julho 23, 2013

"Tarifa zero e mobilização popular", por Paulo Arantes

PICICA: "Há um grande trabalho de repolitização pela frente. Há um grande despertar e a sociedade acorda explicitamente polarizada, e aparece uma nova direita com a qual não estamos acostumados a lidar. Mas “Pacto”, “reforma política”? Não, desse mato não sai mais absolutamente nenhum coelho. É aspirar a um sistema que ruiu na Europa: ruiu na Espanha, na Itália produziu Berlusconi, está ruindo na França, no mundo árabe nunca teve… Não funciona mais nem para o capital! Temos uma outra sociedade plantada e não sabemos o que fazer.

Bem, vou falar sobre o meu devaneio – de gabinete, vale dizer. Imaginem uma cidade de 50 mil habitantes, uma cidade pequena. 30 mil saem às ruas, entram na prefeitura e tiram de lá o prefeito e os vereadoes a pontapés. Começam a pôr ordem na casa: poder popular. Ou seja, outra reformulação de organização da vida. Se em 15 dias você tem 5 comunas, dali mais alguns já são 100: aí começa a ter uma outra conversa política, poder popular urbano. Isso é um devaneio, obviamente.

Tarifa zero e mobilização popular

Vou me propor a responder a duas perguntas a respeito do que está acontecendo no país nessas últimas duas semanas.

Paulo Arantes


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Como disse alguém do mainstream – e portanto suspeito – trata-se da vitória popular mais rápida e expressiva que se viu no país. Como se explica, então, como em uma semana um milhão de pessoas foi às ruas? Esta é a primeira questão. E resposta usual é: “foram as redes sociais que amplificaram um protesto minúsculo, sem elas não seria possível”. Mesmo um ideólogo da teoria da sociedade em rede como Manuel Casstells admite que um manifesto em rede social não leva ninguém à rua. Para ele, seria necessário, antes, que ele encontre um ambiente de insatisfação pública e mobilize imagens e palavras que correspondem a isso. Esta resposta, no entanto, não deixa de ser insatisfatória pois, de início, a insatisfação pública é uma obviedade, não há imagens nem palavras que correspondem a ela. Voltaremos a isso adiante.

A segunda questão diz respeito ao mote dessa enorme mobilização, uma metáfora extraída do hino nacional, “o gigante adormecido em berço esplêndido…”. Trata-se do conhecido lema do grande despertar, que reaparece ciclicamente na história. Pois bem, se “o gigante acordou”, cabe nos perguntar com o que sonhava ele nos vinte anos em que esteve mergulhado em um sono profundo?

A revolução não será tuitada

Para responder à primeira questão, retomo o artigo Small change: why the revolution will not be tweeted [A revolução não será tuitada], escrito por Malcom Gladwell, em 2010, dois meses antes da primavera árabe, e muito antes dos indignados espanhóis e assemelhados. Nele, o jornalista conta uma história que recapitula o maior movimento de massas norte americano do século XX: o movimento por Direitos Civis, iniciado pelos negros do sul do país.

Em fevereiro de 1960, numa cidade do interior da Carolina do Norte, quatro estudantes negros resolveram ir a uma lanchonete de uma loja de departamento e se sentar em um local reservado aos brancos – o contexto, claro, é de uma sociedade extremamente  segregacionista, para citar apenas uma de suas patologias. Sem serem atendidos, ficam até o fechamento da lanchonete, neste primeiro dia, e voltam logo cedo no dia seguinte. À medida em que passavam os dias aumentava o número de pessoas, negras e brancas, em torno desse espetáculo cujo desfecho ainda estava indefinido. Por um lado, aumentava a violência e as ameaças de linchamento, por outro, aumentava também o número de comitês e caravanas de negros e apoiadores que chegavam de outras cidades do país. Resultado: em dez dias, foram mobilizadas 30.000 pessoas em uma cidade de 50.000 habitantes. Isto, lembra o jornalista, em uma sociedade em que não havia Facebook, Twitter, emails, nem nada dessa parafernália que supostamente mudará o mundo. Simplesmente a notícia correu!

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Analisando o conjunto de casos que compuseram essa febre que contagiou todo o sul dos Estados Unidos, abrangendo diversas estratégias de intervenção política, o jornalista conclui que só o que ele chama de vínculos fortes entre pessoas seria capaz de impulsionar movimentos ativistas de alto risco. E desafiar as leis e costumes segregacionistas do sul dos Estados Unidos envolve altíssimo risco. Muito pior do que cassetete de polícia, a ameaça é de linchamento, e por parte de uma direita organizada e extremamente violenta. A disposição pessoal necessária nesse tipo de ativismo só seria mobilizada com vínculos reais, cara a cara. No caso do movimento negro nos EUA, sustentado pela amizade dos quatro jovens de Greensboro, e de fundo por uma grande coalizão comunitária, organizada principalmente em torno de igrejas e que articulava um projeto estratégico. Ou seja, vínculos que não são, fundamentalmente, aqueles em jogo nas redes sociais.

