novembro 20, 2013

"O Coração Enegrecido da Antropóloga", por Arthur Coelho Bezerra

PICICA: “A maioria dos políticos tem cabelos brancos e coração negro. Queremos pessoas que tenham cabelos negros e coração branco”. A frase, divulgada na internet no âmbito das manifestações populares da Tunísia em 2011, nos faz lembrar da jovem de cabelos negros que lutou contra a ditadura no Brasil décadas atrás. Hoje, eleita presidenta, não possui cabelos brancos porque estes são tingidos e arrumados pelo cabeleireiro das celebridades, mas tem ouvidos que não escutam o clamor das ruas, olhos que não enxergam a brutal repressão policial nas manifestações e um coração enegrecido pela nefasta política de “governabilidade”.

O Coração Enegrecido da Antropóloga

[Arthur Coelho Bezerra]

“A maioria dos políticos tem cabelos brancos e coração negro. Queremos pessoas que tenham cabelos negros e coração branco”. A frase, divulgada na internet no âmbito das manifestações populares da Tunísia em 2011, nos faz lembrar da jovem de cabelos negros que lutou contra a ditadura no Brasil décadas atrás. Hoje, eleita presidenta, não possui cabelos brancos porque estes são tingidos e arrumados pelo cabeleireiro das celebridades, mas tem ouvidos que não escutam o clamor das ruas, olhos que não enxergam a brutal repressão policial nas manifestações e um coração enegrecido pela nefasta política de “governabilidade”.

No entanto, a frase tunisiana não se limita à classe política: ela também cai como uma luva para parte da intelectualidade brasileira. Não me refiro àqueles que sempre defenderam o crescimento econômico a qualquer custo, que sempre compraram a Veja ou que se deliciam com as diatribes de um Olavo de Carvalho. Falo daqueles que, como a presidenta, sofreram perseguição política na época da ditadura; que possuem uma trajetória ligada à defesa dos direitos dos mais pobres; que realizaram pesquisas em comunidades carentes, revelando apreço pela cultura popular e esforçando-se para desconstruir mitos como a correlação causal entre pobreza e criminalidade. Falo de gente como a professora Alba Zaluar, que, em artigo publicado na terça passada na Folha de São Paulo, mostra como seu coração, mais que seus cabelos, traz as tintas de um pensamento muito distante daquele que conheci em seus livros. Frente a um sentimento de indignação, compartilhado por muitos amigos sociólogos e midiativistas, achei necessário questionar alguns dos argumentos expostos em seu artigo… (o artigo pode ser lido em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/11/1370009-alba-zaluar-taticas-fora-de-lugar.shtml )

Primeiramente, cabe frisar que Alba Zaluar é uma das mais importantes cientistas sociais no que tange o campo da segurança pública, e sua pesquisa de campo feita na favela Cidade de Deus, no início dos anos 1980, é até hoje uma importante referência para todos que se debruçam sobre temas como tráfico de drogas, criminalidade e violência no Rio de Janeiro. Não obstante, imagino que se a antropóloga tivesse feito sua imersão etnográfica no ano passado, no Morro da Providência, e acompanhasse a Secretaria Municipal de Habitação marcando, como gado, centenas de casas humildes com vistas à desapropriação e demolição, talvez não condenasse a atuação dos grupos que tentam “impedir a realização da Copa e da Olimpíada, que movimentam a economia das cidades e do país”. Se estivesse na escadaria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro no dia 15 de outubro, quando cerca de 200 pessoas foram presas e muitas levadas para presídios por estarem manifestando seu direito de protestar, não afirmaria que “ainda bem que o Estado democrático de Direito está se consolidando no Brasil”. Se entendesse que a luta do Movimento Passe Livre é contra a  política de transporte a serviço do automóvel – cujas vendas o governo subsidia e que tem como efeito o roubo do tempo de vida dos cidadãos, que passam horas espremidos em coletivos todos os dias – não se atreveria a culpar manifestantes que “obstruem o trânsito por horas depois das passeatas pacíficas com veículos ou lixo queimados, objetos variados espalhados no meio da rua e a formação do bloco de confronto com a polícia, impedindo que trabalhadores cheguem em casa para seu sono reparador”.
Alba inicia seu texto dizendo que a globalização é um “um processo irresistível, até mesmo nas novas formas de protesto contra diferentes governos em diferentes contextos sociais no nosso vasto e lindo planeta”, e na sequência afirma que “os “black blocs”, a Mídia Ninja, com seus múltiplos grupelhos, são contra a globalização, mas nada mais global do que seus nomes de super-heróis e suas táticas de “occupy”, ditas sempre em inglês”. Teria a autora apontado o mesmo anacronismo nos milhares de egípcios que, ao ocupar a praça Tahir, proclamaram “a Tunísia é a solução”, em referência aos protestos daqueles país? Ou em relação aos Indignados da Espanha que, em suas acampadas, gritavam “a Islândia é a solução”, em referência à Revolução das Panelas na Islândia em 2008? Ou talvez nos próprios norteamericanos, que batizaram de Praça Tahir o seu primeiro acampamento em Wall Street? Seria preguiça ou má fé da consagrada antropóloga em não diferenciar a circulação e o compartilhamento mundial de informação e cultura, uma forma de globalização jamais questionada pelos protestos, da luta contra uma globalização econômica, fundada em grandes blocos de livre mercado sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio?

