agosto 29, 2013

"Xenofobia é eufemismo", por Bruno Cava

PICICA: "Os índios e os negros em seu devir histórico foram excluídos sistematicamente da cultura oficial, da possibilidade de criar uma cultura que não seja de pertencimento e homologação aos brancos. Para adaptar-se ao Brasil moderno, para ganhar o direito a um futuro, lhes é exigido que embranqueçam, embranquecendo consigo a própria memória do negro e do índio. Por isso que precisam lutar todos os dias para abrir um espaço que não seja aquele trocado por subserviência e renúncia subjetiva. Contra eles, a cultura oficial, onipresente no noticiário, continua secretando uma moral “neutra, imparcial e desracializada”, apenas para encobrir as violências cotidianas. Além de eximir-se de qualquer relação de causa e efeito, e muito menos de responsabilidade , constrói para si uma boa consciência, uma indignação moral e um civismo, que funcionam para reproduzir e perpetuar as desigualdades. O problema seria melhorar a (inefável e sempre distante) Base, já que uma injustiça não justifica outra… afinal, não queremos ser racistas, não é mesmo?"
 
Xenofobia é eufemismo
 


“A nigger on a horse!”, balbucia paralisado o homem branco ao ver Django passar na rua, no último filme de Tarantino. A cidadezinha simplesmente cristaliza com a visão inédita de um escravo montado. Não foi diferente nesta semana, quando os médicos cubanos desembarcaram no nordeste do país. “Um negro de jaleco! e doutor!” E eram vários. Uma comitiva sanitária inteira de mulheres e homens negros. Como pode? Parecem empregadas domésticas ou pais-de-santo…

À espera deles, colegas brasileiros horrorizados debochando e vaiando. Realmente impressionante. Com uma expressão de repulsa que se compraz da própria justeza, a mesma com que se queimavam as bruxas, mutilavam os escravos fugidos ou se bombardeiam até hoje os palestinos, iraquianos e afegãos. Xenofobia é eufemismo. Foi uma expressão de racismo sincero. Não importa que as pessoas não tenham intenção racista, que estejam convictas para si que isso nada tenha a ver com a questão da raça, e que apenas estariam exercendo um dever cívico de defender o justo, o certo. O racismo está no certo. Não está na cabeça das pessoas. Está entranhado na própria boa consciência que nos faz acreditar não sermos racistas.

Vergonha de quem se julga acima dessa realidade, como se nada tivesse a ver com o racismo. Vergonha da grande imprensa e seus jornalistas orgânicos, que vêm preparando o terreno para essas manifestações de ódio e a violência há semanas. O preconceito impregnado na mídia corporativa não está encoberto apenas pela atitude superior e imparcial, meticuloso em maquiar-se para emitir as opiniões mais violentas. Mas também pelas caretas, gestos, olhares, pequenos detalhes (o modo como cruzam as pernas, como sorriem irônicos, como trocam olhares, como franzem a testa na hora exata) com que os seus funcionários bem vestidos “passam a senha” para as audiências praticarem elas mesmas os atos mais abertos de rejeição e deboche. Dizendo-lhes: sem política, sem preconceito, sem interesses, a gente só quer o certo.

Sobre o caso, li este texto de Marcos Romão, chama-se “Negras médicas e domésticas” e é incontornável. O autor, negro, admite a sensação de estranheza. Uma comitiva médica majoritariamente formada por negras e negros, com aquele visual austero, afronta qualquer coisa de sólido na percepção. É uma inteira sensibilidade colocada em xeque. Marcos vê de positivo no episódio o choque terapêutico, a capacidade de os médicos cubanos porem a nu a vergonha nacional.
O episódio não reafirmou somente que o sistema de saúde é gradativamente mais péssimo quanto mais pro interior e mais pra norte do país. Também mostrou a responsabilidade direta da dita “classe médica”, e junto dela toda uma cultura de ensino, representação e defesa de interesses que contribui, em seu racismo cívico, ao péssimo atendimento. As resistências proliferam por dentro, e vão se fortalecer com outras culturas médicas, talvez, a de Cuba. O médico brasileiro tem muito a ganhar com o cubano.

Os índios e os negros em seu devir histórico foram excluídos sistematicamente da cultura oficial, da possibilidade de criar uma cultura que não seja de pertencimento e homologação aos brancos. Para adaptar-se ao Brasil moderno, para ganhar o direito a um futuro, lhes é exigido que embranqueçam, embranquecendo consigo a própria memória do negro e do índio. Por isso que precisam lutar todos os dias para abrir um espaço que não seja aquele trocado por subserviência e renúncia subjetiva. Contra eles, a cultura oficial, onipresente no noticiário, continua secretando uma moral “neutra, imparcial e desracializada”, apenas para encobrir as violências cotidianas. Além de eximir-se de qualquer relação de causa e efeito, e muito menos de responsabilidade , constrói para si uma boa consciência, uma indignação moral e um civismo, que funcionam para reproduzir e perpetuar as desigualdades. O problema seria melhorar a (inefável e sempre distante) Base, já que uma injustiça não justifica outra… afinal, não queremos ser racistas, não é mesmo?

Também pressinto que é positivo escancarar o conflito racial. Nesse sentido, o episódio é mais “um pouquinho de café num balde de leite”, como disse o Marcos. Porque o conflito já ocorre e tem lados, tem sua contagem de humilhados, deserdados e mortos. Romper o consenso da representação colonizada serve, sobretudo, para enfraquecer o lado vencedor. Em vez de encarar o dissenso, prefere lidar com as resistências na base da ignorância, da ridicularização, da supressão, em suma, com isso que se vê em qualquer telejornal.

Por alguns breves momentos, a sociedade brasileira saiu dos gonzos. Num país em que, como o personagem de Leonardo di Caprio de Django, as elites se orgulham de ser imitações caricatas do colonizador, a ocupação por tantos negros da reserva de status — que ainda é a profissão médica — só pode ser escandalosa em si mesma.

Fonte: Quadrados dos Loucos

Nenhum comentário: