novembro 25, 2013

"O antiprometeísmo entre neoliberais e catastrofistas", por Alberto Toscano

PICICA: "No final do século 20, os novos humanismos conseguiram se acoplar à ideologia capitalista na base da conversão pós-fordista, para condenar moralmente o progresso, o ímpeto de transformação e qualquer esboço do poder coletivo, como sementes do mal, gérmens do totalitarismo. Essa leitura do século 20 tardio rapidamente se conjugou com uma ecologia para quem o Homem é o grande culpado pela destruição do planeta, numa enviesada restauração do transcendente na forma do postulado antropocênico. O resultado político, irônico, foi um casamento improvável entre o que hoje são peças discursivas do esquerdismo (refrear o poder, proteger o mundo da potência) e um neoliberalismo que se debate para sobreviver à crise (naturalizar o poder na ação “descentralizada” dos mercados, a única eficiente). 

Se os primeiros estão marcados pelo signo da melancolia e má consciência, — ou senão invocam uma retórica radical apenas para permanecer na zona de conforto onde tal radicalismo é sofá; — os últimos não passam de cínicos interessados em continuar desmobilizando a potência comum e desarticulando quaisquer instâncias de transformação direta — e a própria ideia de que seja possível reunir a práxis e mudar o mundo — para realizar a dominação mais sofisticadamente totalitária já criada: o capitalismo globalizado, integrado e financeirizado de hoje. 

Enquanto os catastrofistas e o beatos do “discurso do perigo” sucumbem ao peso dos próprios princípios, os neoliberais celebram a sua impotência, ocupando todos os lugares de poder. Os pures et dures da esquerda terminam por morrer intoxicados pela própria pureza, ao passo que a direita, mais pragmática, ri de seu fastídio. Este artigo de Alberto Toscano contesta a hiperventilação teórica desse debate central às formulações políticas do começo do século 21. (N.E.)"


O antiprometeísmo entre neoliberais e catastrofistas

24/11/2013
Por Alberto Toscano


Por Alberto Toscano, no Stir | Trad. Aukai Leisner (especial pra UniNômade)

No final do século 20, os novos humanismos conseguiram se acoplar à ideologia capitalista na base da conversão pós-fordista, para condenar moralmente o progresso, o ímpeto de transformação e qualquer esboço do poder coletivo, como sementes do mal, gérmens do totalitarismo. Essa leitura do século 20 tardio rapidamente se conjugou com uma ecologia para quem o Homem é o grande culpado pela destruição do planeta, numa enviesada restauração do transcendente na forma do postulado antropocênico. O resultado político, irônico, foi um casamento improvável entre o que hoje são peças discursivas do esquerdismo (refrear o poder, proteger o mundo da potência) e um neoliberalismo que se debate para sobreviver à crise (naturalizar o poder na ação “descentralizada” dos mercados, a única eficiente). 

Se os primeiros estão marcados pelo signo da melancolia e má consciência, — ou senão invocam uma retórica radical apenas para permanecer na zona de conforto onde tal radicalismo é sofá; — os últimos não passam de cínicos interessados em continuar desmobilizando a potência comum e desarticulando quaisquer instâncias de transformação direta — e a própria ideia de que seja possível reunir a práxis e mudar o mundo — para realizar a dominação mais sofisticadamente totalitária já criada: o capitalismo globalizado, integrado e financeirizado de hoje. 

Enquanto os catastrofistas e o beatos do “discurso do perigo” sucumbem ao peso dos próprios princípios, os neoliberais celebram a sua impotência, ocupando todos os lugares de poder. Os pures et dures da esquerda terminam por morrer intoxicados pela própria pureza, ao passo que a direita, mais pragmática, ri de seu fastídio. Este artigo de Alberto Toscano contesta a hiperventilação teórica desse debate central às formulações políticas do começo do século 21. (N.E.) 