Foi precisamente a luta contra o bloco econômico da América do Norte – o NAFTA, cuja implementação no México foi acompanhada de uma política de remoções que usurpou o direito secular de terras aos povos indígenas – que pautou a revolta de Chiapas em 1994. Esta, por sua vez,  serviu de exemplo para o levante de Seattle contra a reunião da OMC em 1999, e cada uma das manifestações seguintes – de Praga em 2000 e Gênova em 2001, passando pelas manifestações na Europa e no mundo Árabe em 2011 e desembocando no Brasil em 2013 – serviu de combustível  para levantes vindouros. É claro que cada movimento tem suas particularidades, seja nas reivindicações, nas formas de ocupação do espaço público ou mesmo no uso das redes digitais. Entretanto, há similaridades entre a grande maioria deles, especialmente no que tange à influência do campo econômico na agenda política e à distância das vozes populares do cenário político, que vem acompanhada de uma crítica não à democracia em si, mas à representatividade político-partidária tal como se vê nos países ditos democráticos.

Atos de destruição contra símbolos do capitalismo, como bancos, cadeias de fast food e outras marcas multinacionais, foram verificados em todos os protestos supracitados, estando longe de ser uma exclusividade das manifestações brasileiras. Nesse sentido, é desanimador que uma pessoa respeitável e intelectualizada reforce o estigma do brasileiro ao escrever que, por aqui, se copiam as táticas black blocs “mas não a finalidade política destes, que é o combate ao capital financeiro”, e que os manifestantes tupiniquins “afirmam que combatem o capitalismo, inimigo maior da humanidade, mas escolheram alvos no mínimo deslocados”. Seria o Palácio Guanabara um alvo deslocado? Quem sabe o Palácio Pedro Ernesto, mais conhecido como Câmara Municipal do Rio de Janeiro? Ou o Maracanã, durante um importante jogo da Copa das Confederações, transmitido para o mundo? Ou então o Windsor Barra Hotel, durante o leilão em que a extração de bilhões de barris de petróleo era negociada sem nenhum tipo de esclarecimento à população? E se eram alvos tão deslocados, por que é que forças municipais, estaduais e até nacionais de segurança foram enviadas para tais sítios para cobrir manifestantes de porrada, gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha?

O mais triste disso tudo é que qualquer tentativa de desconstruir o equivocado texto da renomada antropóloga jamais terá o alcance do texto em si, publicado por um dos maiores veículos da grande imprensa brasileira e totalmente alinhado com o discurso dos políticos de coração enegrecido. Como cantou certa vez Mano Brown, “era a brecha que o sistema queria”. Quanto a Alba, seriam mais apropriados os versos de Cazuza: “meus heróis morreram de overdose; meus inimigos estão no poder”.
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Fonte: Revista Pittacos

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