criando uma epidemia ideológica no mundo. Causa cegueira mental, crises de pânico e histeria coletivas. Gerou sintomas como o monopólio do crime na venda de drogas. Criminalizou, marginalizou, jogou nas sombras uma atividade humana tão natural e diversa quanto nossa sexualidade e nossa espiritualidade: drogar-se. Enfiou milhões de pessoas na cadeia. Matou centenas de milhares em uma guerra sem vitória possível. 

O vírus proibicionista gerou, inclusive, o próprio crack. E, finalmente, o batizou de epidemia. Para o delírio da multidão que, já contaminada, aplaude obediente como uma claque todos aqueles que, como Osmar Terra, se apresentam para combatê-lo. Oferecendo uma cura que, comprovadamente, é a própria doença.

Eu: Paciente

Esse pensamento era o piso de toda a argumentação de Ronaldo Laranjeira no Roda Viva da segunda passada. O médico que acabou se tornando a maior autoridade proibicionista no Brasil, defendeu por uma hora e meia, diante de uma banca bem informada e contestadora, a tese de que não há espaço para moderação com drogas. Devem ser evitadas, combatidas, exterminadas. Finge que é ciência sua moral. Inventa dados que não existem. Desqualifica pesquisas que não respaldam suas opiniões. Fez de tudo para manter sua aura de protetor dos jovens e das famílias. E, claro, manter seu mui bem remunerado negócio de clínicas de internação para dependentes. E seu mui estratégico cargo no comando da política de drogas no governo Alckmin.


Digo isso porque eu estava na bancada do Roda Viva. Não como entrevistador, mas como “tuiteiro” (era o nome que me deram no ar). Não representava o Roda Viva, muito menos a TV Cultura. Era minha rede pessoal, e foram minhas opiniões e observações que repercuti. Questionei as asneiras que Laranjeira disse. Sistematicamente. E foi só.

Ontem, no começo da tarde, começo a receber trocentas mensagens agressivas de gente de gramática capenga. E descubro: o blogueiro muso dos neoreaças, o guru da direita anencéfala, Reinaldo Azevedo, decidiu me denunciar. Me acusou de difamar Laranjeira, de ter tomado um espaço televisivo público para avançar minha agenda. Me acusou de petista (não diga…) e, em um raro momento de dúvida sobre minha pessoa, admitiu: “não sei se ele é maconheiro”.

Pois, como nunca foi segredo para ninguém, respondo: sou. Aliás, não apenas.

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Em um cultivo perfeitamente legal de maconha medicinal na California.

Uso drogas regularmente há 15 anos. Algumas com instável recorrência, outras possivelmente nunca mais. A lista é grande. Apenas as ilegais: maconha (em diferentes formas), LSD, MDMA, Mescalina, Cogumelos Mágicos (Amanita Muscaria e Psilocybes), Ayahuasca, DMT, 5MeoDMT, Bufotenina, Efedrina, Absinto, GHB, 2C-B, 2C-E, 2CT-7, Poppers, Mefedrona, Ketamina, LSA, Catinona, Óxido Nitroso… tem mais. Mas acho que deixei claro meu ponto.

Nunca, repito, nunca tive problemas sérios por conta delas. Sempre tive muito cuidado ao experimentá-las. Sempre li sobre as doses, farmacologia, efeitos e efeitos colaterais. Procurei não relacionar drogas com loucura, excesso ou destrutividade. Sempre tomei cuidado para não usá-las quando estava deprimido. Sempre tive certeza de que havia riscos envolvidos. Nunca os tirei da minha conta. 

Nunca desenvolvi dependência, nunca senti qualquer sequela, nunca me feri, nunca tive overdose, nunca gastei o dinheiro que não tinha, nunca devi nada por conta delas, nunca perdi o controle sob o efeito de nada (exceto uma ou duas vezes que caí no chão por conta de álcool). Das mais de 100 experiências psicodélicas que tive, nenhuma merece o nome de bad trip. Das que provei, gostei de todas. Nunca me arrependi. Das que tive chance de tentar, recusei apenas heroína, crack e inalantes de todo tipo. Nunca usei lança perfume, por exemplo, pois faz mal demais ao cérebro.

