julho 05, 2013

"Em defesa de uma “classe média”", por Rodrigo Cássio

PICICA: "Enquanto a chamada “classe” média brasileira for interpretada como uma categoria modificada do proletariado ou uma evolução da burguesia opaca que se afeta em pseudo-revoltas, ela não terá direito à sua consistência interna, nem poderá se emancipar da narrativa dicotômica incomodada pelo fato de que esse grupo social é, naturalmente, um desafio às dicotomias. Essas duas interpretações recusam o direito da “classe média” à consistência interna quando apontam a sua “consciência de classe” como algo ainda não desenvolvido, uma vez que ela não percebe o seu próprio pertencimento aos explorados da mais-valia relativa; o mesmo ocorre quando lhe atribuem uma “má consciência” de pequenos exploradores (ainda os “pequenos burgueses”!), e por isso omissos e indiferentes às necessidades dos explorados. Ambas as leituras supõem alguma forma de alienação como determinante de toda uma parte da sociedade, sem olhar de frente para o seu intrincado processo de formação no Brasil. Ambas não fazem mais que matar a dialética a que acreditam estar servindo, eliminando o movimento, o trânsito, o valor do medium que se instala entre os opostos."

Em defesa de uma “classe média”

Das novidades que surgiram no Brasil recente, a elevação de uma classe média aberrante e fechada para uma agenda de esquerda, como na caricatura proposta por Marilena Chauí, é das menos críveis.




Há um deboche no conceito de classe média que certa esquerda uspiana tem usado publicamente para fazer a crítica política do Brasil. Essa mesma esquerda, apoiadora história do PT, relativiza o fato de que tópicos econômicos centrais de uma agenda de direita garantiram boa parte do sucesso das presidências de Lula e (relativamente) Dilma, seja na continuidade da estabilidade da era FHC ou no aprofundamento da inclusão à “cidadania” por meio do consumo.

Essa modernização capitalista do Brasil ocorreu – e ocorre – simultaneamente a uma anemia institucional progressiva e a uma desvalorização da cultura e do saber que inviabiliza a soma política de igualdade e liberdade. Essa soma, de fato, poderia constituir o objetivo maior de uma “direita”, porque culturalmente liberal, eminentemente democrática e, se quisermos, reformista – diferenciando-a, assim, da matriz revolucionária animada pela esquerda. Porém, forjar a “direita” como inimiga impermeável é fundamental para que a própria “esquerda” exista, e desponta nos últimos tempos este conceito vago e hostil de classe média – cujo objetivo parece ser, antes de tudo, salvar a teoria da luta de classes e enquadrar a sociedade de consumidores nos mesmos ditames críticos de décadas atrás.

O mais interessante é que, nesse passo, essa esquerda flerta com uma perspectiva desenvolvida com mais consistência pela extrema-esquerda marxista que há muito tempo se desinteressou pelos governos do PT e definiu seu lugar diretamente nos movimentos sociais “autônomos” – ou seja, ali mesmo onde uma classe poderia articular ações contra o poder do Estado que, a rigor, atua sobretudo como uma proteção da ordem a serviço do capital. Essa extrema-esquerda atribuiu desde cedo à “nova classe média” o caráter de proletariado da mais-valia relativa, sem ceder à incoerência de, ao fazer isso, continuar defendendo os enlaces que se dão no interior do partidarismo e da “democracia formal”, tida como fracassada já desde o seu aparecimento na modernidade.

Se é para falar em uma “esquerda” marxista, hoje, ela certamente não se realiza na tese de que os manifestantes de junho de 2013 são membros de uma classe média incapaz de fazer uma política transformadora, nem pelas mãos dos representantes petistas que se intitulam “de esquerda” enquanto administram o capitalismo. Esse é um dado do jogo político que está presente há muito tempo, lançando duas alternativas: por um lado, o abandono do marxismo, ou pelo menos de sua ênfase na percepção das lutas sociais como embates enraizados na configuração econômica das relações; e, por outro, simplesmente o abandono do rótulo “esquerda”. Há ainda uma terceira via, que resulta em uma modulação deste rótulo, na medida em que o privilégio da análise econômica, típica de Marx, cede espaço a outras formas de consideração de injustiças sociais, identificando na cultura – resguardada a amplitude desse conceito –, a origem de problemas que afetam o mundo moderno (eis a esquerda que se constituiu em torno da luta contra o eurocentrismo, o racismo, o machismo, o humanismo etc.). As diferenças entre aquela esquerda “economicista” e essa esquerda “culturalista” tornaram-se ainda mais evidentes nos protestos de junho no Brasil.

Ora, das novidades que surgiram no Brasil recente, a elevação de uma classe média aberrante e fechada para uma agenda de esquerda, como na caricatura proposta por Marilena Chauí, é das menos críveis. Há algo de ingênuo na pensadora que apresenta a si mesmo como uma aberração, como fez Chauí em uma palestra bem humorada em Goiânia, há poucos meses. Essa ingenuidade está ligada, penso, aos fenômenos próprios da construção simbólica da realidade pela comunicação, numa época em que a indústria cultural está mais firme do que nunca no país e, por outro lado, as novas tecnologias viabilizam formas inéditas e ainda pouco explicadas de relações interpessoais, de sensibilidade política e de auto-reconhecimento dos indivíduos enquanto parte de um corpo social.