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O preconceito contra Prometeu

Se são os dominados que pensam como os dominadores, ou se os dominadores traduzem as ideias dos dominados, certa afinidade entre ideologias pró e antissistêmicas é um traço comum das batalhas discursivas. Com a declaração de que a era dos extremos se aproxima, a ordem espontânea celebrada fervorosamente pelos agentes do mercado encontra sua oposição nas múltiplas resistências profetizadas pelos que pensavam que a mudança não seria mais mediada pela transição, isto é, pelo poder e pelo estado. Embora as tramas genealógicas que ligam a defesa e o antagonismo ao status quo sejam variadas, seria difícil subestimar a magnitude que os efeitos sedimentados de uma longa Guerra Fria intelectual alcançaram no léxico da esquerda. Escoriações da vontade, denúncias do estado onipresente, advertências severas sobre as consequências da busca pelo domínio da natureza e da história: muitos dos muitos elementos no dossiê contra “Deus que falhou” são agora reproduções intelectuais, confiáveis e ubíquas. Visões de mundo, de outro modo incompatíveis, – liberalismo autoritário e liberalismo subversivo – agora convergem na condenação dos males políticos de um desejo prometeico de controlar o destino coletivo.

O antiprometeísmo da direita pode ser de maneira geral acusado de hipocrisia: clamores burkeanos por reformas cautelosas raramente impediram políticas que arrasaram os costumes e o comum dos oprimidos; e o tão alardeado encolhimento do estado redundou em uma hipertrofia de seu aparato repressivo, uma guerra branda contra a sociedade em prol dos mercados. O antiprometeísmo da esquerda, ao contrário, é mais geralmente marcado pela melancolia ou pela ilusão. Melancolia: a sensação que a emancipação seja um objeto mais lamentado do que desejado; e que o preço de nossos princípios seja proibitivo. Ilusão: a convicção que os despossuídos possam vencer os poderosos sem se unir e organizar forças; a crença que os sistemas e as capacidades que hoje encarnem o trabalho morto das gerações e carreguem as marcas das barbáries pretéritas possam ser simplesmente destruídas ao invés de, ao menos em parte, apropriadas. Tais atitudes reverberam, mais ou menos inadvertidamente, aquele fundamental princípio contrarrevolucionário, segundo o que a catástrofe e a violência política são consequências da imposição de ideias abstratas (liberdade, igualdade, fraternidade…) sobre um material humano complexo e refratário.

Prometeísmo é uma questão de conhecimento, escala e proporção. A direita neoliberal baseia sua apologia da onipotência dos mercados na impossibilidade desastrosa do planejamento nos limites de nossa cognição. Ao recusar o ponto de vista da e na totalidade, ela também rejeita as concepções modernas de um controle político sobre o escopo e impacto das decisões, principalmente na figura da soberania popular, enquanto encoraja os aspectos mais perniciosos da noção, caros à microssociologia contemporânea, de que a escala é produzida em localidades específicas. Considere-se o atual poder exercido por esses fabulosos sítios de produção de efeitos sociais e políticos massivos, as agências de risco: organizações completamente fora da jurisdição de qualquer controle político, ante o que o poder do parlamento empalidece.

No que concerne aos objetivos, os defensores da supremacia do mercado jamais se cansarão de propor uma ou outra versão da harmonia preestabelecida entre a compulsão amoral de acumular tudo que for possível e as necessidades humanas, providencialmente reduzidas a um repertório exíguo de satisfações consumistas. A dominação abstrata e inumana da forma-valor, mensurando qualquer atividade humana sob o imperativo do mais-valor, é considerada compatível com “nossos valores” mais idiossincráticos e previsíveis, para tomar emprestado o vocabulário idiotizante dos políticos de hoje.