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Outro exemplo ilustrativo, dadas as ressalvas históricas, é o das Brigadas Vermelhas na Itália nos anos 70. O levantamento feito neste caso indica que 70% dos recrutados tinha ao menos um grande amigo já filiado à organização. Do mesmo modo, podemos nos perguntar como ruiu em tão pouco tempo a Alemanha Oriental – e em um contexto em que 87% da população sequer tinha telefone! A mobilização organizava-se em torno de encontros semanais em frente a uma igreja em Leipzig e a lógica era a mesma: diziam, “eu vou porque sei que há um ‘amigo crítico’ meu ali” (amigo crítico era o nome dado a um conhecido que era crítico ao regime). Assim, o que quero dizer é que encontramos, invariavelmente, no ativismo de alto risco um forte traço de camaradagem – e camarada aparece aqui como transposição política da figura do amigo.

Dois limiares

Sobre as “jornadas de junho” brasileiras, pode-se afirmar que tivemos dois limiares transpostos. O primeiro sendo o desta disposição política que parece ter ficado varrida da memória política brasileira nos últimos vinte anos: amigos cimentados numa causa. É possível conceber, no âmago dessas manifestações, a multiplicação de coletivos em que esse vínculo forte para correr riscos reais tenha sido efetivamente mobilizado. Os riscos sendo a hostilidade da opinião pública e os perigos de uma sociedade disposta ao linchamento e ao apoio à repressão, como aconteceu no Pinheirinho e na USP recentemente.

O segundo limiar transposto, diz respeito à ideia de manifestação. Desmontou-se, praticamente, o mito pós-ditadura segundo o qual vivemos em um estado democrático de direito. O dito Estado Democrático de Direito, que traduz-se no Brasil como “estado oligárquico de direito”, vale apenas para cima, pois “para baixo” tem se apenas o direito penal e social. Neste quadro, a política é confinada ao que chamo de “chiqueirinho” do ordenamento jurídico: tolera-se o direito de livre manifestação, desde que dentro dos limites banalizados e rotinizados do local e hora marcados. Isto aconteceu porque os doutrinários da moral e cívica foram obrigados a aceitar a legitimidade das manifestações – entre outros motivos, até para não perder audiência!

Um exemplo clássico disto no Brasil contemporâneo é o MST. É somente essa característica de camaradagem que explica porque ele ainda resiste há 25 anos. O cenário que o MST enfrenta quando reivindica suas pautas é extremamente violento. Se há alto risco em alguma manifestação, é a deles. Não é possível mobilizar frente a jagunços, delegados, ameaça constante de despejo – em especial no caso do MTST – simplesmente com um evento via Facebook – são companheiros de longa data que estão juntos desde os acampamentos na beira de estradas.

O sono do gigante

Quanto à segunda questão, seguramente alguns psicanalistas – sem sequer fazer uma sessão de análise com algum dos milhares de manifestantes – irão logo concluir que país voltou a sonhar. Minha sugestão aqui, para todos esses coletivos mobilizados pesquisarem: com o que sonhava o povo brasileiro nos vinte anos em que esteve mergulhado em um sono profundo? O que passou pela sua mente e espírito, o que estava represado e não se sabia, ou que de repente veio à tona?
Um ponto de partida para essa reflexão é a distinção entre o sonho noturno e o diurno. No noturno, pensamos para trás – no inconsciente não existe tempo, ele é sempre contemporâneo: não existe passado nem presente. É no sonho diurno que pensamos para frente. Esse “sonhar acordado” é chamado na linguagem coloquial brasileira de devaneio. Trata-se do escape ou descolamento ocasional em relação à realidade sem o qual enlouqueceríamos.

É esta, aliás, a própria definição da experiência literária. Uma suspensão do garrote da realidade nos transporta a uma outra esfera em que, por meio das balizas da trama ficcional, a imaginação reorganiza a existência. Após este percurso voltamos revigorados à realidade e com nova imaginação – quem leu Balzac em seu tempo, por exemplo, certamente viu a Paris de 1830, antes da revolução de 1848, com outros olhos. O prazer da literatura é justamente essa nova visão. O devaneio, o sonho acordado, é, assim – que me perdoem os surrealistas – nada menos do que o fundamento de todas as utopias.

A questão central que fica diz respeito à analogia entre esse devaneio coletivo e o vínculo forte do ativismo. E onde mais esse vínculo ativista poderia encontrar os milhares de adormecidos – hipnotizados, durante os últimos vinte anos, por líderes carismáticos – em sua multiplicidade de devaneios, senão no transporte coletivo? O sonhar acordado, esse breve respiro do inferno da jornada de trabalho, que pode abranger desde o namoro e a amizade às contas e a imaginação de fantásticos mundos imaginários, se dá, tipicamente, no transporte coletivo. Esse devaneio, que acontece em meio às duas horas de ida e duas de volta (para ficar no caso de São Paulo) e prefigura e exponencializa as miseráveis condições de trabalho da metrópole, pode aparecer sob a forma de uma lembrança, um causo, uma piada… às vezes acontece em voz alta e pode até se transformar em conversa. Essa conversa é  perfeitamente politizável. O que acontece nesse devaneio, que afinal deflagrou o que vimos, é produto de um sofrimento social profundamente ligado ao mundo do trabalho. Mais do que recuperar palavras de ordem ideológica, categorizando classes e posições políticas, é isto que precisamos decifrar.