Será que este Brasil que elege o PT há tantos anos, com 60% da população reconhecendo-se na classe média, pode ser espelhado na imagem sugerida pelas páginas mais reacionárias da revista Veja? Ao contrário, como lembrou Hélio Schwartsman em um artigo muito pontual na Folha de São Paulo, as pesquisas apontam que temas “de esquerda” como a descriminalização do aborto e das drogas, ou os direitos civis dos homossexuais, encontram acolhida mais positiva justamente entre os membros da classe média.

Alguém poderia perguntar: E os políticos neopentecostais? E a multidão de seguidores que emplaca tais lideranças nas urnas brasileiras a cada eleição? Há evidências suficientes, acredito, de que o “conservadorismo” desse segmento, cada vez mais forte, está arraigado em motivações religiosas e culturais que possuem uma natureza mais ampla, complexa e desafiadora do que poderia apontar qualquer análise iniciada pela comparação da religião com o ópio. Insistir no recorte pelo trabalho, o nível de consumo ou a renda mensal, itens que fazem surgir o conceito de “classe média” por trás da legião que elege esses políticos, acaba desviando a crítica necessária do obscurantismo que eles preconizam (e que não representa a totalidade dos protestantes, vale dizer). O poder oriundo da manipulação emotiva das massas evangélicas, que conta com uma indústria cultural particular no Brasil, não será contraposto pelo combate à metafísica, à religião, às crenças e aos rituais gnósticos, como querem ateus militantes que não raro banalizam séculos de teologia e filosofia no frisson edificante das redes sociais. Muito mais eficaz é a prática convicta da distinção. Há distinção, por exemplo, em afirmar e defender o Estado laico das investidas de quem não o compreende e não o respeita, ou finge não compreendê-lo.

Mas é claro que, mantendo a perspectiva marxista tradicional, uma defesa enérgica do Estado laico tende a ser, também ou apenas, um subterfúgio ideológico para a manutenção da ordem capitalista. Problemas como o que se aloja nesse paradoxo tem dividido pessoas ligadas à tradição de esquerda pela maneira como compreendem a práxis, a luta efetiva para transformar a realidade. Não é por acaso que muitos militantes se retiraram das ruas tão logo a “classe média” saiu de casa nos protestos brasileiros, e continuam, ainda agora, a afirmar que as bandeiras surgidas de maneira difusa e confusionista são eminentemente “de direita”, prejudicando as lutas que realmente importariam – isso acontece tanto diante da crítica à corrupção (uma causa realmente abstrata e vaga, indistinta) como diante da hipótese de uma reforma política (que torna a crítica à corrupção mais precisa e pode, se bem conduzida, encaminhar respostas a ela).

Há, também na própria “esquerda” (em todo o espectro), muito de dogmatismo e obscurantismo, tanto na fixação em esquemas conceituais já produzidos (“luta de classes”) como na tentativa de responder aos fatos sem um verdadeiro interesse pelo abalo que eles poderiam causar na teoria. A crítica ao obscurantismo, de todos os tipos, talvez seja o que há de mais difícil nessa era de intensa comunicação que relativiza os conteúdos e cria uma instabilidade sem fundamentos nem precedentes, e cuja maior vitrine continua a ser as manifestações multitemáticas e as respostas que o poder tenta dar a elas.

Penso que é possível, diante disso, fazer a defesa de uma “classe média” e dispensar o discurso de ódio que reduz o termo à simples identificação de novos proletários, ou vilões alienados, que a sociedade de consumo teria ressaltado na paisagem política do Brasil recente. O uso corrente do conceito tem negligenciado as possibilidades etimológicas de “média”, palavra originada do latim medium, e que envolve as ideias de “meio”, “mediania”, “mediação” ou “metade”. Modernamente associada aos meios de comunicação social na forma plural media (derivando a grafia “mídia” em Português), o termo medium propõe a dignidade ontológica e a importância estratégica da intermediação. Ele não anula nem ignora que a realidade é plena de diferenças e oposições, e tampouco que há conflito entre os opostos. Se não houvesse os opostos, não haveria essa zona transitória que tanto os separa como os põe em contato para que se antagonizem. É nessa passagem transparente, que permite travessias, que o latim medium vai ao encontro de meditator, anunciando o agente conhecido em Português como “mediador”. Este se encarrega não apenas de intervir em uma situação para tornar possível a resolução dos conflitos, como também é responsável por esclarecer as condições em que o próprio conflito ocorre, separando os opostos, eliminando o aspecto turvo que a paixão dos embates provoca e fazendo as distinções que viabilizam encaminhamentos.

