julho 31, 2013

“As aventuras de Pi”: fé na ficção e os limites da narrativa, por Anderson Soares Gomes (Espaço Acadêmico)

PICICA: "É bastante curioso que A Vida de Pi, para além de suas qualidades literárias, tenha suscitado uma polêmica tão grande com relação aos limites da criatividade e da originalidade quando esse é justamente um dos temas centrais de seu enredo. A jornada individual pela qual passa o protagonista tem relação direta com sua habilidade de criar histórias que ultrapassem a discussão sobre o que é possível ou verdadeiro." 


“As aventuras de Pi”: fé na ficção e os limites da narrativa


ANDERSON SOARES GOMES*


Lançado em 2012, As Aventuras de Pi foi uma das mais premiadas produções cinematográficas do ano. Vencedor de quatro Oscars, o filme do diretor Ang Lee atingiu um nível de popularidade igual ou maior ao do best-seller A Vida de Pi, de Yann Martel, que serviu de fonte para a adaptação para o cinema. O romance A Vida de Pi pode ser resumido em apenas uma frase: um garoto e um tigre estão em um bote salva-vidas no meio do oceano. A engenhosidade narrativa com que Martel conduziu a história rendeu ao autor inúmeros prêmios literários (inclusive o prestigioso Man Booker Prize) e um sucesso de vendas, mas também uma acusação de plágio por parte da crítica ao serem notadas semelhanças indiscutíveis entre o enredo de A Vida de Pi e o livro Max e os Felinos, de Moacyr Scliar, lançado vinte anos antes. Inicialmente relutante em confessar a (mais do que) inspiração, as edições atuais de A Vida de Pi têm um agradecimento especial a Scliar.

É bastante curioso que A Vida de Pi, para além de suas qualidades literárias, tenha suscitado uma polêmica tão grande com relação aos limites da criatividade e da originalidade quando esse é justamente um dos temas centrais de seu enredo. A jornada individual pela qual passa o protagonista tem relação direta com sua habilidade de criar histórias que ultrapassem a discussão sobre o que é possível ou verdadeiro. Se a moldura narrativa de Martel foi construída a partir da ideia de Scliar, a moldura narrativa das histórias de Pi são sua própria existência.

O filme As Aventuras de Pi (a “vida” sem “aventuras” parece ter sido insuficiente para o título em português) traduz tais discussões, para além do terreno literário, de maneira brilhante. Em primeiro lugar, o filme faz uso bastante criativo da linguagem 3D. Recurso dos estúdios norte-americanos atualmente para aumentar a renda da bilheteria, o 3D acabou se tornando uma espécie de estratagema para seduzir o público a ir ao cinema (cada vez mais ameaçado como modelo negócios com o avanço das TVs de alta definição e da banda larga de internet). Todavia, As Aventuras de Pi é uma feliz exceção: o filme se junta a uma pequena lista de produções (Avatar e A Invenção de Hugo Cabret são outros notáveis exemplos) que realmente usam dessa tecnologia para inovar a narrativa. O prólogo com um quê de realismo mágico que envolve o protagonista em um zoológico na Índia, a história da surrealmente límpida piscina pública de Paris e, obviamente, toda a sequência com o tigre no meio do oceano, adquirem uma atmosfera de hiperrealismo com o efeito 3D. Ao explicitar uma transposição fantástica que mimetiza o real, As Aventuras de Pi indica, de forma auto-reflexiva, a categoria de (meta)ficção nas histórias contadas por seu protagonista.

As Aventuras de Pi também sugere suas origens literárias de diferentes formas. O protagonista, por exemplo, aparece lendo livros em três fases distintas de sua vida. Quando criança, na escola, lê A Ilha Misteriosa, de Júlio Verne. Já na adolescência, aparece lendo em uma cena Notas do Subsolo de Dostoyevsky e, em outra, O Estrangeiro de Albert Camus. Na sequência em que aparece lendo os dois últimos livros, Pi afirma que se sentia inquieto, dizendo que procurava algo que desse significado à sua vida.

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Inicialmente, esse sentido para a existência é proporcionado por uma imensa fé, ilustrada pelo fato de Pi se tornar devoto de três religiões diferentes: o Hinduísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Enquanto sua mãe apoia esse sincretismo inusitado, o seu pai vê nas religiões um artifício para enganar o homem, baseando suas decisões inteiramente na lógica e na razão – como afirma o Sr. Patel, “acreditar em tudo ao mesmo tempo é o mesmo que acreditar em nada.”

A principal qualidade de As Aventuras de Pi consiste em mostrar, entre uma vivência mais racional ou mais religiosa, um terceiro caminho: o da ficção. É apenas quando narra o real de forma imaginativa que Pi consegue afirmar a sua identidade. Não é à toa que ele se pergunta sobre um significado para a vida no momento em que lê os romances – é a ficção que dá a Pi o estofo para suportar a carga da realidade. Até mesmo a sua devoção religiosa na infância ilustra isso, pois o que o atraíam eram justamente as narrativas das diferentes versões de Deus e da Criação. Após 227 dias em um bote no meio do oceano, tendo um tigre de bengala chamado Richard Parker como companhia, abandonado por Deus e pelo racionalismo, Pi encontrará na ficção o sentido máximo da existência.

Contar histórias faz parte da existência diária do protagonista. Desde o momento em que inicia a conversa com o escritor canadense, Pi o inunda de histórias: como seu tio, Mamaji, teve seus pulmões superdesenvolvidos; o episódio de Mamaji na piscina pública de Paris e como isso se relaciona com seu nome, Piscine; toda a sequência de como ele conseguiu convencer de que o chamassem apenas de “Pi” na escola; o erro na documentação que fez o tigre se chamar Richard Parker; e, claro, a história do bote no oceano.

Mesmo sendo storytelling parte constante de sua vida, Pi também deixa transparecer um lado racional e lógico que demonstra que “ficção” está longe de significar o mesmo que “mentira”. O seu próprio nome, “Pi”, vislumbra isso. Não é apenas o nome que Pi partilha com o número da constante matemática. Assim como o número irracional, Pi também é inconstante, não está na Índia nem no Canadá, vai além dos limites da razão e, especialmente, tem uma carga reflexiva que se estende até o infinito. O racionalismo também se faz presente na própria profissão de Pi: ele é um professor de teologia que procura, academicamente, ensinar os princípios de cada religião. Não satisfeito em ser cristão, hindu e muçulmano, o Pi adulto confessa que também dá um curso sobre Cabala na universidade.

Quando o bastante imaginativo Pi começa a contar sua jornada épica pelo oceano ao escritor (que, ironicamente, está passando por um bloqueio criativo), não parece ser coincidência que o nome do navio que afunda é Tsimtsum, um termo cabalístico. Na Cabala, tsimtsum é a manipulação da energia criativa para a criação de mundos, o que sugere que, a partir daquele momento da narrativa, estaremos embarcando, junto com o protagonista, em um mundo concebido pela imaginação. O nome dado ao tigre – Richard Parker – também é resultado de uma elaboração bastante engenhosa. Primeiramente, o nome remete à história real do naufrágio de um navio inglês em 1884, onde apenas quatro membros da tripulação conseguiram sobreviver em um barco salva-vidas. Desesperados e sem suprimentos, eles matam o mais jovem entre eles e o devoram. O nome do rapaz morto era Richard Parker. Outra origem para o nome é o romance A Narrativa de Arthur Gordon Pym, publicado por Edgar Allan Poe em 1837. Em um episódio do romance, o protagonista Pym e um amigo, tomados pela fome e desesperança, alimentam-se de um homem chamado Richard Parker. O curioso é que o romance de Poe foi publicado aproximadamente cinquenta anos antes do naufrágio do navio inglês. A presença de um tigre chamado Richard Parker em As Aventuras de Pi serve como indicador dessa aproximação entre ficção e realidade, tão importante para compreender a narrativa contada por Pi.

Após o naugrágio do Tsimtsum, Pi se encontra no bote salva-vidas, tendo como companhia uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre de bengala (é a “arca de Pi”, tal como o próprio protagonista descreve a situação). Quando os imperativos da cadeia alimentar se fazem presentes, Pi passa a ter apenas Richard Parker como companheiro de sua jornada pelo oceano. A presença do elemento água em toda a narrativa de Pi tem uma carga simbólica em diversos momentos: em seu próprio nome, Piscine; quando é apresentado ao Hinduísmo, vendo os barcos iluminados na água; quando é apresentado ao Cristianismo, bebe a água benta e depois o padre lhe oferece água; na piscina de água doce da ilha misteriosa; e, é claro, na água do oceano que o rodeia. Essa fluidez da água reflete a própria maneira como Pi conta a sua história: maleável, contínua, mas sinuosa.

O oceano em si pode ser lido como a representação desse espaço altamente liminar, levando-nos para além da rigidez de identidades. O oceano é um espaço, não um lugar, terreno do transporte e da transformação, que constantemente mistura e combina seus próprios elementos. Dessa forma, não há espaço, na narrativa, para Pi se considerar um rei ou colonizador. Pi é um Robinson Crusoé contemporâneo, que a qualquer momento pode ser devorado pelo seu Sexta-Feira felino.

Quando está no bote, Pi busca novamente refúgio na narrativa para superar o fardo de uma situação extrema. Ele escreve um diário de bordo descrevendo seu cotidiano e seus pensamentos, assim como uma tradicional mensagem na garrafa (no seu caso, um lata de água) pedindo por socorro. O personagem afirma que “palavras são tudo que eu tenho para me agarrar”. Na condição de náufrago, pode se entender que as palavras de sua narrativa são o verdadeiro bote salva-vidas de Pi. Da mesma forma, o Pi adulto – sujeito diaspórico entre a Índia e o Canadá, sem origens, sem família, sem raízes – tem apenas as suas palavras (histórias) para se agarrar no meio do oceano da existência.

Uma das passagens mais interessantes do filme é quando Pi chega a uma ilha misteriosa (ecos de Júlio Verne) surgida no meio do oceano. A ilha, na verdade uma grande formação vegetal, serve de porto seguro para Pi quando achou que tudo estava perdido. Aparentemente paradisíaca, a ilha, porém, possui um lado letal: à noite, ela se torna carnívora, devorando todos os animais que nela se encontram.  Visualmente, essa é uma das sequências mais espetaculares de As Aventuras de Pi, repleta de momentos encantadores (os lêmures), mas também sinistros (o dente na fruta). O fato de a ilha ter o formato de uma pessoa deitada (morta?) realça o seu aspecto estranho.

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Ao final de As Aventuras de Pi, após ser resgatado na costa do México, o protagonista é confrontado por burocratas japoneses, representantes da empresa dona do navio Tsimtsum, que querem saber a razão do naufrágio e a verdade dos fatos. Os japoneses se recusam a acreditar no relato de Pi sobre sua sobrevivência com os animais no bote, achando-a fantástica demais e repleta de incongruências. Os japoneses dizem que não podem escrever essa história no relatório, demandando a Pi uma história “em que pudessem acreditar”. Pi então conta uma outra versão, bem mais realista: ele teria sobrevivido no bote com sua mãe, um cozinheiro de má índole (vivido em cena breve por Gerard Depardieu) e um marinheiro amigável. O cozinheiro teria assassinado o marinheiro e também a mãe de Pi que, para se vingar, o mata. Essa história é análoga à dos animais, sendo os personagens entendidos de forma dupla: marinheiro/zebra, cozinheiro/hiena, mãe/orangotango e Pi/tigre. Após ouvir a versão brutal e factual de Pi, os japoneses preferem escrever no relatório a versão dos animais. Conversando com o escritor canadense, Pi pergunta qual seria a “melhor história”: a com os animais ou aquela com os humanos. O escritor diz, então, que prefere a história com os animais, ao que Pi responde: “com Deus é a mesma coisa”.

Tanto o romance A Vida de Pi quanto sua adaptação cinematográfica enfatizaram muito, em sua estratégia de divulgação, o mesmo discurso usado por Mamaji para convencer o escritor canadense a procurar Pi: a história dele o fará acreditar em Deus. Na verdade, Pi usa duas versões do mesmo episódio para ilustrar duas abordagens com relação à realidade: uma mais coerente e lógica; outra mais fantástica e imaginativa. Ao final, ele pergunta qual é a “melhor história”. Ao escolher a versão com os animais como a melhor, o escritor canadense percebe que é melhor entender a realidade por meio da ficção do que buscar sentido apenas na crueza dos fatos.

A partir desse ponto de vista, se faz necessária a narrativa religiosa, repleta de símbolos, alegorias e parábolas. Afinal, Pi suporta a dor de tudo pelo qual passou justamente por representar as suas perdas e traumas por meio de uma narrativa de sobrevivência de cunho fantástico, ou seja, diferentemente de seu pai, Pi prova que a existência também se torna mais serena quando se acredita em algo que foge à razão. Dessa forma, As Aventuras de Pi aproxima a religião da ficção, já que ambas são formas de contar essa “melhor história”.

Ao mesmo tempo filme de aventura, reflexão filosófica e estudo metaficcional, As Aventuras de Pi é uma das mais tematicamente ricas produções do cinema recente. Apresentando um deslumbre visual e questionando a natureza da própria narrativa, é um filme que indaga sobre os limites da fé, da ficção e da forma como que compreendemos a realidade.

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Título: As Aventuras de Pi
Diretor: Ang Lee
Roteirista: David Magee
Atores principais: Suraj Sharma, Irrfan Khan, Rafe Spall
Ano: 2012
País: EUA/Taiwan
Duração: 127 min




 campos-anderson 

* ANDERSON SOARES GOMES é Professor de Literaturas de Língua Inglesa da UFRRJ. Doutor em Letras pela PUC-RIO, com estudos em teorias contemporâneas da narrativa e análise da imagem técnica.

Garimpos ilegais em terras yanomami, por Egydio Schwade

PICICA: Texto enviado gentilmente por Egydio Schwade, que compõe a Comissão da Verdade no Amazonas como seu coordenador. O vídeo, de 22/03/2010, foi garimpado na internet.



GARIMPOS ILEGAIS EM TERRAS YANOMAMI


Acompanhando uma equipe de TV-alemã, tive a oportunidade de presenciar uma incrível e heroica ação de um grupo de Yanomami na retirada e destruição de garimpos ilegais em suas terras. Cansados de esperar que o Estado Brasileiro cumpra seu dever de proteger as suas terras, essa gente se arrisca em defesa de seu povo, território e da natureza, que é a garantia de suas e nossas vidas e culturas.

Doze índios Yanomami, metade armada de arco e flecha e metade com velhas espingardas, espólio de garimpos já destruídos, com o apoio de três funcionários da FUNAI, mais Floriano, cineasta de São Paulo, Daniel, da TV-alemã, Erick de Manacapuru e eu como convidados. O objetivo da expedição era a destruição de mais dois garimpos nos confins de suas terras, próximo à Venezuela. Um pouco mais de uma hora de voo num velho Cesna, mais dois dias de viagem em três pequenas embarcações e uma hora e meia de caminhada pela floresta e estávamos todos diante do primeiro garimpo em plena atividade com o “tu, tu, tu” de seus dois possantes motores em pleno funcionamento, puxando lama e água por sobre um jirau. E lá no fundo do buraco seis garimpeiros mourejando no barro.

Era aproximadamente uma hora da tarde quando 8 índios cercaram os garimpeiros e deram o grito de guerra, enquanto os 4 restantes ficaram escondidos no entorno para surpreender algum fugitivo. Apenas um reincidente tentou a fuga, mas foi imediatamente cercado e capturado. Os prisioneiros foram conduzidos até um rancho coberto de lona plástica. Ali ficaram guardados por 4 Yanomami e seus pertences examinados por um funcionário da  Funai, enquanto os demais se dirigiram imediatamente em direção a outro garimpo não muito distante dali, pois se ouvia nitidamente a batida de mais motores. Ali repetiu-se a cena e mais 5 garimpeiros foram presos.

Seguiu-se a destruição dos equipamentos, iniciando pelos motores. Para isto serviram picaretas e machados encontrados ali mesmo. Depois os jirais de lavagem, mangueiras e os tapetes de coleta do ouro. E finalmente, a queima dos barracos. O mercúrio encontrado com os garimpeiros foi entregue para os agentes da FUNAI para ser levado às autoridades como prova de mais um crime ambiental.

Com todos os demais pertences dos garimpeiros ensacados como espólio, os índios iniciaram um verdadeiro processo pedagógico de reeducação dos garimpeiros para que ninguém deles mais ousasse repetir a ação ilegal na qual estiveram envolvidos.

Sempre de armas na mão, agora com mais duas espingardas apreendidas, reuniram os prisioneiros. E, apesar do avançado da hora e a grande distancia a ser ainda vencida até a aldeia, dois tuxauas fizeram um longo discurso, no qual lhes descreveram o mal que estavam praticando a seu povo, poluindo as suas águas e depredando a sua floresta, seus rios e caça. Finalizaram com advertências e ameaças caso voltassem de novo. Mas esta primeira etapa do processo de reeducação terminou com um ato de humanidade: a soltura de um dos garimpeiros para que procurasse a sua mulher, a única mulher no meio do grupo, que apavorada com os gritos dos índios na hora do ataque se embrenhara na floresta. Exigiram, entretanto, que o mesmo se apresentasse ao tuxaua de determinada aldeia e no Posto da FUNAI. Na caminhada de volta até as embarcações, coube a mim carregar uma cartela de ovos do espólio.

Desanimados com a lentidão ou omissão das autoridades policiais, os índios estão tomando a arriscada iniciativa da expulsão dos garimpeiros de suas terras. Aos 78 anos de idade, acompanhando apenas como elemento de apoio, sem arma nas mãos, pude testemunhar, de como seria fácil para o Ministério da Justiça, com Serviço de Inteligência, Exército e Polícia sob seu comando e um mínimo de vontade e consciência política, cumprir seu dever cívico, de acabar com os garimpos ilegais nas terras indígenas, este angustiante problema de tantos povos nesta região amazônica. Alias para quem dispõe de um Serviço de Inteligência nem careceria todo esse esforço que nos levou até os confins da fronteira com a Venezuela. Resolveria o problema pela raiz em Boa Vista. 

Mas ao contrário, está aí o flagrante de dezenas de deputados federais da base aliada, integrados na bancada ruralista, tramando com o tal PLP de número 227/2012, como os portugueses e espanhóis o fizeram durante todo o período colonial, contra as leis do Estado e contra a consciência da humanidade, saqueando as riquezas minerais dos povos indígenas e transferindo-as aos países ricos como comodities.

De Roraima me dirigi à outra reserva indígena. Desta vez ao Leste do Pará, a reserva do Alto Guamá dos índios Tenetehara. Acompanhando o Tuxaua Valdeci, aquele que em dezembro último foi notícia nacional, quando sobreviveu a um ataque e tentativa de sequestro de invasores e cultivadores de maconha no município de Nova Esperança do Piriá. Escapou embrenhando-se pela floresta, onde permaneceu escondido durante três dias. A floresta da reserva já está em 50% destruída por madeireiros que também já detonaram toda a mata ao redor da Terra Indígena, inclusive ao longo dos rios e igarapés. Agora ameaçam o que restou das áreas indígenas do Alto Guamá e Rio Capim.  Para o Governo flagrar os invasores não é necessário grande esforço. É só alguns funcionários sacrificarem umas noites de sono e trafegar pela estrada de terra de Paragominas até a aldeia do Cajueiro dos índios Tenetehara ou, de dia mesmo, sair de Paragominas rumo ao Rio Capim, atravessar a balsa e já se defronta com a destruição instalada em enormes serrarias ou, ambulante, sobre carretas carregadas com montanhas de toras. 

A covardia do Governo na defesa dos povos e populações necessitados de um mínimo de auxílio raia a inutilidade desse poder de Estado, quando se trada dos direitos dessa gente. Deixem suas modernas armas em mãos dos índios que eles mesmos farão o que é dever primeiro do Exército e da Polícia: a defesa dos mais fracos e da Constituição do País.

Que desenvolvimento é esse que destrói o ambiente, o bem-viver dos povos e o futuro da humanidade?

Casa da Cultura do Urubuí, Pres. Figueiredo, 28 de julho de 2013,

Egydio Schwade

"Sobre Museus e Monstros", por Barbara Szaniecki

PICICA: "Em Multidão, Antonio Negri e Michael Hardt afirmam que a civilização ocidental fundamentou a ordem do mundo (e das cidades) em origens e finalidades dadas: “quem nasce bem governa bem”. Desde a antiguidade, aqueles que poderiam interromper essa lógica entre eugenia e finalismo – os pobres, mulheres, escravos, estrangeiros, loucos e todos os que não se encaixam no perfil “homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer” nos termos de Gilles Deleuze e Félix Guattari – eram tidos como monstros que não tem direito à cidade enquanto espaço urbano (urbe) e não tem direito à cidadania enquanto espaço político (pólis). No século XVII, Thomas Hobbes cria o Leviatã. Mas, à diferença do monstro bíblico que representava a desobediência humana à ordem divina, o seu é um monstro domado, domesticado, submisso: uma multiplicidade social hierarquicamente ordenada em um corpo político. Já no século XIX, o monstro reaparece pelas mão de Marx que nos mostra o quão monstruosa é a exploração capitalista: muito além da mais valia…. a alienação; muito além do econômico e material… o pessoal e subjetivo. Seguindo seus passos, Hardt e Negri (e também Foucault em outros termos) afirmam que monstruosa é a exploração capitalista porque monstruosa é a resistência da multidão.[iv] Foram pelo menos três as questões que provocaram meu interesse pelo monstro enquanto figura conceitual: sua suposta ambivalência, ou seja, uma ruptura com a dicotomia bem versus mal que, por isso mesmo, demanda um crivo ético para se evitar a relativização geral – o “vale tudo”; sua produção desmedida e excessiva que não cabe na mensuração da economia cultural e criativa assim como não cabe na medida da política representativa, partidária e eleitoral; a primazia da resistência sobre o poder." 


Sobre Museus e Monstros


Sobre Museus e Monstros

por Barbara Szaniecki

Anos atrás, em viagem à Espanha, percorri o Museu do Prado inteiro arrastando meu caçula para ver El sueño de la razon produce monstruos (1797-1799) de Francisco de Goya. Não podíamos perder aquela oportunidade: monstros haviam me acompanhado ao longo da escrita de tese – Leviatãs, Golens, Cyborgs, Calibãs, etc – mas não eram monstros produzidos pelo sono da razão e sim pelo acordar ou abertura da razão a uma multiplicidade de formas de vida. Esses monstros da ambivalência, do excesso, da desmedida e da resistência eu os havia encontrado na leitura de Antonio Negri e dela estava impregnada quando me deparei com um cartaz-faixa que, pendurado no alto de uma imensa ocupação em pleno centro da cidade de São Paulo, gritava “Zumbi somos nós!”[i]. Impactada pela sublime visão da Prestes Maia, decidi pesquisar sua potente produção social, cultural e artística, e a ela dedicar um texto: Outros monstros possíveis[ii]. Anos mais tarde, voltei a me deparar com o monstro, desta vez na cidade do Rio de Janeiro em plena “ressignificação” criativa e “revitalização” urbana. Nesse processo, a museificação (ou simplesmente institucionalização) da cultura e da arte carioca organiza em termos econômicos a primeira e legitima em termos políticos a segunda. É no seio desse projeto que remove favelas, gentrifica bairros populares e elimina qualquer possibilidade de alteridade e heterogeneidade na cidade, que foi inaugurado o MAR – Museu de Arte do Rio[iii] em 1o de março desse ano de 2013. E, com a inauguração do MAR, o vernissage da exposição O abrigo e o terreno: arte e sociedade no Brasil I com a proposta de abrir o debate sobre os antagonismos urbanos e com a presença dos artistas que haviam atuado na Ocupação Prestes Maia em São Paulo entre muitos outros. O conflito estourou e, diante da museificação da arte e da cultura, a cidade monstruou novamente…

Negri e o Monstro Paulistano



Frente 3 de Fevereiro – Zumbi Somos Nós

Em Multidão, Antonio Negri e Michael Hardt afirmam que a civilização ocidental fundamentou a ordem do mundo (e das cidades) em origens e finalidades dadas: “quem nasce bem governa bem”. Desde a antiguidade, aqueles que poderiam interromper essa lógica entre eugenia e finalismo – os pobres, mulheres, escravos, estrangeiros, loucos e todos os que não se encaixam no perfil “homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer” nos termos de Gilles Deleuze e Félix Guattari – eram tidos como monstros que não tem direito à cidade enquanto espaço urbano (urbe) e não tem direito à cidadania enquanto espaço político (pólis). No século XVII, Thomas Hobbes cria o Leviatã. Mas, à diferença do monstro bíblico que representava a desobediência humana à ordem divina, o seu é um monstro domado, domesticado, submisso: uma multiplicidade social hierarquicamente ordenada em um corpo político. Já no século XIX, o monstro reaparece pelas mão de Marx que nos mostra o quão monstruosa é a exploração capitalista: muito além da mais valia…. a alienação; muito além do econômico e material… o pessoal e subjetivo. Seguindo seus passos, Hardt e Negri (e também Foucault em outros termos) afirmam que monstruosa é a exploração capitalista porque monstruosa é a resistência da multidão.[iv] Foram pelo menos três as questões que provocaram meu interesse pelo monstro enquanto figura conceitual: sua suposta ambivalência, ou seja, uma ruptura com a dicotomia bem versus mal que, por isso mesmo, demanda um crivo ético para se evitar a relativização geral – o “vale tudo”; sua produção desmedida e excessiva que não cabe na mensuração da economia cultural e criativa assim como não cabe na medida da política representativa, partidária e eleitoral; a primazia da resistência sobre o poder.

Contudo, apesar das resistências, foi-se constituindo ao longo dos séculos uma tradição eugênica por meio da expulsão ou eliminação de diferentes maneiras daqueles tidos como monstros – imperialismo, colonialismo, fascismo, nazismo, racismo. Uma das experiências de biopoder mais marcantes do Brasil pós-colonial e recém-republicano foi, sem dúvida, Canudos. Naqueles tempos, nossos políticos e nossas ciências sociais estavam preocupadas em promover a unidade nacional – homogeneização dos corpos e de suas expressões – que levasse o país ao progresso. Em Os Sertões, por exemplo, Euclydes da Cunha fica estarrecido ao perceber como Canudos resiste à razão republicana através de táticas metamorfoseantes de uma população multiforme comandada por um Antonio Conselheiro monstruoso. Ao final da Guerra, parte desses combatentes se instalaram no “Morro da Favela” hoje denominado Morro da Providência no Rio de Janeiro. Canudos procurou resistir à construção do Estado-nação brasileiro por meio de uma inclusão submissa que foi totalmente funcional à Razão do Estado e à organização dos mercados e que, hoje, mostra novamente a sua cara nas cidades brasileiras prestes a acolher megaeventos e já sofrendo o neodesenvolvimentismo nos três níveis de governo. à essa eugenia social e cultural, a cidade – morro e asfalto – resiste monstruando.

Com efeito, a configuração de grande parte das cidades brasileiras nunca se enquadrou na dicotomia centro versus periferia. Favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas são produtoras de múltiplas centralidades, de fluxos e de devires mil. Voltemos por um momento à Ocupação Prestes Maia em São Paulo através da qual procurei observar como coletivos de arte e de cultura lutaram junto aos moradores, chamaram a atenção da mídia e conseguiram defender sua moradia. Se tratava de um edifício abandonado por muitos anos e com imensa dívida de IPTU que, em 2002, foi ocupado por 468 famílias (cerca de 2000 pessoas). Os novos moradores ativaram as instalações materiais de água, luz, esgoto e lixo e imateriais como biblioteca e internet; as crianças passaram a freqüentar as escolas nos arredores, os adultos se inseriram na economia local como catadores e camelôs dentre outras atividades; e, juntos, organizaram inúmeras atividades culturais, sociais e políticas. Os moradores da ocupação costumam ser extremamente produtivos e intensamente cidadãos. Sua produção excede os parâmetros do trabalho no mercado – o emprego com horário, salário, subordinação, disciplina e controle – e sua cidadania excede os parâmetros da representação no Estado – o partido com candidato, campanha, horário eleitoral, voto. Excede porque resiste e resiste porque excede. Se trata de uma produção e de uma política que extrapola as articulações do mercado e do Estado e suas parcerias público-privadas perfumadas assim como as formas ongueiras, e é nesse excesso que se faz monstruosa.

Em São Paulo, enquanto os poderes públicos condicionaram a assistência aos moradores à desocupação e liberação do prédio para a iniciativa privada, os moradores insistiram em dar ao prédio um destino social: habitação para quem cria diferentes modos de produzir e agir, em suma, formas de viver (n)a cidade. Era um conflito evidente entre duas concepções e práticas de “revitalização”: a gentrificação imposta pelo Estado e pelo mercado hoje sócios por meio do label “economia criativa”[v] e a vida social, cultural e artística da população local que, em seus múltiplos agenciamentos com outras redes e coletivos, se faz multidão. “Zumbi somos nós!” insistia, persistia, resistia o monstro. No rastro da minha pesquisa sobre uma estética da multidão[vi], me interessei pela produção de cartazes de coletivos de artistas[vii] com suas táticas de reprodução, movimento e metamorfose. Subverter o discurso da falta em excesso e da ausência em potência desses sujeitos produtivos e políticos, é caminho necessário (mas não suficiente) para criar uma cidade resistente ao fundamento eugênico – aquele fundado na ordem e no progresso e que se abrisse à criação da Multidão: “artistas somos nós em nossa potente constituição!”A figura do monstro se prestava a pensar essas questões, embora o foco político sempre foi e continua sendo o “fazer multidão”. Foi sobretudo através do impacto do cartaz-faixa Zumbi somos nós! pendurado no alto da Ocupação Prestes Maia que eu vi o que Negri queria dizer quando incitava a recusar a dialética entre um sujeito (Estado ou capital, e suas velhas e novas articulações: dos partidos e sindicatos às ONGs e novos circuitos de ativismo hashtag-guiado) e um objeto para então afirmar a luta entre sujeito e sujeito. Os SEM – sem teto, sem trabalho, sem direitos, sem cultura, sem mídia – como potência absoluta: sem nada a perder, o SEM tudo pode.


A monstruação carioca e o MAR
Dez anos nos separam da primeira ocupação do edifício Prestes Maia em São Paulo. Nesse ínterim, a Prefeitura do Rio de Janeiro procurou dar início a um novo ciclo econômico baseado em uma “ressignificação” criativa da “revitalização” urbana que empreendia. O modelo é conhecido: é o do Soho de Nova York cujo sucesso foi exportado para outras cidades mundo afora por Richard Florida[viii] através de suas consultorias. Eventualmente pode obter êxito semelhante em áreas reduzidas como a dos arredores da Praça Tiradentes até Lapa. Mas a realidade é mais complexa e, no Rio de Janeiro, adquire aspectos perversos: áreas urbanas que passam por decadência do ciclo econômico baseado em suas atividades industrias e portuárias e consequente estigmatização social da sua população se tornam alvo de especulação imobiliária por meio da compra de imóveis a preços irrisórios por parte de grandes grupos; o encarecimento da vida no bairro – do aluguel dos imóveis às despesas de supermercado – promove a expulsão gradual do morador local. Esse fenômeno é conhecido por “remoção branca” e, no contexto carioca de megaeventos vem acompanhada de um projeto de remoção literal por parte da Prefeitura e de “pacificação” via UPPs do Governo do Estado. A dita “classe criativa” participa às vezes sem perceber desse ciclo: ao procurar moradia barata, aciona um processo que inicia como valorização simbólica quando o bairro fica na moda e aconchegante para os moradores e se encerra como valorização material quando o bairro fica caro e “exclusivo” no sentido que exclui os  próprios moradores, e um exemplo recente desse fenômeno é o bairro de Santa Teresa. Mas ela pode ser convocada pelo poder público, suas instituições e parcerias público-privadas a ter um papel mais ativo nesse ciclo. Ela pode, por exemplo, ser convidada a ocupar criativamente aquilo que é tido como área de baixa densidade populacional ou mesmo vazio urbano e aceitar o convite sem conhecer os critérios de seleção daqueles espaços. Ela pode participar voluntaria ou involuntariamente de uma arte de “rejuvenescimento” da cidade que mascara uma realidade de expulsão e destruição ou, nos termos de Cristina Ribas, uma “arte de provocar ruínas”[ix] e novos vazios urbanos. O cálculo do poder no Rio de Janeiro é preciso como um corte cirúrgico: museus, feiras[x], editais e permissões para ocupações criativas de imóveis públicos podem ser ativadores da cidade mas já parecem funcionar como “mimos” que atenuam a crítica dos ditos criativos e chegam até a garantir seu silêncio sobre a remoção de favelas e ocupações sociais pela cidade. Onde está a crítica criativa carioca? Ou melhor, as críticas criativas cariocas? Mais plural…


Enquanto alguns nômades[xi] acompanhavam esse processos no front das remoções, nos últimos tempos eu vinha pesquisando a relação entre gentrificação da cidade e museificação da cultura no Rio de Janeiro. Para erguer museus gentrifica-se (a Aldeia Maracanã, por exemplo, é removida para abrigar um Museu Olímpico. Para quê? Para quem?) e, para remover ou legitimar a remoção, também erguem-se museus. O processo se revela gentrificação da sociedade e espetacularização da cidade[xii]. Nada contra museus, muito pelo contrário, os freqüento com prazer. Certa vez, em visita ao Museu da Maré[xiii], encontrei esse mapa pintado no muro e indicando a existência de museus parceiros como o Museu de Favela, o Museu Sankofa, o Museu Vivo de São Bento em Duque de Caxias, o EcoMuseu Nega Vilma, o Museu do Horto. Que variedade de museus na cidade e em seus arredores! Mas… quem os conhece? São museus com diferentes visões e práticas, são museus com forte vínculo com as comunidades nas quais inserem atividades em parte relacionadas à identidade sociocultural e à memória mas que vem sendo ampliadas e renovadas: são memórias vivas. Contudo, eles têm pouca ou nenhuma visibilidade e essa invisibilidade me instiga a pesquisar o que os torna tão pouco “criativos” aos olhos do poder público. A perspectiva de grandes eventos abre o caminho para grandes obras – assim como os velhos e novos negócios com empreiteiras – supostamente necessárias para a “revitalização urbana” acompanhada de sua “ressignificação criativa” – como caminho para superar a perda de capital política para Brasília e de capital financeira para São Paulo e tudo isso no meio de um processo de decadência econômica e consequente degradação social – que se sustenta em grande parte na construção de grandes museus (MAR[xiv] e Museu do Amanhã[xv]), e todos eles com algum tipo de parceria com a Fundação Roberto Marinho.[xvi] Em contraponto ou complemento a esse projeto de “criativ-ação” – talvez menos elitista e excludente que outrora, mais perversamente includente, ou seja, que inclui na medida da submissão a um modelo – da arte e da cultura do Rio de Janeiro e que vem se expandindo através do conceito de economia criativa, eu vinha ressaltando a importância da rede de Pontos de Cultura que, em suas práticas se revelam muito próximas àquelas das favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas onde, em alguns casos, eles se inserem. Daí, quando ponho em evidência a “parceria”, sempre definida em termos muito vagos, entre governos (federal, estadual e municipal) e a Fundação Roberto Marinho, quero apontar a relação delas com pelo menos três problemas que, por sua vez, estão interligados: o problema da sustentabilidade, o da visibilidade e o da espetacularização da cultura no Rio de Janeiro. Com relação ao primeiro: a economia criativa e seus museus que se beneficiam das leis de incentivo fiscal e se apresentam como parcerias público-privadas são vistos como sustentáveis enquanto os Pontos de Cultura beneficiários de editais públicos e as atividades culturais de favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas são vistos como insustentáveis. Alguns projetos artísticos e culturais passam então, malandramente, a se apresentar nos editais como “criativos” mas a malandragem não resolve o problema do modelo que lhe é imposto, muito pelo contrário, até pode legitimá-lo cada vez mais; com relação ao segundo: enquanto os Pontos de Cultura e as atividades culturais de favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas são condenados à invisibilidade ou a desqualificação[xvii], a economia criativa e seus museus desfrutam de boa visibilidade na grande mídia simplesmente porque… eles são as organizações Globo; e, finalmente, com relação ao terceiro: parte da acusação de insustentabilidade e da conseqüente invisibilidade se encontra no fato que as práticas artísticas e culturais desenvolvidas pela economia criativas e seus museus, se enquadram docilmente no contexto de espetacularização da cidade via megaeventos que o Rio de Janeiro está vivendo e ao atual contexto neo-desenvolvimentista brasileiro enquanto as iniciativas culturais desenvolvidas por Pontos de Cultura, favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanos são ligadas a contextos de resistência na cidade. Resistência a se enquadrar numa economia criativa das quais não somente eles não foram chamados a compartilhar os frutos como ainda são expulsos da cidade em processo de ressignificação e revitalização. Resistência aqui não é anti-poder – imagem invertida de um poder que oprime – e sim invenção de uma cidade que somente será potente se souber ser criativamente crítica e criticamente criativa: afirmativa de outras significações e vidas urbanas.