Perguntas

Do ponto de vista da organização social, o que se pode aprender com o MPL, antes, depois e durante um ato?

Bom, para responder, vocês me obrigam a refazer a apologia que fiz ao MPL, mas seria isso que disse: o significado de correr riscos altos através de um vínculo que não é o de “rede”, é pessoal. Como organização horizontal, o MPL tem, em relação ao partido, tudo menos o ônus. É semelhante o caso do movimento negro, em que a organização não era mediada por partidos, mas sim em torno de igrejas e comitês estratégicas. Esses dias um jornalista escreveu no Estadão – em tom de brincadeira, mas que mostra como as pessoas “vêem longe” – que para quebrar o movimento bastava colocar alguém do MPL na secretaria dos transportes. Claro, acalmaria os ânimos até as próximas eleições e daí o movimento já estaria extinto. Vejam, o vínculo de amizade é substituído pelo “gestor” o que diminui a disposição de enfrentar riscos e, por sua vez, enfraquece o vínculo.Temos muito a aprender com eles, mas nada a copiar. Assim como o MST, devemos apenas tomá-lo como inspiração.
E sobre as propostas feitas pela presidenta este mês de pacto social, plebiscito, e reforma política?
Ouço falar de pacto social desde o fim da ditadura. Mais precisamente, pacto “entre os parceiros sociais”, isto é, entre Estado, população e o patronato. Na Europa sempre é um pacto entre esses três parceiros, por exemplo, e já vimos a meleca que deu. Não só é discurso de gestor, pois parte do princípio de reinserir o patológico no normal, como não faz mais sentido. O pacto está ruindo e a presidenta está propondo uma reedição desse mesmo pacto: reinserir todos dentro do estado, os sem terra, o agronegócio, o violador dos direitos humanos, a defensoria dos direitos humanos etc… Esse pacto explodiu agora, e é preciso reestabelecer o nexo político perdido que, para mim, está no sofrimento social.

Há um grande trabalho de repolitização pela frente. Há um grande despertar e a sociedade acorda explicitamente polarizada, e aparece uma nova direita com a qual não estamos acostumados a lidar. Mas “Pacto”, “reforma política”? Não, desse mato não sai mais absolutamente nenhum coelho. É aspirar a um sistema que ruiu na Europa: ruiu na Espanha, na Itália produziu Berlusconi, está ruindo na França, no mundo árabe nunca teve… Não funciona mais nem para o capital! Temos uma outra sociedade plantada e não sabemos o que fazer.

Bem, vou falar sobre o meu devaneio – de gabinete, vale dizer. Imaginem uma cidade de 50 mil habitantes, uma cidade pequena. 30 mil saem às ruas, entram na prefeitura e tiram de lá o prefeito e os vereadoes a pontapés. Começam a pôr ordem na casa: poder popular. Ou seja, outra reformulação de organização da vida. Se em 15 dias você tem 5 comunas, dali mais alguns já são 100: aí começa a ter uma outra conversa política, poder popular urbano. Isso é um devaneio, obviamente.

Foi só a questão dos transportes que colocou todas essas pessoas nas ruas?

Olha, é o abc materialista (me desculpem, sou da velha guarda): a centralidade do transporte afeta a circulação, ponto. Afeta a força de trabalho se deslocando ao local em que será explorada. Agora, é a primeira vez desde o fim da ditadura em que estradas são bloqueadas sem nenhuma repressão policial. Eu ficaria com a pulga atrás da orelha – olha, será que está sendo consentido? Bloquear estradas em um momento de colapso de infra-estrutura, com a safra bloqueada nos portos superlotados é coisa da maior gravidade, prestem atenção. Basta lembrar do caso da França há 3 anos atrás, bloqueio de refinarias de petróleo, ou dos piqueteiros argentinos há 15 anos, para pensar a repercussão.

Mas não tenho conselho estratégico, nem é esse meu papel. Não posso incitar nada nesse momento em que sabemos o que é a polícia militar, o que significa a administração armada da vida social… Essa democracia da chacina não é feita à revelia da sociedade, mas com seu consentimento. A sociedade é um horror, ela está despertando, mas não sabemos os fantasmas que foram cultivados ao longo desses vinte anos. Podem aparecer coisas horrorosas, como pode aparecer também uma chama libertária, que eu confio que apareça.

Transcrição adaptada da intervenção de Paulo Arantes na aula pública convocada pelo Movimento Passe Livre em 27 de junho de 2013.

Paulo Eduardo Arantes é filósofo, professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou entre 1968 e 1998. Publicou, entre outros, Hegel: a ordem do tempo (1981), Ressentimento da dialética (1996) e Extinção (2007). Coordenador da coleção Estado de Sítio da Boitempo, colaborou com O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Vladimir Safatle e Edson Teles, com o ensaio “1964, o ano que não terminou”.

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