junho 16, 2013

"Nós somos os 20 centavos", por Bruno Cava

PICICA: "Os fantoches da imprensa insistem que não tem motivo real por trás dos levantes, viveríamos numa época de desenvolvimento e prosperidade, com oportunidades para todos. O resto é baderna. Que seria induzida, irresponsavelmente, por minúsculos aparelhos pseudorrevolucionários. Me angustia só de imaginar que argumento usar com um jornalista que acredita sermos nós os manipulados por ideologias e agendas ocultas, e ele o guardião dos fatos e do interesse geral. Não sei nem por onde começar, para explicar que maior vandalismo consiste em demolir favelas, remover ocupações, caçar camelôs, artistas e moradores de rua, precarizar os serviços públicos, vandalizar o próprio corpo das pessoas, humilhá-las, espancá-las, torturá-las como política oficial de choque de ordem e modernização. A aniquilação de Pinheirinho, uma comunidade construída na alegria e autonomia, e que produziu 6.500 sem tetos da noite para o dia, não seria o maior exemplo de vandalismo? E o que acontece cotidianamente com os pobres, os negros, os índios… ou com os manifestantes em geral? Doravante presos só por se manifestarem, por portarem máscaras ou frascos de vinagre, presos até por levarem tiros de borracha (levou tiro? então tá preso!). Um vandalismo de estado que jamais alcança as manchetes negativas; pelo contrário, é incentivado e elogiado com a maior boa consciência, direto da comodidade do sofá, do almoço de domingo ou da rodinha de Outback."
 
Nós somos os 20 centavos
 


Quando voltamos à Presidente Vargas, logo depois do carnaval na ALERJ, devíamos ser umas mil e quinhentas, talvez duas mil pessoas. Circulava a ideia de que aquele lindo protesto deveria se encerrar na Central, o coração do sistema de transportes da cidade. O fato é que tudo poderia acontecer. Desordenados, nessa hora já sem carros de som e com poucas bandeiras, éramos uma massa flutuante, um exército brancaleônico, mas partilhando uma grande sensação de poder.  Derramava-se pelas ruas como uma mancha de óleo, sem lógica aparente.

Eu não conhecia quase ninguém, um bom sinal. Estava contente em, depois de um tempo, sentir uma marcha com tantos rostos diferentes daqueles que você costuma topar no circuito militante. Vi muitos jovens na faixa dos 20 anos, e também secundaristas, adolescentes encapuzados de quinze, dezesseis anos. Um número grande de mulheres, possivelmente a maioria. A fantasia da situação só podia embriagar quem se habituou a frequentar protestos com cem ou duzentas pessoas, geralmente as mesmas. Naquela quinta à noite, estava acontecendo. Afinal! Fica difícil avaliar agora, se é por causa da Turquia, do Passe Livre, da oposição aos governos, de uma cauda longa de coletivos, redes e grupos espessando forças, ou de uma insatisfação estrutural difusa, porém imensa, finalmente condensada no nível dos corpos. Em qualquer caso, o resultado era um primeiro tumulto à altura para confrontar o crime do poder do novo Rio.

Os fantoches da imprensa insistem que não tem motivo real por trás dos levantes, viveríamos numa época de desenvolvimento e prosperidade, com oportunidades para todos. O resto é baderna. Que seria induzida, irresponsavelmente, por minúsculos aparelhos pseudorrevolucionários. Me angustia só de imaginar que argumento usar com um jornalista que acredita sermos nós os manipulados por ideologias e agendas ocultas, e ele o guardião dos fatos e do interesse geral. Não sei nem por onde começar, para explicar que maior vandalismo consiste em demolir favelas, remover ocupações, caçar camelôs, artistas e moradores de rua, precarizar os serviços públicos, vandalizar o próprio corpo das pessoas, humilhá-las, espancá-las, torturá-las como política oficial de choque de ordem e modernização. A aniquilação de Pinheirinho, uma comunidade construída na alegria e autonomia, e que produziu 6.500 sem tetos da noite para o dia, não seria o maior exemplo de vandalismo? E o que acontece cotidianamente com os pobres, os negros, os índios… ou com os manifestantes em geral? Doravante presos só por se manifestarem, por portarem máscaras ou frascos de vinagre, presos até por levarem tiros de borracha (levou tiro? então tá preso!). Um vandalismo de estado que jamais alcança as manchetes negativas; pelo contrário, é incentivado e elogiado com a maior boa consciência, direto da comodidade do sofá, do almoço de domingo ou da rodinha de Outback.

Perto da Candelária, notei que os manifestantes não perdiam tempo com mais esse cinismo jornalístico, com o bom tom medioclassista, expulsando um âncora da rede Globo sob chuva de xingamentos. É a rua aplicando a sua própria Ley de Medios, já que o governo Dilma não tem “correlação de força”.

Essa juventude possivelmente perceba como já estão entregando um mundo pronto pra ela, onde ela não tenha muito o que fazer de diferente. Um mundo renderizado, paisagens plásticas do novo Brasil, construídas sobre a violência e a exploração, e onde a juventude tenha simplesmente que se adaptar. Adaptar ou fracassar. É preciso preparar-se obsessivamente para o mercado de trabalho, qualificar-se para a competitividade sem limites do crescimento econômico. Ser bem sucedido, custe o que custar. A crise aqui se desdobra como “crise do crescimento”, uma crise da subjetividade, de ter de participar de uma realidade que não construiu, nem com a qual se identifique, uma realidade insuportavelmente cínica. Hoje, a juventude não tem nenhum direito, nasce já abarrotada de deveres. Deve galgar um status para comprar apartamento bem localizado e carro particular, ter um bom plano de saúde, previdência privada, juntar o suficiente para colocar os filhos em escola particular, e assim por diante. E se não conseguir, a culpa é sua. Se está espremida dentro de um ônibus, é porque fracassou em comprar um carro. Se está sofrendo numa fila de hospital, é porque fracassou em pagar um plano de saúde. Não se esforçou o bastante, não teve mérito: a culpa é sempre sua. Nunca de uma organização social que não somente nega os direitos mais básicos (saúde, educação, serviços decentes…), como faz cada um sentir-se individualmente culpado por isso.

