julho 25, 2013

"A ética do capitalismo e o saneamento no Brasil", por Léo Heller

PICICA: "O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab),1 aprovado em 7 de junho de 2013 pelo Conselho Nacional das Cidades e em fase de publicação pela Presidência da República, procura traçar um quadro realista do acesso da população a soluções adequadas de saneamento, incorporando às tradicionais estatísticas uma dimensão qualitativa do atendimento. O plano revela que cerca de 40% da população brasileira − 77 milhões de habitantes − ainda carece de um abastecimento de água seguro e contínuo e que 60% − 114 milhões de pessoas − não dispõe de solução adequada para seu esgotamento sanitário, incluindo aquela parcela da população que tem seus esgotos coletados e lançados sem tratamento no ambiente. Aponta ainda que cerca de 40% da população não é beneficiada com manejo sanitária e ambientalmente adequado de resíduos sólidos. Descreve também as mazelas decorrentes dos descasos com as ações de drenagem e manejo das águas pluviais, submetendo as cidades brasileiras a periódicos e crescentes eventos dramáticos de inundações e enchentes."

CIDADES
A ética do capitalismo e o saneamento no Brasil
O quadro do saneamento segue compondo uma das mais iníquas e excludentes políticas sociais do país. Embora com perspectivas otimistas, como a criação do Plano Nacional, os sinais emitidos pelo governo são ambíguos. Entre Estado e mercado, o capitalismo brasileiro vem oscilando e a população sentirá as consequências
por Léo Heller


O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab),1 aprovado em 7 de junho de 2013 pelo Conselho Nacional das Cidades e em fase de publicação pela Presidência da República, procura traçar um quadro realista do acesso da população a soluções adequadas de saneamento, incorporando às tradicionais estatísticas uma dimensão qualitativa do atendimento. O plano revela que cerca de 40% da população brasileira − 77 milhões de habitantes − ainda carece de um abastecimento de água seguro e contínuo e que 60% − 114 milhões de pessoas − não dispõe de solução adequada para seu esgotamento sanitário, incluindo aquela parcela da população que tem seus esgotos coletados e lançados sem tratamento no ambiente. Aponta ainda que cerca de 40% da população não é beneficiada com manejo sanitária e ambientalmente adequado de resíduos sólidos. Descreve também as mazelas decorrentes dos descasos com as ações de drenagem e manejo das águas pluviais, submetendo as cidades brasileiras a periódicos e crescentes eventos dramáticos de inundações e enchentes.

Trata-se, efetivamente, de um quadro inaceitável para um país que tem pretendido se exibir na cena internacional com elevado nível de desenvolvimento e vem se guiando pela meta da erradicação da pobreza. Provavelmente, entre o conjunto das políticas sociais do Brasil, essa é a mais excludente, iníqua e localizada na mais baixa escala de desempenho. Não é supérfluo assinalar a não aleatoriedade da distribuição desses déficits: são mais baixas as coberturas no Norte e Nordeste do país que no Sul-Sudeste; são muito mais baixas nas zonas rurais que nas urbanas; muito inferiores nas vilas e favelas. Ademais, localizam-se claras correlações entre o déficit e indicadores socioeconômicos, como renda, escolaridade e cor da pele. Estudo com base no Censo 2000 revelou que uma família numerosa e de baixa renda agregada, cujo chefe é do sexo masculino, jovem, cor da pele negra e de baixa escolaridade, apresenta probabilidade cem vezes menor de estar conectada a uma rede de esgotos se comparada com outra que apresente características opostas.2

São abundantemente documentados e evidenciados os impactos da precariedade das condições de saneamento, entre outras dimensões, sobre a saúde infantil, a qualidade do ambiente físico e a insalubridade do meio, restringindo a capacidade de emancipação humana.3

Caberia questionar os porquês desse quadro e as perspectivas para sua superação.