O Sertão não vai virar MAR[xviii]

Nesse contexto de remoções e ameaças de remoções a favelas e ocupações cariocas o Museu de Arte do Rio (MAR)[xix] foi inaugurado com a presença da Presidenta Dilma Roussef, da Ministra da Cultura Marta Suplicy, do Governador do Estado do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro Eduardo Paes e… a família Marinho. O Museu estava lá, falicamente ostensivo numa área brutalmente violentada. Ele branco, ela negra. Mais uma vez, a história se repete. Somente no Morro da Providência, logo ali ao lado, são 820 famílias ameaçadas de remoção com contrapartidas do poder público tidas como insuficientes pela comunidade. Horto e a Vila Autódromo também estão prestes a se defrontar com essa dura realidade. Movimentos pela moradia e movimentos culturais protestavam do lado de fora. As monstruosas resistências de Canudos e de Palmares entre outras de outras de nossa história se fazem, ali, presentes. Provocado pela multidão com relatos sobre sua dramática situação de despejo, um artista famoso apalpa desafiadoramente a sua genitália na saída do museu. Ganhou por unanimidade o título carnavalesco de Muso do Mar e, escoltado pela polícia, entrou rapidamente num taxi. O Bloco Reciclato, entre apitaço e panelaço, afirmava “o sertão não vai virar MAR” e perguntava como artistas e coletivos de artistas que circularam com os movimentos pela moradia podiam, agora, expor os resultados no Museu que é um símbolo da gentrificação. É possível mostrar sua trabalho sem ser “capturado” pelo dispositivo MARítimo? É possível “criativos” atuarem criticamente – “dentro” e “contra” – esse MAR que coroa um projeto de cidade de expulsão dos pobres? É possível que o próprio MAR atue “dentro” e “contra” esse projeto de cidade? É possível criar outras institucionalizações da arte que não modulem por meio de seus sutis dispositivos a crítica constituinte da cidadania? As questões são pertinentes, as respostas nada evidentes…

Somente um mês após a inauguração e a visão daquele monumento à eugenia entrei no MAR. Passeei por três exposições – Rio de Imagens, O Co-le-ci-o-na-dor e Vontade Construtiva – para enfim chegar à exposição O Abrigo e o Terreno no térreo. Quando digo que passeei pelo museu, quero enfatizar que o MAR convida ao passeio. Naquele espaço clean, tinindo de tão branco e de tão limpo, pessoas passeiam com uma atitude… de flâneur. No MAR todo mundo vira um flâneur – um burguês francês do século XIX em pleno Rio de Janeiro do século XXI – à medida que seu olhar desencarna. Um olhar que vê mas não sente. Diante de uma obra constituída por uma pobre cama sendo suspensa e carregada por um poderoso trator, uma mulher se vira para sua amiga e diz “que engraçado!!!” Tudo ali se torna estranhamente “engraçado”. Fiquei me perguntando se tanta “graça” vinha da obra em si ou do contexto que a emoldura. Descartada a primeira opção, sobra a segunda. Tudo no museu marítimo – a monumentalidade do edifício, a política de governo e as parcerias público-privadas que o sustentam, a cerimonialidade de sua inauguração e a formalidade de suas exposições – me faz lembrar a famosa frase do Guy Debord que inspirou 1968: “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”. Nele, o monstro parecia estar aprisionado. “Estamos vivendo uma caretice institucional” disse recentemente o artista Antonio Dias em passeio na ArtRio. Para além da caretice institucional, eu diria “uma institucionalização da caretice” na cidade: careti-Cidade. Do MAR à Maré, artistas e musos “Globalmente” consagrados tornam-se, via inúmeras formas de representação, modelito de produção e reprodução de arte contemporânea. É seu produzir separado do agir que alimenta a cultura do espetáculo em geral e a cultura do museu em particular: um emburguesamento cultural que combina muito bem – ton sur ton – com a gentrificação social em curso. Angústia. A estética da multidão estaria destinada a se tornar uma poética do consenso? O que fazer: desistir de qualquer forma de institucionalização?

Acho que podemos, à luz ou à sombra do monstro que, como já disse, traz as questões da ambivalência que demanda um crivo ético, do excesso que não cabe na economia do mercado e na representação do Estado e da resistência que é política e estética, urge repensar nossas relações com as instituições e representações: do artista com o museu, do professor e pesquisador com a universidade, dos movimentos com os governos, e dos movimentos entre eles. Foi a capacidade de articular o produzir e o agir numa Cultura Viva que me aproximou enquanto dizáiner e pesquisadora de design – uma criativa qualquer – dos Pontos de Cultura, próximos eles próprios das práticas sociais e culturais de favelas, ocupações, quilombos e aldeias urbanas. Me parece necessário mas ainda insuficiente dizer que, diante do vampirismo institucional – do museu ao poder municipal passando pelos monopólios corporativos – é preciso fortalecer todas essas alianças monstruosas que constituem a carne da multidão: reconhecendo e fazendo reconhecer que grande parte de nossas criações são na realidade co-criações; exigindo mistura social e remix cultural como necessários à criatividade no Rio de janeiro; e até afirmando a potência criativa do conflito: sem conflito não há criatividade. Comentamos ao longo do texto a precisão cirúrgica do corte efetuado pelos poderosos no Rio de Janeiro que envolve questões de classe, de raça e de gênero: sempre que houver criatividades sendo sutilmente cooptadas e criatividades sendo expulsas violentamente da cidade, não hesitemos, MONSTRUEMOS!




[i]           Coletivo Frente 3 de Fevereiro http://www.frente3defevereiro.com.br/

[iii]          http://www.museudeartedorio.org.br/

[iv]          HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.

[v]           ROSLER, Martha The Artistic Mode of Revolution: From Gentrification to Occupation Em http://www.e-flux.com/journal/the-artistic-mode-of-revolution-from-gentrification-to-occupation/

[vi]          SZANIECKI, Barbara. Estética da Multidão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

[vii]         Coletivos como A Revolução Não Será Televisionada, artbr, Associação dos Moradores do Prestes Maia, BijaRi, C.O.B.A.I.A., Catadores de Histórias, Centro de Mídia Independente, Cia.Cachorra, Contra-filé, EIA – Experiência Imersiva Ambiental, Dragão da Gravura, Elefante, Espaço Coringa, Esqueleto Coletivo,  FLM – Frente de Luta por Moradia, Fórum Centro Vivo, Frente 3 de Fevereiro, Grupo Calango de Teatro, Humanus 2000, Integração Sem Posse, Los Románticos de Cuba, Menossões, MSTC – Movimento Sem Teto do Centro, Nova Pasta,  Os Bigodistas,  Rádio Xiado, TrancaRua.

[viii]         FLORIDA, Richard. A ascensão da classe criativa… e seu papel na transformação do trabalho, do lazer, da comunidade e do cotidiano. Porto Alegre: L&PM.

[ix]          RIBAS, Cristina. A arte de provocar ruínas: especulações na Zona Portuária em revista GLOBAL/Brasil número 14: http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=697

[x]           http://www.artrio.art.br/

[xi]          Universidade Nômade: http://www.uninomade.net/

[xii]         PIRES, Vladimir S. Metrópole, cultura e breves reflexões sobre os novos museus cariocas. Em revista Lugar Comum número 35 e 36, setembro 2011 – Abril 2012. http://bit.ly/16mePCL

[xiv]         Museu de Arte do Rio, orçado em R$ 43 milhões, é “iniciativa da prefeitura do Rio com apoio do Governo do Estado e realização da Fundação Roberto Marinho” http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2010/06/zona-portuaria-do-rio-vai-ganhar-museu-de-arte.html

[xv]         Museu do Amanhã (Museu da sustentabilidade) orçado em R$ 215 milhões O Museu do Amanhã é uma iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro e da Fundação Roberto Marinho, com o Banco Santander como Patrocinador Master e o apoio do Governo do Estado, por meio de sua Secretaria do Ambiente, do Governo Federal, por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), e da Secretaria dos Portos. http://portomaravilha.com.br/web/esq/projEspMusAmanha.aspx

[xvi]         SILVA, Gerardo e SZANIECKI, Barbara. Rio: dois projetos para uma cidade do conhecimento publicado em http://www.outraspalavras.net/2010/09/28/rio-dois-projetos-para-uma-metropole-conhecimento/ e http://www.overmundo.com.br/overblog/rio-dois-projetos-para-uma-cidade-do-conhecimento

[xvii]        Declaração do Secretário Municipal de Cultura, Sérgio Sá Leitão no twitter http://bit.ly/12ESwlR. “Finalmente acabou uma das maiores tolices da cidade: a “aldeia” Maracanã! O Museu do Índio fica em Botafogo.”

