julho 29, 2013

"Marcha das Vadias do Rio de Janeiro: os santos que nos tem quebrado" - Texto de Bárbara Araújo com colaboração de Bia Cardoso.

PICICA: "Se podemos retirar da performance que foi acusada de intolerância religiosa (com razão, creio) alguma serventia, acredito que deva ser a percepção da seletividade das coisas consideradas como inaceitáveis pela nossa sociedade. O respeito à religiosidade é direito dos cristãos. O direito à moradia digna é um direito dos ricos (e quando somamos não-cristãos à questão habitacional, o resultado é o despejo da Aldeia Maracanã). O direito ao próprio corpo é exclusividade dos homens cisgêneros. É contra essa seletividade a nossa luta. É uma luta por liberdade."


Marcha das Vadias do Rio de Janeiro: os santos que nos tem quebrado


Texto de Bárbara Araújo com colaboração de Bia Cardoso.

No último sábado, dia 27 de julho, aconteceu a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. Uma grande festa feminista e queer , com uma pauta fortemente política: pela legalização do aborto, fim da violência contra as mulheres, libertação dos corpos, respeito às mulheres trans, regulamentação da prostituição, etc. Muitas manifestações artísticas embelezando o ato, muitas palavras de ordem e músicas de enfrentamento. A maior e mais diversa Marcha desde sua primeira realização na cidade foi um momento de luta pela vida e pela autonomia das mulheres, contra a violência machista e homofóbica, contra o conservadorismo e, enfim, por liberdade.

Marcha das Vadias do Rio de Janeiro 2013. Foto de Mídia NINJA no Facebook.
Marcha das Vadias do Rio de Janeiro 2013. Foto de Mídia NINJA no Facebook.

A Marcha estava marcada há meses para essa data, como um contraponto à agenda religiosa que tomaria conta da cidade do Rio de Janeiro nesse período. O objetivo, no entanto, não era estar no mesmo lugar que a programação da Jornada Mundial da Juventude, que ocorreria em Guaratiba. Na verdade, dada a experiência das manifestações recentes no Rio de Janeiro, realizar a Marcha no olho do furacão gerou certo grau de apreensão frente à possibilidade de forte repressão pelo Estado. As movimentações políticas no Rio têm encontrado um regime de exceção, inclusive no contexto da Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Os manifestantes têm vivido um clima de terrorismo de Estado, chegando a haver ocorrências de sequestros políticos de militantes pela polícia. O cenário é grave.


Cartum do Laerte. Publicado em seu facebook.

A mudança da JMJ para Copacabana, local onde havia sido acordado com as autoridades que se realizaria a Marcha faz tempo, se deu poucos dias antes do dia 27, por consequência das chuvas que ocorreram no estado durante a semana. O terreno em Guaratiba é reconhecidamente uma área de mangue e apicum (terreno arenoso que margeia os manguezais), portanto, instável e sujeito a inundações.

Com as chuvas, o terreno se tornou um lamaçal e a organização do evento constatou a impossibilidade de realizar a JMJ no local. Os pequenos comerciantes de Guaratiba tiveram prejuízos homéricos, mas os grandes… Se a princípio parece não ter sentido que se investisse tanto dinheiro em uma área imprópria para construção, o sentido aparece quando se descobre que um dos donos do terreno é Jacob Barata, um dos maiores empresários de ônibus do Rio. O casamento da filha de Barata, a “Dona Baratinha”, foi alvo de manifestações contra a máfia dos transportes no Rio, que está fechada com o governo do prefeito Eduardo Paes.

Agora, o prefeito avalia que embora o terreno não estivesse em condições de receber os peregrinos, está bom o suficiente para que se construa um “bairro popular para os mais pobres”. Num contexto da visita de um Papa jesuíta, cujo nome remete ao franciscanismo, à simplicidade e à preocupação com os pobres, o tratamento dispensado aos pobres em seu nome é um indício da política representada por ele, considerando-se ainda as denúncias de sua conivência ao regime ditatorial na Argentina e de seu “conservadorismo popular”.


V de Vadia. V de Vândala. Foto de Mídia NINJA no Facebook.

Em Copacabana, a Marcha das Vadias começou às 13h e foi até o final da tarde. Das cerca seis horas de evento, um episódio se destacou:  uma performance realizada por duas pessoas que quebraram e “vandalizaram”, para usar a expressão corrente, crucifixos e imagens de santos. A maioria das pessoas que chegou em casa do ato, felizes e encorajadas por sua beleza e força, foi surpreendida ao ver que na mídia e nas redes sociais se falava principalmente sobre aquele fato, que muitas não tinham sequer testemunhado, e que foi tido como uma afronta e um desrespeito à religiosidade católica.

