outubro 27, 2013

"Fazer multidão: entre os black blocs e os professores", por Vladimir Santafé


Fazer multidão: entre os black blocs e os professores

26/10/2013
Por Vladimir Santafé


Por Vladimir Santafé
prof2

“E quem tiver de sapato não sobra, não pode sobrar…”1
Não há uma massa amorfa e indefinida, atomizada, mas um fazer multidão que se mobiliza na própria luta e em seus caminhos e (des)caminhos, seus desvios potentes, que racham as normas em sua efetivação dizendo-lhes “não queremos mais suas migalhas, queremos mais!” E por que dizem, nas redes sociais, que somos todos black blocs? Justamente porque não somos, mas estamos, não somos como os black blocs, mas fazemos devir com eles. O grito que eles lançam, nós alcançamos e transformamos relançando-os nas ruas e redes, se concordamos com eles ou não? Isso não nos interessa, o que nos interessa é a luta contra o poder e suas táticas e movimentos concretos, e esta luta não se faz com mais ou menos violência, ela pode ser violenta, com o perigo de cair numa linha suicidária de reprodução ou reflexo do poder estatal ou no microfascismo dos pequenos grupos que sustentam suas identidades através do policiamento dos seus membros, moralizando todas as dimensões da vida, apequenando-a, mas nunca chegará ao grau de violência que o Estado pratica todos os dias nas favelas e periferias, na exploração do trabalho comum, no racismo que humilha e mata milhares todos os anos, no assassinato de mulheres e homossexuais, a violência estatal é constante e modular, a fome e a miséria são seus efeitos mais devastadores. Se há excessos, sim, os há, muitas vezes provocados por infiltrados, e não estamos aqui justificando as ações deste ou daquele grupo, antes pretendemos traçar um mapa dos afectos e das causas que atravessam os grupos, a luta e suas potencialidades. Também não podemos resumir o movimento aos black blocs, pois o movimento que vemos nas ruas, desde as Jornadas de Junho, é uma expressão dos muitos, da multidão que compõe e reproduz a sociedade, coletivos e indivíduos que se afirmam em sua irredutibilidade, em sua singularidade e autonomia. Os black blocs são o seu efeito. O corpo nu, uma música, um filme, um gesto, coletivo ou individual, mesmo um beijo, podem ser tão violentos quanto uma pedra, dependendo da direção que ela toma. O movimento não se confunde com os black blocs e esses não determinam o movimento, ele é antes determinado pelas múltiplas articulações das lutas. O que há, na realidade, é um confronto de forças, de um lado, a memória oficial do estado e seus dispositivos de poder (o parlamento, os bancos, a polícia, as empresas), do outro, as memórias subterrâneas reconfigurando o patrimônio público, projeção de uma imagem que o estado e o poder tentam impor, e a própria dinâmica dos movimentos sociais, não entender essa sutil diferença entre a destruição pura e simples que caracteriza o fascismo da postura situacionista dos manifestantes é reafirmar o discurso que mantém os pobres em seus guetos e os ricos protegidos em seus condomínios e espaços higienizados. É não levar em consideração que desde a Revolta da Vacina, dentre outras rebeliões populares desencadeadas pela precarização dos serviços públicos e contra o biopoder imposto pelas elites, os prédios símbolos da hegemonia são alvos dos revoltosos, que ao destrui-los, não querem simplesmente ver seus destroços como numa imagem fetichizada da própria revolta, mas sim reconstruir a sociedade em outras bases, mais democráticas e produtivas, participando de sua reconstrução, da gestão econômica e política da cidade que habitam e produzem a partir de seus modos de vida, desviando as normas de seu assujeitamento, produzindo novas subjetividades e conexões possíveis. Mas a norma é teimosa e se alinha aos poderes, os reforça, os alimenta.

A modernidade nunca mostrou-se tão luminosa como nos dias de hoje, não a modernidade acadêmica, orgânica, mas a crise de suas instituições (e a emergência de uma pós-modernidade em processo), seus espaços de confinamento que racham, sua representação incompleta, seu vestígio democrático que não convence mais ninguém, mesmo com a frenética produção da mídia hegemônica e dos programas governamentais que tentam a todo custo nos moldar em suas expectativas. Duas faces de uma mesma moeda, pelo menos no que diz respeito às recentes manifestações. De um lado, a criminalização dos black blocs e o aparelhamento (desesperado) dos movimentos que lhes ultrapassa, pois que vêm das ruas e nas ruas se fazem, do outro, a apropriação sem-vergonha da grande mídia que joga as manifestações contra o governo, tentando reaver os poderes que hoje estão repartidos, mas não deixam de reproduzir seus controles e repressões, quando o estado está em jogo, os aparelhos de repressão se mostram em exposição hollywoodiana. O PT e seus aliados, alicerçados nos governos municipal e estadual, e em nome da governabilidade, prenderam deliberadamente quem estava nas ruas protestando e mobilizando a multidão, fazendo-se multidão, mais de 200 ativistas, entre estudantes e professores da rede pública, muitos baleados pela PM, requalificando as palavras do velho delegado Cabeção no “Bandido da Luz Vermelha”, de Sganzerla, “passa por cima, tem que fazer um tapete deles, são todos uns safados” – este é o lema da segurança pública do Rio de Janeiro e da governabilidade. Mas os manifestantes não seguem a máxima do filme, “quando a gente não tá dentro a gente avacalha, avacalha e se esculhamba…” – expressa na figura do bandido-guerrilheiro que explode tudo o que o oprime -, não há niilismo em seus gestos, mas produção, eles recobriram as ruas com seus desejos e reivindicações, dos professores em greve ao MPL2, deixando “tudo dominado por uma terrível luz avermelhada”3, aclamando o poder das minorias que não aceitam mais as negociatas do poder representativo e sua herança coronelista e populista, mas a direção das ruas e seu poder descentralizado, poder do comum que se faz em devir, em rede, conectando as singularidades em luta, organizadas contra o povo, enquanto reflexo do poder soberano e imagem inversa dos governantes que nos explora e oprime, e pela multidão, enquanto corpo político autônomo, autogerido e autoproducente. As ruas dizem que “quem tiver de sapato não sobra, não pode sobrar”. Isso nos leva ao nosso segundo ponto.

Devemos entender o cerne dessas manifestações em função da nova classe de manifestantes que domina a cena, ou seja, segundo o paradoxo do lulismo que se abre: como e por pessoas que nunca tiveram acesso à renda e ao emprego, e agora os têm, tanto que compõem o núcleo do emergente mercado consumidor brasileiro que elevou o país à sexta economia do mundo, protestam nas ruas por melhores condições de vida? Os petistas que defendem o governo cegamente, quando não criminalizam os black blocs, dizem que as manifestações são uma “obra”, quase prima, articulada da direita e da grande mídia que visa enfraquecer o governo e seus aliados. Eles não conseguem romper com o paradigma da política tradicional que conforma as partes num conjunto normativo e sem surpresas, da representação partidária que só enxerga “política” na dança das legendas e na disputa eleitoral, na disputa pela máquina governamental e nas possibilidades orçamentárias que ela disponibiliza para a realização dos projetos, independente dos elementos que a compõem, sejam eles Sarney ou Maluf, ou o PMDB miliciano de Cabral e Paes, o que importa, no final, é o ganho eleitoral ou material, geralmente os dois juntos, que a aliança proporciona. Programas sociais como o Bolsa Família, por mais importantes que sejam, pois atacam a miséria na raiz, não ultrapassam as coordenadas neoliberais que eles ativam, como a aquisição de um mercado consumidor que promove o enriquecimento dos bancos a partir do consumo frenético dependente das prestações “infinitas” que os cartões de crédito oferecem4. Como escreveu Deleuze, não é mais o homem confinado que caracteriza a sociedade atual, do controle, mas o homem endividado. Os manifestantes respondem: queremos mais, queremos tudo! Da desterritorialização aberta pelo lulismo (e sua reterritorialização no neodesenvolvimentismo de Dilma), a multidão retoma as ruas e fende as estruturas do poder, em lutas concretas e particulares, mas em conexão com as lutas globais, os ecos da Turquia e da Grécia ainda ressoam fortes no vento, exigindo a valorização dos profissionais da educação e mais democracia nas escolas, impedindo a gentrificação e higienização ao redor do Maracanã, num devir-índio que varreu o Rio por meses e bloqueou a remoção do Parque Aquático Júlio de Lamare, da Escola Feldenkrais e das moradias indígenas, incluindo a comunidade de Vila Autódromo, além disso, o movimento conseguiu revogar o aumento das tarifas do transporte público, espalhando-se por todos os cantos do país como um enxame. A multidão está viva, entre os professores em greve, e sua chama continua acesa, e como José Martí ela afirma, “é tempo de fornalhas”.

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1 Frase extraída do filme “O Bandido da Luz Vermelha”.

2 Movimento Passe Livre


 3 Frase extraída do filme “O Bandido da Luz Vermelha”. 


 4 E ainda que o governo federal tenha pressionado a queda dos juros através dos bancos públicos, dado que a situação estava insustentável social e economicamente, a medida não alterou substancialmente a taxa de lucro dos bancos privados e o endividamento da população. 

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Fonte: Universidade Nômade

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