As explicações sobre a persistência do atraso não são lineares. De forma geral, poderiam ser sintetizadas como a crônica ausência de uma política pública estruturada, com o mínimo de continuidade e com claro diagnóstico sobre as limitações das práticas historicamente desenvolvidas, ao mesmo tempo fazendo face às demandas ditadas pela dinâmica demográfica e assegurando a sustentação gerencial e operacional dos investimentos já praticados. Na quadra mais recente da história, o setor de saneamento, após a extinção do BNH em 1986, oscilou entre as instabilidades institucionais anárquicas (governo Sarney), a supervalorização dos agentes privados na determinação dos rumos políticos do setor (governo Collor), um nacionalismo com poucos resultados para a área (governo Itamar Franco), tentativas sistemáticas e malsucedidas de ampliação da participação privada (os dois mandatos do governo FHC) e ações para a ordenação institucional do setor (primeiro mandato do governo Lula).4 É recente (de 2007) a promulgação da Lei n. 11.445, que estabelece o marco regulatório nacional para o setor, mas ainda não se faz sentir fortemente a reorganização que dele se espera decorrer. Essa política instável, entre outros efeitos, conduziu a um investimento público irregular, a um desprezo pelo planejamento e a uma mal concertada – e frequentemente conflituosa – articulação interfederativa, ingredientes extremamente nocivos para uma área que claramente requer continuidade e suporte ao poder municipal.

Mas nem tudo é desesperança. O governo brasileiro vem conseguindo ampliar os investimentos no setor, sobretudo a partir de 2007, embora persistam dificuldades para converter os recursos alocados em recursos aplicados, em razão de ineficiências no fluxo de investimentos e da desestruturação que sofreram as diversas engrenagens do ciclo planejamento-projeto-execução, necessário para a adequada aplicação dos recursos. É também alvissareira a inédita aplicação regular de recursos não onerosos para aqueles prestadores de serviços com capacidade limitada de contratação de financiamentos com origem no FGTS e no FAT, apesar de que, muitas vezes, sejam aportados por intermédio das famigeradas emendas parlamentares, que subvertem qualquer tentativa de planejamento.

Constitui ainda promissora perspectiva a aplicação do Plansab, que potencialmente propiciará a recuperação do papel do Estado na efetiva coordenação das ações setoriais, a consolidação do controle social, a estabilidade dos investimentos públicos e a qualificação da gestão, entre outras medidas necessárias para o avanço do atendimento populacional com a qualidade requerida. Prevê investimentos com recursos federais da ordem de R$ 300 bilhões nos próximos vinte anos – correspondendo tão somente a cerca de 0,4% do PIB –, capazes de elevar significativamente o acesso da população a condições adequadas de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e manejo de águas pluviais.

Sinais ambíguos para o encaminhamento do problema

Entretanto, os atuais sinais emitidos pelo governo brasileiro são relativamente ambíguos. Ao lado da promessa da colocação em prática do plano nacional, democraticamente construído e comprometido com a universalização do acesso, intensificam-se discursos apostando nas parcerias público-privadas (PPPs) como o caminho para essa universalização,5 revivendo a máxima de Deng Xiaoping: “Não importa a cor do gato, contanto que cace o rato”. Ambos os caminhos poderão ser inconciliáveis.

Não se trata de uma apriorística aversão à participação privada no saneamento, pois ela tem tido papel cativo nas atividades-meio do setor, como na elaboração de projetos, na construção e no fornecimento de materiais e equipamentos. Aliás, essas funções têm motivado muitas políticas (neo)desenvolvimentistas, visando ao aquecimento da atividade econômica, como se observa atualmente, em tempos de PAC. Porém, ao apostar na prestação privada dos serviços, atividade-fim, para assegurar sua universalização, o governo brasileiro ignora todo o acúmulo de formulações teóricas e evidências empíricas sobre a privatização de um setor caracterizado como monopólio natural, como o de saneamento.6 Diversas experiências, em várias partes do mundo, mostraram as limitações do modelo e seus fracassos,7 que desnudaram suas fragilidades, ao lado da crônica capacidade deficiente de regulação por parte do Estado, em que o regulador, diante do monopólio, depara com os limites para uma efetiva autonomia perante o prestador e os governos com dificuldades de exercer seu poder coercitivo e punitivo. Ou seja, os almejados princípios de independência decisória, autonomia, tecnicidade e objetividade das decisões, que deveriam caracterizar o exercício da regulação conforme a Lei n. 11.445, muitas vezes não passam de figura de retórica.