Sobre essa performance, uma questão importante deve ser esclarecida. Ela não era de conhecimento da organização da Marcha; havia uma série de performances acontecendo por todo o ato e a organização — felizmente — não se colocou no papel de censurar ninguém. Em informe oficial, a organização afirmou que: “acreditamos e defendemos a liberdade de expressão artística, religiosa, de consciência, de pensamento, de crítica, de vestimenta, e todas as liberdades civis individuais e coletivas garantidas pela Constituição Cidadã de 1988″.

Concordo com a opinião majoritária de que tenha sido uma atitude infeliz, principalmente em termos estratégicos. Mas, não podemos deixar que o significado da Marcha, sua força e a coragem que injetou na luta feminista contra todo tipo de opressão, sejam desviadas por conta desse fato.

Nós, que temos lidado com a manipulação da mídia mais abertamente nos últimos tempos, por conta das manifestações em todo o país, devemos estar cientes da estratégia de deslegitimação de movimentos enormes por um discurso que foca em aspectos parciais — muitas vezes inventados ou distorcidos — do que acontece de fato.

Cabe a nós reforçar a pauta da Marcha das Vadias, defendida a plenos pulmões pelos milhares de pessoas que estiveram nas ruas ontem: Estado laico, aborto legal e seguro, autonomia sobre o próprio corpo. Somou-se a essa pauta a reivindicação pelo fim da violência policial e o Estado de Exceção no Rio, na pergunta que não quer calar: “Onde está o Amarildo?”.


“Onde está Amarildo?”. Grito ouvido pela polícia na Marcha das Vadias. Foto de Mídia NINJA no Facebook.

Cabe, por fim, uma observação pessoal.  Está sendo difícil, para mim, sentir compaixão pelos santos de barro e pelas pessoas religiosas que sentiram ofendidas ao vê-las sendo quebradas. Os santos não são agredidos na rua e mortos por agressores homofóbicos; eles não são culpados quando são estuprados por causa da roupa que vestem; eles não morrem em clínicas de aborto clandestinas e nem são criminalizados por interromper a gravidez; eles não são obrigados pelo Estado a ter um filho que foi fruto de um estupro.

A instituição Igreja Católica está apoiando que quebrem os nossos corpos e as nossas vidas há muito, muito tempo. Eu me senti agredida, pessoalmente e pela coletividade em que me insiro enquanto mulher, ao me deparar com a distribuição de fetos de plástico e de terços de fetos pelas ruas da minha cidade, na campanha “ética” da JMJ. Foi uma agressão brutal o manual de bioétical distribuído na mesma campanha, que condenava o casamento homoafetivo e a formação de famílias por pessoas do mesmo sexo biológico, além de negar a própria existência de pessoas transgêneras.


Charge de Carlos Latuff, 2010.

A mesma revolta e a mesma sensibilidade direcionadas aos santos quebrados e ao desrespeito à religião católica não se direciona às mulheres que morrem aos montes por consequência da criminalização do aborto. Não se importam, na mesma medida, com o genocídio de jovens negros e pobres no Brasil e no mundo, que está em curso há muito mais tempo do que o desaparecimento do Amarildo. A defesa da liberdade religiosa e dos símbolos religiosos não aparece para condenar a perseguição às religiões afro-brasileiras, a destruição sistemática que os terreiros de umbanda e candomblé vêm enfrentando há muito tempo.

Se podemos retirar da performance que foi acusada de intolerância religiosa (com razão, creio) alguma serventia, acredito que deva ser a percepção da seletividade das coisas consideradas como inaceitáveis pela nossa sociedade. O respeito à religiosidade é direito dos cristãos. O direito à moradia digna é um direito dos ricos (e quando somamos não-cristãos à questão habitacional, o resultado é o despejo da Aldeia Maracanã). O direito ao próprio corpo é exclusividade dos homens cisgêneros. É contra essa seletividade a nossa luta. É uma luta por liberdade.

[+] Sobre Santas e Vadias por Alexandre Bortolini.

[+] Quebrar santos: liberdade religiosa e outros elefantes brancos por Juno.

Bárbara Araújo

professora de história, feminista, anticapitalista, capoeirista, flamenguista e poeta sazonal.

Fonte: Amálgama

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