[xviii]       Bloco Livre Reciclato: o sertão NÃO vai virar MAR: http://on.fb.me/14tHote “ReciclAto Convida! E atenção: Dilma, Eduardo Paes, Eike Batista, Adilson Pires, Sergio Cabral já confirmaram presença! Você vai perder esta? “COMO SE LEGITIMA A GENTRIFICAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE?! O Museu de Arte do Rio integra o projeto de especulação imobiliária e apagamento de memória do porto, com sabemos.
Nesse museu, no dia 1 de março, será lançada a exposição “O abrigo e o terreno” – “Nesta, Herkenhoff dividiu a curadoria com a jovem Clarissa Diniz, para selecionar trabalhos de arte que abordem a questão da moradia. Estão lá obras do grupo Dulcinéia Catadora, instalações de Ernesto Neto e até um carro alegórico do coletivo Opavivará! ” Olhem que interessante…artistas que circulam pelos movimentos de moradia, fotografam, gravam em vídeo e depois vão expor em um museu que é um dos símbolos da gentrificação da zona portuária. Para analisarmos como o próprio estado violador de direitos vai construindo sua legitimação com o apoio da jovem elite cultural e artística para planificar a real luta pela moradia. Dizem que a Dilma e uns ministros estarão presentes. (por Rio Distópico )”

[xix]         http://www.museudeartedorio.org.br/

Fonte: Na Borda

"A narrativa que se engaja nas manifestações" (IHU)

PICICA: "Na transmissão das manifestações do Rio eles mobilizaram 300 mil expectadores, mas pautaram o trabalho de colegas que falam e escrevem para milhões. Revolucionários, ativistas e alegadamente apartidários os integrantes do grupo de mídia alternativa Narrativas Independentes Jornalismo e Ação (Ninja) transmitem ao vivo, sem grande preocupação com a qualidade da imagem e edição. O público parece não se importar e o Ninja chegou a contabilizar 200 horas ao vivo transmitindo a ocupação da Prefeitura Belo Horizonte."


A narrativa que se engaja nas manifestações 

 

Na transmissão das manifestações do Rio eles mobilizaram 300 mil expectadores, mas pautaram o trabalho de colegas que falam e escrevem para milhões. Revolucionários, ativistas e alegadamente apartidários os integrantes do grupo de mídia alternativa Narrativas Independentes Jornalismo e Ação (Ninja) transmitem ao vivo, sem grande preocupação com a qualidade da imagem e edição. O público parece não se importar e o Ninja chegou a contabilizar 200 horas ao vivo transmitindo a ocupação da Prefeitura Belo Horizonte.


A reportagem é de Cláudia Schüffner e Guilherme Serodio e publicada pelo jornal Valor, 31-07-2013.

Na noite de 22 de julho, durante a visita do papa Francisco ao Rio, o Mídia Ninja cobriu a manifestação que concentrou mais de mil pessoas próximo ao Palácio Guanabara. Da rua do palácio, onde polícia e manifestantes entraram em confronto no começo da noite, à porta da 9ª DP, no Catete, madrugada a dentro, foram horas de transmissão em tempo real que registraram as bombas de gás e o fogo dos coquetéis molotov até a detenção arbitrária de dois integrantes do Ninja, também transmitida ao vivo. Um deles era Filipe Peçanha, um mineiro apelidado de Carioca. Na noite seguinte, sua detenção por suposta incitação à violência tornou-se tema do "Jornal Nacional", da TV Globo. Eles ganharam também as páginas do "The New York Times" e "The Guardian".

Naquela semana, o Ninja ainda contribuiu para a libertação de Bruno Ferreira Teles, manifestante preso em Laranjeiras acusado de atirar coquetel molotov na PM e libertado graças a vídeos reunidos na internet. Como diz o próprio grupo em postagem no Facebook, "a cobertura cidadã de diversos indivíduos e grupos de mídia livre, inclusive a Mídia Ninja, estraçalhou a narrativa oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro". Na mesma madrugada do dia 23, a página do grupo já denunciava vídeos que mostravam a ação de policiais infiltrados, P2, na manifestação.

Os ninjas carregam iPhones, laptops, baterias, câmeras e equipamentos de internet 3G em mochilas. Transmitem as imagens ao vivo usando várias contas no TwistCasting ou no site da Pós TV, projeto que começou em junho de 2011 a partir das transmissões das marchas da Maconha e da Liberdade, em São Paulo.

A próxima etapa é captar recursos diretamente dos expectadores transferindo a atual hospedagem do Ninja no Facebook para um site próprio - o da Pós TV cai quando aumenta o número de acesso - que permitirá financiamento por "crowdfunding", o que deve acontecer logo.

É difícil explicar o que é a autoproclamada Mídia Ninja sem deixar de lado conceitos como patrão, salário e carga horária de trabalho. O produtor cultural Pablo Capilé, um dos fundadores do Fora do Eixo, rebate a alcunha de 'rebelde'. Corrige-a por 'autônomo'.

Contra as acusações de vinculação política - uma foto sua com o ex-deputado José Dirceu retirada da página de Capilé no Facebook circulou na internet em forma de denúncia da ligação do grupo com o PT - Capilé diz que há fotos dele com a atriz Mariana Ximenes, Lula, Marina Silva, FHC, João Pedro Stédile além de Gilberto Gil e Caetano Veloso, enumera.

"A esquerda fala que a gente é o novo capitalismo, a direita fala que a gente é o novo comunismo. Ninguém sabe direito onde a gente está porque a gente não é organizado por nenhum deles", diz Capilé.

Bruno Torturra, Filipe Peçanha, Capilé e Felipe Altenfelder receberam o Valor em um apartamento comunitário na zona sul do Rio antes de saírem em duplas para acompanhar manifestações no Leblon e na Rocinha, em pleno feriado da visita do papa Francisco à cidade.

Explicam que o grupo é parte de uma cadeia muito maior de grupos em rede que reúne cerca de 2,4 mil pessoas em 250 cidades do país, além de um banco colaborativo. O grupo cresceu da costela do Fora do Eixo, que surgiu há cerca de 10 a 12 anos para produzir festivais de música durante a crise do mercado fonográfico.

Altenfelder conta que uma das ferramentas mais fortes do grupo era sua capacidade de produzir conteúdo e alcance. "Em 2011 e 2012 a gente começa a dar suporte a lutas contra a homofobia, por uma nova política de drogas, meio ambiente, terra, cultura digital, de hackers e midialivristas".

Foi quando o grupo percebeu o potencial em mãos e criou o Ninja. "Refletindo sobre isso a gente chega à ideia do Ninja e ao conceito explicado pela sigla".

Hoje o Ninja conta com cerca de 50 integrantes, mas o cadastro de colaboradores, que coleta emails e telefones em reuniões pelas cidades onde passam, soma milhares. "As pautas e coberturas nas ruas vão aproximando novas pessoas e mantemos diálogo com outros coletivos de comunicação", diz Altenfelder.

Quando questionados se o fato de morarem juntos, sem receber pagamento individual está relacionado à economia de custos, Capilé explica que morar juntos não é uma condição.

Bruno Torturra, um ex-editor da revista "Trip" e um dos mais articulados do grupo mora sozinho, mas reconhece que é uma exceção. Capilé explica que a relação com dinheiro também é comunitária.

"Ninguém tem salário mas todo mundo tem a senha do cartão. Então todo mundo está o tempo inteiro colaborando um com o outro e somando os esforços para que aquele R$ 1 se transforme em dez", afirma Capilé, que continua explicando que em vez de pagarem aluguel de 40 apartamentos eles concentram os recursos. "Para a gente multiplicar esse recurso, a gente desmonetariza as relações", diz.

O modelo garante as necessidades básicas de todos, incluindo comida, plano de saúde, roupas, equipamentos, celulares e computadores (que todos têm), além das contas de luz e internet sempre pagas, enumera Capilé. "Se o cara estiver fazendo sem tesão, não rola. E morando coletivamente o cara também se sente mais seguro pra enfrentar o novo", diz. "A gente não trabalha, a gente vive. O nosso ativismo é 24 horas", afirma.

O jornalismo Ninja é engajado mas o grupo faz questão de frisar que só 3% a 7% dos recursos vêm de licitações de empresas públicas. "A maior parte do recurso é nosso. Por exemplo, a gente aprova um edital da Petrobras para a Universidade Fora do Eixo, mas no cômputo total, a soma dos recursos públicos dão 3% a 7%. Somos autogestionários. Isso nos dá, por exemplo, a autonomia de montar o núcleo de comunicação".

A sensação das redes sociais na cobertura das manifestações, no entanto, não está imune a críticas, mesmo dos 140.682 fãs da Ninja no Facebook. Na entrevista de uma hora e meia com o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB) há duas semanas, a postura dos entrevistadores foi criticada na rede e classificada como despreparada. Para o grupo, a experiência foi um aprendizado tanto no enfrentamento com um político experiente, quanto na de abrir ao público a possibilidade de propor perguntas. "Quando você é muito novo e se coloca face a um desafio desses, há um valor pedagógico", diz Altenfelder.

O Ninja atribui a violência nos protestos do Rio à polícia. "Os manifestantes, as pessoas que saem de casa e estão criando o hábito de ir nos protestos, são extremamente conscientes do papel delas e da responsabilidade delas de não serem violentas", diz Torturra.

"Existem alguns grupos como o Black Bloc, que está sendo muito discutido e é especialmente bom de a polícia se infiltrar, já que usam máscaras. Eles têm técnicas um pouco mais duras de lidar com a manifestação. Mas têm uma teoria por trás disso. Não é vandalismo, quebra-quebra e desordem. Eles têm alvos específicos", observa.

No cenário que se desenha para a mídia com as possibilidades da rede e equipamentos de transmissão online, até o público é cobrado sobre informações compartilhadas. "Estamos vendo emergir o pós-expectador. Começamos a entender que ele não é passivo, que tem uma responsabilidade na hora que replica, que comenta, que dá um 'like' [curtir], que usa algo de uma fonte. Ele tem responsabilidade também", teoriza Torturra.

Veja também:

Fonte: IHU

OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA: Estado laico esquecido, religião oficial consagrada; O que preocupa os jovens comunicadores; Ativismo põe em xeque narrativas oficiais; Quem é jornalista? Um pergunta de muitas facetas

Observatório da Imprensa 
 
PAPA POP & PROVOCADOR
Alberto Dines
 
ENECOM / PIAUÍ
Venício A. de Lima
 
 
LEITURA DE JORNAIS
Luciano Martins Costa
 
REFLEXÕES DO ‘NYTIMES’
Margaret Sullivan
 
PRIVACIDADE & VIGILÂNCIA
Eugênio Bucci
 
CÓDIGO ABERTO
Carlos Castilho
 
HENRI ALLEG (1921-2013)
Leneide Duarte-Plon
 
FRANCISCO EM APARECIDA
Carlos Brickmann

julho 30, 2013

POLÊMICA: "O coletivo ´Fora do eixo' e o lado oculto da lua", por Carlos Henrique Machado Freitas

PICICA: “A função de um Ministério da Cultura é mobilizar seres humanos e mantê-los mobilizados. De que forma? Garantindo e dando subsídios ao povo para expressar-se, manifestar-se através de sua arte e de seus saberes. A função essencial da cultura é manter-nos vivos, pensantes e humanizados. A junção de cultura e mercado é um movimento que não foi gerado pelo povo, mas por uma pequeníssima porção da sociedade que detém o controle da economia. O movimento que nós, povo, temos feito, é de frear esse movimento frenético iniciado pela indústria cultural.” (Aressa Rios).

O COLETIVO “FORA DO EIXO” E O LADO OCULTO DA LUA

 



Por Carlos Henrique Machado Freitas
“A função de um Ministério da Cultura é mobilizar seres humanos e mantê-los mobilizados. De que forma? Garantindo e dando subsídios ao povo para expressar-se, manifestar-se através de sua arte e de seus saberes. A função essencial da cultura é manter-nos vivos, pensantes e humanizados. A junção de cultura e mercado é um movimento que não foi gerado pelo povo, mas por uma pequeníssima porção da sociedade que detém o controle da economia. O movimento que nós, povo, temos feito, é de frear esse movimento frenético iniciado pela indústria cultural.” (Aressa Rios).

Minha pergunta sobre o Coletivo Fora do Eixo está relacionada com as fronteiras do debate em diversos níveis que surgiram das ruas nas manifestações. O que observei foi o limite, o desinteresse ou a incapacidade deste coletivo em debater uma das maiores perdições que assolam a cultura brasileira, que são as numerosas frações de recursos públicos concentradas nas mãos de tão poucos grupos empresariais, como é clássico do processo de expansão da racionalidade capitalista.


Pergunto isso em busca de uma verdadeira razão porque o Fora do Eixo surgiu em meio a uma variedade de reivindicações como um triufalista de porta-voz das ruas, e assim ele se coloca no imaginário de muita gente. Lógico que, para a autopromoção, são altamente velozes em suas ações. Sabem utilizar das técnicas para difundir com exuberância a ideia de que são líderes de movimentos contrarracionalidade. Ou seja, contra a ideia superior do sistema financeiro e da própria tradição hegemônica do mercado.

Mas na outra ponta os gráficos apresentados pelo jornalista José Arbex Jr., causam um absoluto espanto, principalmente porque o Fora do Eixo tromba de frente com a sua fantasiosa “filosofia”. “Hoje, segundo os dados da pró­pria organização, o FDE é uma próspera empresa de gestão cultural que agrega 57 coletivos em todo o país, com capacidade para realizar 5 mil shows em 112 cidades.” (José Arbex Jr).

Diante de um dado como este trazido por Arbex, não há como não fazer uma comparação, por exemplo, à mega estrutura de um Rock In Rio, que hoje contempla a sociedade de dois midas da fábula capitalista, Roberto Medina e Eike Batista.


A margem de erro entre um coletivo social do líder Pablo Capilé, como se apresenta o Fora do Eixo, e sua estrutura empresarial, mostra que está longe de ser pequena a incoerência do seu discurso. Talvez, hoje no Brasil, somente as religiões tradicionais conseguem numerosas frações de lugares e de somas como vida econômica e social deste coletivo.


E se o apêndice das manifestações preconiza a horizontalidade, a descentralidade e, sobretudo a expansão da democracia, pergunto: aonde está a verdade do Fora do Eixo em seu discurso? Quais as possibilidades de fugir de uma realidade tão flagrante de paradoxos entre o que se prega nas ruas, estimulando qualquer tipo de manifestação contra o sistema, e o que é colocado robustamente como verdade?


Agora mesmo o poder e a dimensão do cartel do Ecad sofreram uma flagorosa derrota do movimento que fundiu artistas e sociedade, somado a alguns guerreiros políticos e o Ministério da Cultura, para não só suprimir a condição de senhor da criação brasileira ostentada pelo Ecad, mas sobretudo para determinar limites com uma coisa simples, a fiscalização pelo Estado de uma atividade privada que monopoliza compulsoriamente a “defesa” do direito autoral.


Foi gratificante pra todos nós que lutamos contra o Ecad, ver surgir um movimento de intensidade e verdade tão avassaladora que derrubou anos e anos de chantagem de quem dela se utilizava para impor justamente uma pena de prisão aos criadores brasileiros.
Então, novamente pergunto: com uma estrutura dessa que, dentro da realidade da cultura brasileira, mais parece um império, os organizadores do Fora do Eixo, que multiplicam suas relações políticas em função de sua força econômica, para estabelecerem exclusivamente a condição de tutores de comunidades culturais, podem mesmo propagandear sincronicamente com as manifestações a condição de oprimidos pelo sistema? Creio que não, é muita desfaçatez, tal a sua unidade estrutural e o seu distanciamento da realidade de milhões de pessoas ligadas à cultura brasileira.


Acho também que essa escandalosa questão do Fora do Eixo abre espaço para um debate franco sobre a orgia das leis de incentivo à cultura e dos editais perante o fruto da vida solidária de nossa sociedade, que é a cultura. Afinal, estamos falando de milhões de recursos públicos que irrigam o sistema Fora do Eixo.


Creio que a necessidade de um debate se impõe justamente porque, um grupo que se apresenta como movimento social grita, principalmente contra o governo Dilma, mas também contra as bandeiras dos partidos políticos, dos movimentos sociais, das centrais sindicais, etc., de forma arrogante e pretensiosa quando a sua real estrutura empresarial escancara que, na prática, seu discurso é diametralmente oposto ao que todo o seu palavrório propõe como “líder da juventude do novo contra o velho” e todo um alarido cínico de pós-rancor. O que na realidade significa ser um braço das grandes corporações nas manifestações de rua se utilizando das leis de incentivo para cooptação dos incautos.


Fonte: Trezentos

"Henri Lefebvre e a atualidade urgente do Direito à Cidade", por João Tonucci

PICICA: "Segundo Lefebvre, com a industrialização, uma extrema segregação se impõe aos grupos, etnias, estratos e classes sociais, destruindo morfologicamente a cidade e ameaçando a vida urbana. Os trabalhadores, expulsos da cidade para as periferias, perdem o sentido da cidade como obra criativa e coletiva. O habitat (a moradia reduzida à função, o habitante submetido à cotidianidade alienada) substitui o habitar (o viver plenamente a cidade). O urbanismo, ideologia e estratégia de classe calcada sob uma racionalidade fragmentadora, intensifica as segregações através da separação funcional das atividades e da sociedade no espaço."


Henri Lefebvre e a atualidade urgente do Direito à Cidade

João Tonucci 

Em meio à pluralidade do vozerio e da imagética multitudinária que invadiu as ruas brasileiras de forma surpreendente em junho de 2013, reiteradas vezes defrontamo-nos com bandeiras e gritos pelo direito à cidade. A expressão está na boca de todos, apropriada e difundida (outros diriam banalizada) por grupos tão distintos quanto movimentos sociais urbanos autônomos e organismos internacionais como Banco Mundial e UN-Habitat. A existência de uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade, elaborada entre 2004 e 2005 ao longo do Fórum Social das Américas, Fórum Social Urbano e V Fórum Social Mundial[1], atesta a fama mundial e atualidade da ideia.