Essa é a natureza das tradicionais formas de concessão à iniciativa privada na prestação dos serviços, às quais se acrescenta a atual onda das PPPs, que mantêm parte de suas características, mas com maior volume e facilidade de transferência de recursos públicos aos entes privados. Notam-se, no entanto, novos movimentos do setor privado em sua atuação em saneamento. A abertura do capital acionário das companhias estaduais de água e esgotos e a transferência de ativos de empresas públicas para o setor privado são algumas das metamorfoses que o capital vem encontrando para atuar no setor, muitas vezes concebendo modelos para minimizar riscos e maximizar resultados financeiros. Particularmente, a propriedade compartilhada das companhias estaduais, entre as quais se incluem as de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, constitui processo que não tem sido avaliado com a profundidade necessária pelo campo tradicionalmente defensor do saneamento público. O eufemismo de denominá-las de “públicas”, com todos os benefícios decorrentes, entre outros na captação de recursos públicos e na obtenção de apoio federal, obscurece a perversa equação financeira que operam ao transferir recursos tarifários e orçamentários captados no interior do setor para agentes econômicos externos, configurando uma verdadeira evasão de divisas.

O atual momento da política de saneamento básico, além disso, tem equivocadamente supervalorizado sua dimensão financeira. Já se investiu um volume de recursos públicos nada desprezível desde a década de 1970, e grande parte das regiões beneficiadas ainda carece de sustentabilidade para a prestação adequada dos serviços. Parece imprescindível, no mesmo compasso em que se destinam recursos para o setor, que este seja guarnecido por um conjunto complementar de medidas, incluindo modelos mais eficazes de regulação, arranjos tarifários que associem equilíbrio financeiro e justiça distributiva, controle social sobre os prestadores, modelos de organização adequados fortalecendo os consórcios públicos e ações intersetoriais. O Plansab denomina esse conjunto de necessidades de medidas estruturantes e destina um dos três programas propostos exclusivamente a elas. Entretanto, não tem sido essa a visão do PAC, voltado unicamente para a construção da infraestrutura física.

Como o capitalismo brasileiro se comportará?

Esse quadro coloca em questão a forma ambígua e até esquizofrênica como o capitalismo brasileiro, monopolista e neodesenvolvimentista vem abordando e pode abordar o futuro do saneamento no país. Observam-se claramente duas polaridades: saneamento como parte do esforço para ampliar o welfare stateou saneamento comodificado e mercantilizado; necessidade de um país com uma “imagem civilizada” e baixo nível de desigualdade e de pobreza perante o palco das nações ou saneamento monopolizado por umas poucas empresas construtoras, com forte lobby para determinar a política setorial; saneamento como forma de fortalecimento do cidadão, ainda que visando ampliar o mercado consumidor e expandir o capital, ou saneamento produtor de mais-valia, na esteira da inércia neoliberal. Evidentemente, nem todas essas opções são antagônicas, mas correspondem a polos diferentes e podem acarretar diferentes direções e implicações.

É importante revisitar a trajetória dos países capitalistas centrais. Neles, a universalização do acesso ao saneamento foi conquistada por volta de uma década após a Segunda Guerra Mundial, com a preocupação de proteger a saúde pública, recuperar o ambiente urbano e garantir a segurança da população. Ocorreu predominantemente sob a égide da prestação pública dos serviços, ainda que interesses privados tenham tido forte influência em alguns países nesse período.8 Conforme observou Engels, cidades inglesas no século XIX viviam uma crise aguda, baseada na “segunda contradição do capitalismo” – a degradação ambiental provocada pela expansão do capital, necessariamente restringindo as condições para sua produção e acumulação –, ficando cada vez mais inabitáveis e limitando as condições para a reprodução do próprio capital, com acesso a água limpa e melhoria da saúde pública.9 Foi precisamente esse quadro que mobilizou as forças políticas e econômicas locais e nacionais para sanear as cidades na primeira metade do século XX. É mais recente, sobretudo a partir da década de 1980, o aprofundamento do processo de privatização, inserindo a água nos “fluxos de capital” e no desenvolvimento dos modernos mercados capitalistas.10

Os impasses do capitalismo brasileiro, no tocante à política que imprimirá para a área de saneamento, estão colocados. Caso esse setor seja encarado primordialmente como parte da engrenagem necessária para a expansão e a reprodução do capital privado, com base nos cânones do neodesenvolvimentismo, pode-se assistir à não superação das iniquidades e das ameaças ambientais atuais. Caso prevaleça a compreensão do saneamento como elemento indispensável para a conquista dos direitos sociais para todos, inclusive sob o preceito do direito humano à água e ao esgotamento sanitário decretado pela ONU em 2010, pode-se avançar na direção de uma situação merecida por toda a população brasileira, indistintamente de sua situação de classe e de sua condição social, econômica, étnica ou regional.

Léo Heller 

Professor titular do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG. Entre os trabalhos publicados, editou o livro Agua y saneamiento: en la búsqueda de nuevos paradigmas para las Américas (Organización Panamericana de la Salud, 2012) e, com José Esteban Castro, Política pública e gestão de serviços de saneamento (Editora UFMG/Editora Fiocruz, 2013).


Ilustração: Daniel Kondo
1 Disponível em: .
2 S. C. Rezende, S. Wajnman, J. A. M. Carvalho e L.Heller, “Integrando oferta e demanda de serviços de saneamento: análise hierárquica do panorama urbano brasileiro no ano 2000”, Engenharia Sanitária e Ambiental, v.12, p.90-101, 2007.
3 Para uma interessante discussão sobre o conceito de liberdade, direitos humanos e o pleno desenvolvimento das capacidades humanas, com base na teoria de Amartya Sen, e sua relação com o acesso ao saneamento, ver J. P. Mulreany, S. Calikoglu, S. Ruiz e J. W. Sapsin, “Water privatization and public health in Latin America” [Privatização da água e saúde pública na América Latina], Revista Panam Salud Publica, v.19, n.1, p.23-32, 2006.
4 Para uma análise mais detalhada, ver L. Heller, “Access to water supply and sanitation in Brazil: historical and current reflections; future perspectives” [Acesso a água e saneamento no Brasil: reflexões atuais e históricas; perspectivas futuras], Human Development Report, 2006. Occasional paper.
5 Ver, por exemplo, notícias na imprensa, como em: .
6 Para uma argumentação mais completa, ver José Esteban Castro e Léo Heller, “A participação privada em saneamento e seus sofismas”. Disponível em: .
7 Alguns exemplos emblemáticos são dos casos de Buenos Aires, Cochabamba e La Paz-El Alto,
Atlanta e Paris, cidade que foi berço das maiores multinacionais do mundo no campo do saneamento e onde, em 2010, o município decidiu não renovar o contrato dos concessionários privados.
8 Para uma descrição dessa trajetória, ver capítulos do livro de Léo Heller e José Esteban Castro, Política pública e gestão de serviços de saneamento, Editora UFMG/Editora Fiocruz, 2013.
9 Ver L. Proyect, “David Harvey, Jame O’Connor and Engels’ Conditions of the Working Class in England” [David Harvey, Jame O’Connor e A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Engels]. Disponível em: .
10 Ver M. Gandy, “Rethinking urban metabolism: water, space and the modern city”, [Repensando o metabolismo urbano: água, espaço e cidade moderna], City, v.8, n.3, p.363-379, 2004.
02 de Julho de 2013

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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