outubro 10, 2013

"Estamira Vadia". Texto de Jamil Cabral Sierra.

PICICA: “Eu, Estamira, recebi uma missão, de dizer a verdade doa a quem doer”.


Estamira Vadia

Texto de Jamil Cabral Sierra.

Dias atrás, em 27 de julho, aconteceu no Rio de Janeiro a Marcha das Vadias. Nesse mesmo mês, em 13 de julho, as vadias de Curitiba também foram para a rua marchar, e lá eu estava, fucsiamente, com todas elas: as mulheres, cis e trans*, as monetes pintosas, as bilus afeminadas, as passivas provocadoras, as sapatonas destemidas, as pervertidas de toda sorte, as vadias… No domingo, 14 de julho, pós marcha de Curitiba, ainda inebriado pela belezura dos corpos que serviram de plataforma política para a visibilização da opressão a que estamos, todxs nós, submentidxs, fui ver “Estamira”, peça que estava em cartaz na cidade. A vida de Estamira já é conhecida por muitxs, o documentário que retrata sua experiência fez muito sucesso e é difícil alguém mais ou menos bem informadx não conhecer sua história. Portanto, nem a contarei aqui.

A atriz Dani Barros na peça "Estamira - Beira do Mundo". Foto de Luis Alberto Gonçalves.
A atriz Dani Barros na peça “Estamira – Beira do Mundo”. Foto de Luis Alberto Gonçalves.

O que me interessa mesmo é dizer que Estamira é também uma vadia e bem poderia ter estado lá, nas ruas do Rio ou de Curitiba, com todxs nós. O que une Estamira à Marcha das Vadias? Em ambos os casos temos o corpo como lugar do escândalo, e a vida como possibilidade de revelação escandalosa da verdade. Não a revelação de uma verdade divina, transcendental, inscrita no plano do além-da-terra. Ao contrário, é a revelação da verdade dessa vida mesmo, de suas mazelas, de suas contradições e desaforos, de suas opressões.

Não à toa, a peça começa com o seguinte diálogo da personagem (magistralmente interpretada pela atriz Dani Barros, merecedora de todos os prêmios que levou para a casa): “Eu, Estamira, recebi uma missão, de dizer a verdade doa a quem doer”. Essa missão, diria eu, é também de todas as vadias que têm saído às ruas, por diversas cidades do país, para denunciar o regime patriarcalista e heterocapitalista que tem, cada vez mais, sentenciado milhares de vida ao extermínio e expurgado de nós o direito aos nossos corpos, sejam eles como forem; o direito aos nossos prazeres, sejam eles com quem forem; o direito aos nossos amores e afetos, sejam eles para quem forem.

Nesse sentido, Estamira como vadia, ou se quiserem, as vadias todas como Estamiras atualizam a pista foucaultiana que nos permite pensar formas de vida contemporâneas como um traço de posteridade do cinismo descrito pelo autor em seu curso “A Coragem da Verdade”. Seja na experiência da loucura em estado nu de Estamira, seja na experiência dos corpos nus das vadias, o próprio modo de viver a vida e expô-la em público de maneira franca e provocativa nos convida a pensar essas experiências como uma possibilidade de criação inovadora, um projeto ético-estético-político capaz de desenvolver uma outra relação consigo mesmo e com xs outrxs, instaurador de um fazer político que se materializa no próprio corpo: o corpo, ele mesmo, como a manifestação da verdade por meio do escândalo em carne viva.

Nesse rastro, existências como a da catadora de lixo do Jardim Gramacho ou das vadias da rua escancaram uma relação muito pertinente e necessária, especialmente nos dias atuais, isto é, a relação entre uma certa atitude contestatória com um determinado modo de viver a vida. Aliás, esta-é-a-mira: fazer de nossos corpos, prazeres e amores, portanto fazer da vida, o lugar de manifestação e provocação política para que, cinicamente, possamos ter a chance de criar e potencializar novos modo de viver. E, me parece, tanto Estamira quanto as vadias têm nos ensinado a trilhar esse caminho.

Jamil Cabral Sierra.
Jamil Cabral Sierra.
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Jamil Cabral Sierra é professor da UFPR, pesquisador na área de Gênero e Diversidade Sexual e, como não canto, não danço, não atuo, não toco nenhum instrumento, não pinto… nem bordo (só às vezes), não desenho e não esculpo, resta apenas inventar-me na/pela escrita. Uso os caracteres como arma de guerrilha.

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