Mas a associação persistente das hecatombes do século 20 com o estado, a ciência e o socialismo tem significado que as mais sinceras e amargas despedidas das ambições prometeicas surgem com os progressistas desacreditando no progresso e implorando, com convicção vacilante, por soluções gradativas. Nesses tempos de princípios preventivos e efeitos desconhecidos, é quase natural perceber o conhecimento totalizante como arauto da catástrofe, especialmente quando conjugado a uma visão da história ou da humanidade como portadora de um telos. Em vez de se questionarem as sucessivas supressões de qualquer controle popular ou prática democrática além do reconhecimento periódico de uma cidadania passiva e pacífica, a coletividade e o controle se tornaram ambos alvos de suspeita. São aqueles que se recusam a abandonar o entusiasmo por projetos políticos insurrecionais infindáveis, poderes constituintes mas nunca constituídos, interrupções que não são nunca prelúdios para continuidades menos abjetas.

Mas as forças e frações que conspiram para perpetuar os padrões presentes de dominação não se cansam de organizar nódulos e centros de distribuição, estrategicamente localizados em vastas redes de cumplicidade. Se a ilusão reformista do estado como o único lugar de resistência contra o capital ainda sobrevive, o mesmo sucede com o mito que, em meio a uma guerra social enormemente assimétrica, o enxame amorfo de uma multiplicidade não-coordenada portaria alguma vantagem contra a infraestrutura esclerótica do poder. Sem controle sobre as modalidades de produção e reprodução, a cooperação é sempre a cooperação do capital. Sob a atual forma de gestão, a anarquia será invariavelmente a falsa anarquia do mercado, e a ordem espontânea tenderá sempre a fazer com que os ativos retornem às mãos de seus proprietários legais, como um capitalista americano certa vez gracejou sobre as consequências da crise.

Em um mundo em que a espécie humana tornou-se de fato um agente geológico, beneficiando-se (e padecendo) de integração logística e capacidade técnica que arrepiaria os superoperários de antanho, devemos nos questionar se um difuso senso comum antiprometeico não expressaria, em vez de uma sabedoria conquistada a duras penas, uma perigosa negação. Os problemas do antiprometeísmo revelam-se particularmente agudos, se considerarmos sua propaganda como o complemento ideológico de um catastrofismo circundante. A ironia de nossa atual conjuntura é bem comunicada pela conjunção entre, de um lado, uma retórica difusa que devamos aprender a viver com nossos parcos recursos, que o progressismo e o produtivismo devam ser abandonados e, de outro lado, a proliferação de práticas e propostas para governança, regulação e controle planetários – embora sejam do tipo que é invariavelmente delegada aos funcionários de um consenso forçado, os encarregados de mudar tudo para que nada mude (ou, se o fiasco de Copenhague for um sinal, de não mudar nada pra que tudo mude).

A noção largamente difundida que estamos agindo sob pressão do tempo, impelidos da conveniência à emergência pela flecha do tempo, reforça, de formas sutilmente perniciosas, o abandono da ideia mesma de controle coletivo. Do lado dos poderes estabelecidos, isso perpetua a prática de uma administração da crise que, da moratória fajuta e créditos de carbono a planos e processos de paz, está entre os principais componentes da catástrofe. Entre as forças da oposição, quando não se fazem concessões ecológicas ainda mais vis que as antigas, alimentam-se fantasias de sobrevivência apolíticas ou esperanças mal depositadas nas virtudes políticas da sociedade civil. Seja na economia, na ecologia, ou na geopolítica, esse estado entorpecente de mobilização impotente e ansiosa serve apenas para fortalecer as estruturas de poder e acumulação que perpetuam e alimentam a crise, desmoralizando e despolitizando uma população despida de direitos que pode, no máximo, baixar a cabeça às proibições, reciclar-se e adaptar-se.