Poucos, entretanto, sabem que o conceito foi originalmente formulado pelo filósofo marxista francês Henri Lefebvre (1901-1991), que no catártico ano de 1968 publicou um pequeno livro intitulado Le droit à la ville. Até então, Lefebvre se permitira investigar temas à margem do marxismo oficial e dogmático (como a vida cotidiana, a alienação, a festa, a espontaneidade, o mundo rural, a modernidade etc.) a partir de uma renovação do método dialético, e se colocara, logo no pós-II Guerra, numa posição de crítica ao socialismo de estado, o que lhe custou não apenas a censura – e subsequente expulsão – do Partido Comunista Francês, mas também uma posição periférica no panteão do pensamento crítico, que só há pouco começa a ser revertida.

le droit a la ville

O interesse de Lefebvre pela questão urbana remonta anteriormente ao livro Introdução à modernidade (1962), em que o autor discorre algumas notas críticas acerca da experiência de Mourenx, cidade nova planejada nos Pirineus franceses, a poucos quilômetros de Navarrenx, sua querida terra natal. Os espaços racionalmente organizados, as vias cartesianamente desenhadas, as máquinas de morar dos grandes conjuntos habitacionais, a separação criteriosa de todas as funções urbanas: esse espaço concebido por tecnocratas a serviço da modernização representava para Lefebvre a negação de tudo que a cidade tinha de mais positivo: o encontro, a diversidade, o imprevisível.  Mas é na pequena coletânea de ensaios O direito à cidade, rascunhados ao longo da década de 1960, que Lefebvre realiza a sua primeira incursão substantiva em torno da problemática urbana, que iria se desdobrar em outras obras fundamentais ao longo da década de 1970 (como A revolução urbana – 1970 e A produção do espaço – 1974).

Para Lefebvre, a cidade, dos gregos à idade média, constituiu-se como uma totalidade orgânica, obra máxima da civilização. Socialmente produzida, a cidade é diferente de todos os demais produtos: o que lhe dá especificidade é o primado do valor de uso sobre o valor de troca. Como se usa a cidade? Através das suas ruas, quarteirões, monumentos e espaços públicos, através da festa, momento de consumo improdutivo de energias e recursos em favor somente do prestígio e do prazer. Para Lefebvre, não pode haver cidade sem centralidades, sem um centro dinâmico repleto de urbanidade, momentos vividos, espaços públicos vibrantes, encontros encantadores e surpresas a cada esquina.
O desenvolvimento do capitalismo industrial rompe essa unidade, destrói as barreiras e a simbiose entre a cidade e o campo, coloniza e secciona a vida cotidiana. A cidade tradicional explode no tecido urbano informe e estendido, formado por fragmentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios, cidades-satélites etc.). A cidade, outrora valor de uso (fruição, beleza), é transformada em mercadoria, produto com valor de troca, espaço privado para realização do lucro. Neste processo, a realidade urbana da cidade (amplificada e estilhaçada) perde os traços anteriores de totalidade orgânica, sentido de pertencimento, espaço demarcado, monumentalismo enaltecedor.

É a partir do caso de Paris que Lefebvre vai tecer suas reflexões. O risco da democracia urbana, que se torna evidente nas jornadas de 1848, e vai se confirmar na Comuna de 1871, assusta a burguesia ascendente. Qual a resposta política? Expulsar os trabalhadores do centro da cidade, remodelando-a à imagem e semelhança da nova classe dominante. É este o sentido principal das reformas urbanas empreendidas pelo Barão de Haussmann em Paris entre 1853 e 1870, que dilaceraram o coração tortuoso e vivo da cidade medieval, abrindo-a em vastos bulevares a serem povoadas por edificações padronizadas.

Mas a haussmannização também é nossa velha conhecida: da abertura da Avenida Central por Pereira Passos ao Porto Maravilha no Rio de Janeiro, do Plano de Avenidas de Prestes Maia à Nova Luz em São Paulo, da Planta Geral da Cidade de Minas por Aarão Reis às novas vias abertas para dilacerar as favelas de Belo Horizonte. Para não falar das remoções forçadas do PAC e das obras da Copa, da expulsão dos pobres para a periferia precária praticada pelo mercado imobiliário, dos longínquos conjuntos habitacionais – antes BNH, hoje Minha Casa Minha Vida.

Segundo Lefebvre, com a industrialização, uma extrema segregação se impõe aos grupos, etnias, estratos e classes sociais, destruindo morfologicamente a cidade e ameaçando a vida urbana. Os trabalhadores, expulsos da cidade para as periferias, perdem o sentido da cidade como obra criativa e coletiva. O habitat (a moradia reduzida à função, o habitante submetido à cotidianidade alienada) substitui o habitar (o viver plenamente a cidade). O urbanismo, ideologia e estratégia de classe calcada sob uma racionalidade fragmentadora, intensifica as segregações através da separação funcional das atividades e da sociedade no espaço.

É contra esse estado de coisas que Lefebvre formula a ideia iluminadora do direito à cidade. Ele assim a define (Lefebvre, 2010, p. 139):

[...] o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais etc.). A proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso (da troca e do encontro separados do valor de troca) exigem o domínio do econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria) [...]

Uma leitura apressada e descuidada pode sugerir que Lefebvre está propondo uma nostalgia romântica, um retorno ao paraíso perdido anterior à modernização capitalista, quando tudo seria integrado, artesanal e autêntico. Mas no seu pensamento não há idealização do passado, tampouco regresso possível à cidade tradicional ante a completa urbanização da sociedade.  O que se busca é um novo humanismo, aquele do homem urbano, mesmo que seja em meio às colossais megalópoles explodidas, vastos espaços de desolação e insignificância. Lefebvre fala da construção de uma nova cidade, sobre novas bases, numa outra escala. Cidade voltada à apropriação, através sobretudo da arte, que reconstitui o sentido da obra e da fruição. Em oposição à cidade eterna e aos centros estáveis, a cidade efêmera, as centralidades móveis. A criação de novos lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontro, onde a troca não esteja subordinada ao comércio e ao lucro.
O autor insiste: o direito à cidade não é um direito de visitar os centros de cidades históricas, ou do trabalhador passar o dia na cidade da qual foi expulso: trata-se de um direito à vida urbana transformada e renovada. O direito à cidade aponta para o fim das segregações, a reconquista da cidade pelas classes e grupos minoritários dela excluídos. A praxis urbana anunciada vai na direção da reunião daquilo que se acha disperso, dissociado e separado, na direção da simultaneidade e do encontro. Enfim, o que Lefebvre está propondo é, ao lado da revolução econômica (planificação orientada para as necessidades sociais) e da revolução política (controle democrático do aparelho estatal, autogestão generalizada), uma revolução cultural permanente: transformar o mundo (Marx) e indissociavelmente mudar a vida (Rimbaud).

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As jornadas de junho brasileiras revelaram duas grandes insatisfações coletivas (sem querer reduzir a elas a potência diversa das ruas): a primeira, quanto à precariedade dos serviços públicos básicos (particularmente transporte urbano, estopim das manifestações), e a segunda, quanto à legitimidade e amplitude das formas de representação e participação política instituídas. A despeito do pleno-emprego, do crescimento e da estabilidade, o que se expressou foi o desejo por algo mais: o aprofundamento e radicalização da democracia, da transparência pública e do controle social, e o fortalecimento das experiências e realidades do mil brasis – dos índios, dos negros, dos gays, dos jovens etc. – que resistem às pretensões neo-liberais-desenvolvimentistas dos grandes projetos e dos grandes eventos do Brasil-Maior.

As cidades, mais do que o locus privilegiado de explosão das manifestações, são também objetos de contestação e luta, na medida em que amplificam e transformam as contradições acumuladas ao longo dos últimos anos de transformação social e econômica no país. Ante o avanço violento do capital imobiliário, da indústria automobilística e das grandes obras na última década, nossas cidades têm sucumbido a um intenso processo de mercantilização e privatização que atende aos interesses minoritários das elites em detrimento das necessidades cotidianas de seus moradores. Não é de se estranhar que as pautas levantadas nas manifestações sejam também por melhores condições de vida nas cidades, por cidades mais justas, mais diversas e democráticas. Como Lefebvre já anunciara, a luta política se deslocou decisivamente do chão-de-fábrica para todo o urbano.

A realidade urbana (induzida pela industrialização) tornou-se causa indutora, e a problemática urbana impôs-se à escala mundial.  Hoje, ante o reconhecimento da irreversível urbanização planetária e da explosão dos problemas ditos “urbanos” em todo o mundo, o direito à cidade encontra-se cada vez mais associado à garantia de acesso às infraestruturas e serviços urbanos básicos (habitação, transporte, saneamento etc.). Algumas vezes, aparece também como sinônimo de gestão urbana democrática, de abertura dos processos de planejamento da cidade à participação direta. Todos esses sentidos estão certamente contemplados na acepção original. Mas o direito à cidade para Lefebvre tem um sentido com uma potência radical que vai além da demanda por “coisas” e “processos” que estão e se dão na cidade: trata-se da luta pela cidade como obra, totalidade, realização coletiva.

É aí que reside a atualidade urgente do direito à cidade lefebvriano. Entendido não enquanto somente a garantia de acesso às condições mínimas de reprodução social – necessárias, sem dúvida –, mas enquanto direito efetivo à vida urbana, ao encontro, à obra em detrimento do produto. O direito à cidade não apenas como acesso à cidade, mas direito do usuário a transformar democraticamente a cidade. Não reduzido à um direito juridicamente constituído, ele se afirma como bandeira de luta contra as múltiplas segregações que se impõem através da tecnocracia estatal e do neoliberalismo capitalista, contra a mercantilização brutal do espaço urbano em curso. O grito pelo direito à cidade ecoado no último junho – e ainda ressoante – certamente não dá conta de sintetizar os múltiplos sentidos das vozes da multidão, mas expressa uma latente necessidade, expressa no próprio ato de reconquista coletiva das ruas: o desejo de constituição do comum no encontro com o outro, na luta pela produção e apropriação do que sempre foi o nosso comum – a cidade.

Referências:

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

MERRIFIELD, Andy. Henri Lefebvre: a critical introduction. New York: Routledge, 2006.



Fonte: Olho da Rua