Vivenciamos levantes antissistêmicos.

Em tempos de prosperidade e crescimento, a população está soterrada de cobranças e culpas, e não lhe oferecem muitas opções para livrar-se do fardo, que não um inglório esforço de adaptação acrítica, ou autoajuda e terapias, ou tarjas pretas, ou uma combinação das três soluções. Daí eu possa entender um rapaz de 18 anos, com máscara zapatista, pixando painéis de publicidade, a agência do banco do brasil e o tribunal de justiça. É mais que “autoafirmação adolescente”, a típica acusação “adulta”, outro nome para estupidamente servil. O Rio de Janeiro renderizado da Copa e das Olimpíadas não tem um lugar de sujeito para esse jovem. Se a mídia oficial, a família e a escola o enquadram como impotente devedor social, num futuro com mil coisas de que é obrigado e nenhuma capacidade de expressão, o jovem vai lá e diz: não, não aceito. Quero outra coisa, nem que tenha de inventá-la. Tatuando a cidade, os monumentos cuja reverência e autoridade ele não reconhece, o “vândalo” reafirma o simples propósito de existir.

Na quinta, um pouco antes da Rua Uruguaiana, a polícia atacou-nos de todos os lados, de uma só vez, com força total. Ou, pelo menos, foi essa a percepção de quem estava ali exercendo pacificamente o seu direito à manifestação. Vieram com tudo, de uma vez, com o arsenal completo das novas armas: bombas, pimenta, tiros de borracha, gás. Como uma técnica eficiente de tortura, essas armas machucam bastante, mas não matam. O enxame atordoava e dispersava aos primeiros pipocos. Tentei não entrar imediatamente em pânico, embora muitos debandaram em minha direção. Me perdi dos amigos logo nos primeiros segundos. Quando abriu um clarão na massa, pude antever uma parede de escudos avançando, e ouvi balas ricocheteando na lataria da banca de jornal, a uns dois metros. A boca ficou seca. Antes de me convencer que talvez fosse a atitude mais prudente pular fora, o meu corpo já disparava por conta própria, sem olhar pros lados. Corri muito, com medo. A polícia exercia a violência para evitar a violência.

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O fato é que a sensação compartilhada de poder é inaceitável. A embriaguez da multidão ofende o poder constituído. Agride o bom gosto da polícia, do judiciário, da imprensa, assistir às pessoas achando que podem. Elas não podem poder. Nessas horas, a “sociedade de bem” quer colocar a bota na cara das pessoas e gritar: fica na tua, não pode!, e estampar na primeira página a imagem da derrota. Na hora do assalto, dá pra perceber o tesão sádico com que os policiais atacam e os jornalistas noticiam. Fazem para repor o monopólio da violência que a rua ameaça. Daí atacarem indiscriminadamente, nivelando todos como vagabundos (vândalos, baderneiros, terroristas…). É para ser assim, porque se trata de um ato cuja finalidade real consiste em asseverar: quem manda aqui sou eu! O resto é detalhe, e plenamente contornável por sindicâncias corporativas e muito mea culpa. O policial e o jornalista não sentem nenhuma culpa e poderão dormir tranquilos depois dos massacres. Seu gozo é completo não somente porque bata e humilhe, mas porque é comandado a fazê-lo. Pelos comandantes, pelos editores. Pode exercer a violência ilimitada, sentir-se poderoso e ainda por cima não arcar com a má consciência. Subjetivamente amparado pelo discurso oficial, alguém como Arnaldo Jabor está se lixando pras consequências e, tranquilo no travesseiro, se compraz de ter justificado a violência policial.

Numa rua próxima depois da correria, ainda desorientado, resolvi ir embora. No caminho do metrô, lembrei que fora por ali mesmo, nos arredores da Uruguaiana, que eclodira a Revolta do Vintém (1880). Há 132 anos, uma multidão insurrecta contra o aumento da passagem dos bondes em um vintém ocupou as ruas, arrancou os trilhos, depredou os carros e enfrentou a polícia. Na época, as armas eram 100% letais e dez manifestantes morreram. Contudo, foi uma das principais revoltas a alimentar a sangria até a queda da monarquia alguns anos depois, transformando o sistema político e social. Claro que, hoje, o império é muito maior e mais pervasivo. Mas as lutas também, em São Paulo, Salvador ou Istambul. Elas são globais e contagiam a grandes velocidades. Não é uma ação truculenta que vai desmobilizar globalmente, com tanto potencial de disseminação. Porque vamos voltar. Não adianta enquadrar o exercício constitucional da democracia como “formação de quadrilha” e fixar a fiança em R$ 20 mil. O medo está mudando de lado. Outros virão com certeza, para reforçar um presente convulsivo. Até a grande imprensa brasileira, na contínua forja da boa consciência estatal, está acuada.

A sensação de força coletiva não passa pelo corpo sem plantar dinamites. Já dizia um filósofo, as principais mudanças acontecem quando o desesperadamente necessário se encontra com o subitamente possível. Com mais razão ainda, quando começamos a perceber que o subitamente possível é nada menos do que o óbvio.

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Imagem: Luís Fernando Tófoli

Fonte: Quadrado dos Loucos

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