Quanto mais esclarecidos e menos comprometidos com os privilégios nada democráticos que as elites históricas possuem no Brasil, mais podemos supor que os membros da nossa sociedade “média” podem ajudar a realizar mudanças significativas “no que está aí”. Penso que é a partir dessa classe média, quanto mais ela for imune às cooptações vulgarizantes da indústria cultural e capaz de não se ocupar apenas com a manutenção diária da própria vida, que pode vir a ganhar força aquele senso de civismo e consideração pela liberdade de um ponto de vista igualitário (mas não simplesmente “igualitarista” ou “horizontalista”) que Tocqueville chamava de “virtude”, e cuja ausência condena a democracia a um retumbante fracasso. Isso não quer dizer que fora da classe média nada é possível, mas sim que a tentativa de excluir a sua função mediadora, a sua condição de meditator, incorporando-a rapidamente a um lado da oposição de classes, é uma projeção que apenas negligencia e retira aquela dignidade ontológica garantida pela origem latina do termo.

Enquanto a chamada “classe” média brasileira for interpretada como uma categoria modificada do proletariado ou uma evolução da burguesia opaca que se afeta em pseudo-revoltas, ela não terá direito à sua consistência interna, nem poderá se emancipar da narrativa dicotômica incomodada pelo fato de que esse grupo social é, naturalmente, um desafio às dicotomias. Essas duas interpretações recusam o direito da “classe média” à consistência interna quando apontam a sua “consciência de classe” como algo ainda não desenvolvido, uma vez que ela não percebe o seu próprio pertencimento aos explorados da mais-valia relativa; o mesmo ocorre quando lhe atribuem uma “má consciência” de pequenos exploradores (ainda os “pequenos burgueses”!), e por isso omissos e indiferentes às necessidades dos explorados. Ambas as leituras supõem alguma forma de alienação como determinante de toda uma parte da sociedade, sem olhar de frente para o seu intrincado processo de formação no Brasil. Ambas não fazem mais que matar a dialética a que acreditam estar servindo, eliminando o movimento, o trânsito, o valor do medium que se instala entre os opostos.

Nesse sentido, a falta de identidade, o caráter difuso e intangível das novas formas de protesto, acompanhando inclusive as transformações do trabalho do capitalismo contemporâneo, acenam para um movimento de fuga em relação à crítica tradicional, exigindo novas perguntas e novas respostas, bem como a ressignificação de conceitos, ideias e tendências. Jamais para confundir tudo com tudo e impedir o discernimento, mas, ao contrário, para aclimatar no universo político as distinções necessárias, cuja apreciação requer o distanciamento que os mediadores sempre precisaram ter em relação aos conflitos. Que a sociedade de massas dê origem, agora, a um medium que se propõe a substituir a sua media, transformando a banalidade homogênea da comunicação em novas instituições e experiências sociais é algo que em nada contradiz as melhores aspirações da própria tradição de esquerda.

Dito isso, cabe observar que o lamentável não é a esquerda brasileira ter sido “endireitada” pelo poder na era PT, mas sim que ela tenha se apropriado das piores características da “direita”. Há, muito claramente, um problema de governo e de legitimação da vida em comum que não pode ser abarcado apenas pela análise econômica (pró ou contra o capitalismo). Mesmo a esquerda radical, hoje, exige transformações que já não possuem um sinal revolucionário convincente, falando em ajustes e melhorias no sistema, como os autodenominados “anticapitalistas” que atuam pelo passe livre (falamos de “reforma”, afinal?). No entanto, no Brasil, como em outros países de tradição intelectual de esquerda forte, “conservadorismo” é um palavrão cabeludo – e ser “conservador” é um defeito em si mesmo.

Essa é, por certo, mais uma consequência da falta de distinções. Estar nas ruas para criar o novo não pode omitir a pergunta pelo que mereceria ser mantido, preservado, conservado. E se não houver nada nas ruas que pareça bom o suficiente para isso, deve ser o caso de reparar no que é invisível e impraticado, uma vez que é ideia, pensamento, criação do espírito e patrimônio cultural. O desprezo pela cultura e pelo saber, muito ligado à tendência do capitalismo atual de abarcar o domínio cognitivo, atua contra a compreensão de quão intrincadas e tortuosas são as bases que arquitetaram a realidade. Que tal arquitetura esteja mal acabada, ou até em ruínas, não significa que as ideias que a fundamentam sejam igualmente ruins, mas sim que elas precisam ser acessadas e confrontadas novamente com a realidade. Que a democracia liberal não esteja funcionando, por exemplo, não significa que o liberalismo é uma grande perda de tempo – mas tomá-lo assim, ao modo de muitos, diz bastante sobre o que o capitalismo precisa, hoje, em sua fase pós-liberal: destruição impensada das ideias, rejeição tácita do pensamento, afetação e polêmicas em vez de escolhas atentas e cuidado com as coisas.

É claro que o mesmo vale para o próprio marxismo, sem o qual a crítica do capitalismo não exibiria toda a sua tradição. Mas nenhum respeito pelas teorias é útil sem um respeito igual ou ainda maior pelos seus objetos. A classe média, por definição e por sorte, em sua própria “indeterminação”, me parece em condições favoráveis para enfrentar esse problema e, a partir dele, remeter o pensamento de volta às coisas, fazendo política.

Rodrigo Cássio

 

Professor do curso de Comunicação da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e doutorando em filosofia da arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua também como curador e crítico.

Fonte: Amálgama

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