Nunca fui a uma boca de fumo. Comprei muitas vezes das mãos de amigos que tinham algo sobrando. Os únicos traficantes de fato que conheci eram policiais civis. Há muitos anos me recuso a lidar com eles. Por princípio. E por ter nojo.

Porque me recuso a comprar, temo cultivar, e a qualidade no Brasil é péssima, fumo pouca maconha. Uma pena. A droga que mais uso hoje em dia certamente é o álcool. 

Osmar Terra, Laranjeira, Carimbão e os deputados falam do drama das famílias de drogados. Pois bem… minha família sabe da minha condição de usuário. E não é isso que tira o sono deles. Pelo contrário. Depois de muitas conversas honestas, muitas vezes difíceis, entenderam que, no meu caso pelo menos, drogas foram muito positivas. 

Uso recreativo? Sim. Hedonismo? Com certeza. Mas não exatamente. Drogas para mim não são diversão apenas. São aliadas, ferramentas insubstituíveis na minha busca por mais compreensão, em relação ao mundo e a mim mesmo. Me ajudaram a modular meu cérebro, meus sentidos, para ver, pensar e sentir além do banal. Me conectaram profundamente com amigos e com a natureza. Catalizaram algumas das melhores farras da minha vida.  Fizeram fichas cósmicas caírem dentro de mim. Me levaram para longe da sobriedade para ganhar parâmetros – e ver mais beleza na minha realidade convencional. Algumas, principalmente o LSD e a Ayahuasca, me abriram os sentidos para uma dimensão espiritual e cármica da vida. Sou mais feliz, consciente e cuidadoso por conta do que e vi e senti sob o efeito delas.

O silêncio dos nada inocentes
 
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Sei muito bem que drogas podem fazer mal. Podem alienar, sequelar, matar. Podem de fato ser uma prisão. Mas preciso dizer com todas as letras: na minha vida elas só me libertaram.

Para que essa confissão, esse B.O. todo? Porque, como disse no início, não saí ileso da votação de ontem no congresso. Vi, claramente, como esse país está sendo varrido por uma epidemia insidiosa. Por um vírus que quando se instala é muito difícil tratar. E penso, de dedo em riste, que temos que proteger os jovens, e principalmente as famílias dele! Dessa epidemia de medo, hipocrisia e desinformação. 

Porque senti no fígado algo que já estava no meu cérebro: o principal aliado de Terras, Carimbões e Laranjeiras, o principal agente transmissor do vírus proibicionista é o silêncio, a omissão, a vergonha dos que, como eu, usam drogas e não tem um problema.

Todo meu respeito, toda minha compaixão aos dependentes, às famílias que sofrem com isso, aos muitos que se dedicam a ajudá-los. Reconheço também que existe uma verdade por trás do plano desastrado de Osmar Terra: há uma urgência real em lidarmos com o assunto. Mas, como em toda questão urgente, a primeira coisa a fazer é garantir a lucidez. 

Entendam: dependentes químicos são a minoria absoluta dos que usam drogas ilegais. E isso não é uma epidemia. Isso é normal. E o melhor que podemos fazer por eles, e por nós mesmos, é tratá-los, antes de tudo, como pessoas normais, que fizeram algo arriscado, e normal, como usar drogas. E, lamento informar, as únicas pessoas que tem condição de demonstrar isso, de servir como vacina para o vírus do proibicionismo, são os incontáveis e não rotuláveis usuários de drogas. 

Se vocês contassem para suas famílias, assumissem em casa e na rua, fizessem questão de quebrar esteriótipos e paranóias… o maniqueísmo e a demonização das drogas começaria a se restringir aos mais paranóicos e moralistas de vocação. Mas, antes de tudo, seria bom que os milhões que consomem drogas sem grandes dramas assumissem para si mesmos que, enquanto elas forem proibidas, sua escolha tem consequências muito além do seu corpo e mente. 

E que enquanto você não se posicionar, não sair do armário, não entender a importância real de erradicar a proibição do mundo, seu papel no fundo é o mesmo de Osmar Terra e do Congresso Nacional. Inconsciente ou hipocritamente: financiar o crime, abarrotar cadeias e marginalizar dependentes. E, aplaudindo ou não a repressão, vai seguir fazendo parte dessa enorme claque.

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E para encerrar em melhores tons, alguém mais articulado, inspirado, inteligente e drogado do que eu.

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