agosto 31, 2013

“Outro feminismo: que vem de cima, do centro à periferia” – breve história zapatista" (Passa Palavra)

PICICA: "Nos artigos críticos a um determinado tipo de feminismo excludente e seus impactos nas lutas sociais, o Passa Palavra procurou apontar exemplos de como a organização das lutas em torno da questão da situação concreta das mulheres pode levar a impulsionar as tendências antissistêmicas ou promover o seu contrário, o reforço das formas capitalistas."

“Outro feminismo: que vem de cima, do centro à periferia” – breve história zapatista

26 de agosto de 2013  



O subcomandante Marcos expõe a existência de mais de um tipo de feminismo. Por Passa Palavra

Nos artigos críticos a um determinado tipo de feminismo excludente e seus impactos nas lutas sociais, o Passa Palavra procurou apontar exemplos de como a organização das lutas em torno da questão da situação concreta das mulheres pode levar a impulsionar as tendências antissistêmicas ou promover o seu contrário, o reforço das formas capitalistas.

Num dos comentários ao artigo O feminismo no espelho dos comentários, foi indicado por Luiz, em 14 de agosto, um “vídeo bem ilustrativo do modus operandi dessa corrente do feminismo nas lutas sociais. Neste caso no movimento indígena chiapaneco”.

É possível que não se tenha dada a devida atenção ao vídeo, no qual o subcomandante Marcos expõe a existência de mais de um tipo de feminismo. Certo feminismo, “que vem de cima, do centro à periferia”, e que reproduz práticas machistas e capitalistas e tem servido para que suas promotoras ganhem algum protagonismo político que lhes permite viajar para palestras, lançar livros, ocupar cargos governamentais etc. E esse tipo de feminismo, como não leva em consideração as práticas organizativas concretas das comunidades em luta, procurou impor uma doutrina, “libertá-las”, buscou mandar nas mulheres zapatistas retirando-lhes sua autonomia.

Reproduzimos abaixo a intervenção do subcomandante Marcos.

Escutar o amarelo. O calendário e a geografia da diferença

“O perigo d@s diferentes está em logo parecerem-se muito entre si”. Dom Durito da Lacondona

A luta das mulheres, do centro à periferia?

Se antes falamos que no pensamento de cima existia um abismo entre teoria e realidade e da concomitante bulimia teórica que virou moda em uma parte da intelectualidade progressista, agora queremos nos deter nesse ponto da geografia pretensamente científica que é o centro onde a pedra conceitual, ou seja, a moda intelectual cai e se iniciam as ondas que afetarão a periferia.

Acontece que essas teorias e práticas surgidas no centro se estendem até a periferia afetando não só os pensamentos e práticas nesses lugares, mas também, e, sobretudo, impondo-se como verdade e modelo a seguir.

Já se falou do surgimento de novos atores ou sujeitos sociais, e se mencionou as mulheres, jovens e outros amores.

Pois bem, sobre estes “novos” protagonistas da história cotidiana, surgem novas elaborações teóricas que, sempre no centro emissor, se traduzem em práticas políticas e organizativas.

No caso da luta de gênero, ou mais especificamente, no feminismo, sucede o mesmo. Em uma das metrópoles surge uma concepção do que é, de seu caráter, de seu objetivo, de suas formas, de seu destino. Daí se exporta para pontos da periferia, que por sua vez, são centros de outras periferias.

Esse translado não se dá sem os problemas e “engarrafamentos” próprios das distintas geografias.

Tampouco se dá, paradoxalmente, em termos de equidade. E digo “paradoxalmente” porque um dos traços essenciais dessa luta é sua demanda de equidade, de equidade de gênero.

Espero que as companheiras e companheiros que levantam essa luta, e que estão me escutando ou lendo, desculpem o reducionismo e simplismo com que estou tocando este ponto. Não que eu queira salvar meu machismo, tão natural e espontâneo, na verdade, é porque não estamos pensando, na hora em que tratamos disto, nos esforços que levam adiante. Não dizemos que seus projetos não sejam questionáveis. São-no e em mais de um aspecto, mas estamos falando de outra luta de gênero, de outro feminismo: o que vem de cima, do centro à periferia.

Nos próximos dias, as mulheres zapatistas celebrarão um encontro onde sua experiência e palavra terá um espaço exclusivo, assim não me aprofundarei mais nesse tema. Contudo, quero contar-lhes a breve história de um desencontro.