Mas um legítimo desprezo pelo Leviatã moderno significou que, dentro das culturas oposicionistas, o senso de emergência decidiu ora por uma esperança desesperada nas virtudes vivificantes do colapso, ora por recolher-se em enclaves supostos prefigurar um futuro que são impotentes para construir. Mas a barbárie é um catalisador ainda menos provável do que aqueles partidos e estados cujas próprias barbaridades agora encobrem qualquer apelo, por mais razoável, por organização e centralismo. Embora ser pequeno às vezes seja bonito, a derrota e insignificância não o são. Enquanto o antiprometeísmo da direita nega conspicuamente o poder inflacionante do dinheiro, da classe e das finanças, juntamente com a centralização e concentração políticas desse poder em eixos centrais, a versão esquerdista reifica o contexto histórico e o conteúdo do controle. Fazendo uso do aspecto mais débil da crítica novecentista da religião, vitupera-se contra o Estado, a Tecnologia, o Progresso, e a História, como se a repudiá-los com o mesmo acesso de honradez com que outrora se negava Deus. Tudo isso, novamente, em prol de uma liberdade e singularidade mal definidas.

Mas o problema é que, num mundo totalmente subjugado às necessidades do homem, nesse inóspito e mesmo inumano Antropoceno, uma política totalizante, capaz de vislumbrar o controle coletivo, é um componente inegociável para a emancipação. Regressão, secessão ou a mera interrupção – isto é, revoltas pensadas não como movimentos inexoráveis mas como fins nelas mesmas – vão figurar somente no radar dos dominadores. Um novo Prometeu não precisa tomar a forma de um Príncipe Moderno, o Partido, se o último for entendido como uma instância de comando com prevalência sobre qualquer outro conselho, associação ou forma de organização.

O controle coletivo deve envolver o controle e o recall, para usar esse importante slogan das comunas e sovietes, de suas inevitáveis instâncias de centralização. Trate-se de um horizonte de reforma radical ou de revolução, um enfrentamento sistemático não pode senão encarar, em vez de solenemente ignorar, os riscos do prometeísmo, deixando de lado qualquer apologia desmemoriada do poder de estado ou ilusões primitivistas, de sobrevivência. Mais importante, o hábito irrefletido de associar o poder da corrupção com certos conteúdos intratáveis – a possibilidade da violência, a proliferação das burocracias, a mediação das máquinas – precisar dar lugar a um engajamento com as formas sociais e as relações de controle.

Advertências sobre a ameaça do Prometeísmo numa época em que a experiência quotidiana da grande maioria é de desorientação, impotência e opacidade – equivalem a simplesmente aquiescer com o exercício de poder nos lugares de sempre, pelos agentes de sempre, naquela mistura pitoresca de anarquia e despotismo que marca o governo do e para o capital. Para o bem e para o mal, o mundo que habitamos é uma imensa justaposição de dominações, os trabalhos vivos de séculos mortificados nas infraestruturas massivas que conduzem as nossas vidas quotidianas, processos naturais a um só tempo catalogados e inclassificáveis, e uma vasta acumulação de fins, finais e extinções estranhas aos planos originais, quando planos havia. Nesse sentido, qualquer política hoje que não seja somente um complemento insípido para o desapossamento e a degradação, paute ela o legado de duras reformas, da desesperada conservação, ou de uma abrangente revolução, não consegue fugir do problema prometeico de articular a ação e o conhecimento na perspectiva da totalidade.

Na medida em que consideramos Prometeu como “o mais eminente santo e mártir no calendário filosófico”, emblema da servidão recusada a poderes abstratos e alienados (Deus, Estado, Dinheiro, Capital), então, prometeico deveria ser um qualificativo orgulhoso para aqueles que consideram a revolução não como uma adesão apaixonada a um ou outro rompante de negação, mas como um processo de desfazimento das formas sociais abstratas que limitam e humilham as capacidades humanas, bem como das ordens políticas que reforçam esses grilhões e humilhações.


Alberto Toscano leciona Sociologia em Goldsmiths, Universidade de Londres. Ele é autor de Fanaticism: A History of an Idea e editor do periódico Historical Materialism.

Tradutor: Aukai Leisner

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Fonte: Universidade Nômade

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