Nos primeiros meses posteriores ao início de nosso levante, um grupo de feministas (assim se autodenominaram) chegou a algumas das comunidades zapatistas.

Não, não chegaram a perguntar, a escutar, a conhecer, a respeitar. Chegaram falando o que as mulheres zapatistas deviam fazer, chegaram para libertá-las da opressão dos machos zapatistas (começando, evidentemente, por libertá-las do Sup.), a dizê-lhes quais eram seus direitos, a mandar, portanto.

Cortejaram quem consideravam as chefes (por certo, com métodos muito masculinos, diga-se de passagem). Através delas tentaram impor, de fora, na forma e conteúdo, uma luta de gênero que sequer se detiveram em averiguar se existia ou não e em que grau nas comunidades indígenas zapatistas.

Nem sequer pararam para ver se as haviam escutado e entendido. Não, sua missão “libertadora” estava cumprida. Voltaram a suas metrópoles, escreveram artigos para jornais e revistas, publicaram livros, viajaram com despesas pagas ao estrangeiro dando conferências, tiveram cargos governamentais etc.

Não vamos questionar isto, cada um consegue suas férias como pode. Só queremos recordar que não fizeram coisa alguma nas comunidades nem trouxeram benefício algum às mulheres.

Este desencontro inicial marcou a relação posterior entre as mulheres zapatistas e as feministas, e levou a uma confrontação subterrânea que, claramente, as feministas imputaram ao machismo vertical e militarista do EZLN. Isto chegou até o ponto em que um grupo de Comandantas se negou a um projeto sobre direitos da mulher. Acontece que queriam dar uns cursos, planejados por cidadãs, ministrados por cidadãs e avaliados por cidadãs. As companheiras se opuseram, queriam ser elas quem decidisse os conteúdos, quem ministrassem o curso, quem avaliassem os resultados e o que se seguia.

O resultado vocês poderão conhecer ao assistir ao Caracol da Garrucha e escutarem, dos próprios lábios das zapatistas, essas e outras histórias. Talvez lhes ajudassem a entender melhor levar a disposição e o ânimo de compreender. Talvez, como Sylvia Marcos no Israel das beduínas, entenderiam que as zapatistas, como muitas mulheres em muitos cantos do mundo, transgridem as regras sem descartar sua cultura, se rebelam como mulheres, mas sem deixar de ser indígenas e também, não há como esquecer, sem deixar de ser zapatistas.

Faz uns anos, um jornalista me contou que havia encontrado na estrada uma senhora zapatista e lhe havia dado “carona” até o povoado. “Andava com uniforme ou calça ou botas?”, perguntei-lhe preocupado. O jornalista me esclareceu: “Não, carregava água, camisa bordada e estava descalça. Ainda levava seu filho carregado no xale”. “Como soube então que era zapatista?”, insisti-lhe. O jornalista me respondeu com naturalidade: “é fácil, as zapatistas param diferente, caminham diferente, olham diferente”. “Como?”, reiterei. “Pois, como zapatistas”, disse o jornalista e sacou seu gravador para perguntar-me sobre a proposta de diálogo do governo, as próximas eleições, os livros que tenho lido e outras coisas igualmente absurdas.

Contudo é necessário assinalar que essa distância tem diminuído graças ao trabalho e compreensão de nossas companheiras feministas da Outra Campanha, particularmente e de maneira destacada, nossas companheiras da Outra Jovel.

Segundo minha visão machista, em ambos os lugares entendeu-se a diferença entre umas e outras e, portanto, iniciou-se um reconhecimento mútuo que acabará em algo muito diferente, que seguramente poderá abalar não só o sistema patriarcal em seu conjunto, mas também nós que apenas estamos entendendo a força e o poder dessa diferença, e que nos leva a repetir, ainda que com outro sentido, o “Vive le difference!”, Viva a diferença!

Dessa tensão que, paulatinamente, se converte em liga e ponte, resultará um novo calendário e uma nova geografia. Um e uma onde a mulher, em sua igualdade e em sua diferença, tenha o lugar que conquiste nessa sua luta, a mais pesada, a mais complexa e a mais contínua de todas as lutas antissistêmicas.


Fonte: Outras Palavras

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