dezembro 17, 2013

"UPPs: breves notas sobre geopolítica e o falso problema da militarização das polícias". Texto de Eduardo Rodrigues

PICICA: "É muito importante relembrar o seguinte ponto: as UPPs são apenas parte de um problema maior, que toma as estratégias de “segurança” interna e externa às fronteiras nacionais do país como frente pioneira de expansão do “Brasil-potência”. A solução militar para os tensionamentos sócioespaciais das metrópoles brasileiras, bem como a crescente presença brasileira em “missões de paz” no exterior, partem de um mesmo exercício: a construção de um “inimigo” comum entre as agendas da “segurança nacional” e da “segurança pública”. Tal exercício funciona como uma espécie de “ligadura” entre a geopolítica em sua face interna e externa, transformando as cidades brasileiras em verdadeiros “laboratórios” para manobras militares a serem usadas no exterior e vice-versa. Chamo atenção, em primeiro lugar, para o uso crescente das FAs nas chamadas operações de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO). Em 2008, o Ministério da Defesa publicou a Estratégia Nacional de Defesa  – documento responsável por delinear, em linhas gerais, o planejamento das FAs para os próximos anos. Através dele, o governo versa sobre uma série de pontos, entre os quais sua intenção em reforçar o uso dos quadros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica em operações de contra-insurgência interna. É preocupante o formato organizativo que algumas divisões militares brasileiras assumem – como a 11ª Brigada de Infantaria Leve (GLO) de Campinas. Contando com 7.000 homens, a brigada é atualmente a principal unidade operacional militar que está sendo preparada para combater, por incrível que pareça, os próprios brasileiros! Além dela, chamo a atenção para a formação de grupamentos policiais especiais utilizados em diferentes situações, que espelham iniciativas de contra-insurgência operadas fora das fronteiras brasileiras. Além das UPPs, temos hoje a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), que atua como uma polícia nacional responsável pela ocupação militar preventiva de territórios estratégicos para o Estado. Seu uso recente, a título de exemplo, como força auxiliar na realização de “megaeventos” como a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Paz, ou ainda para garantir o prosseguimento de vultuosas obras de infra-estrutura – como a da usina de Belo Monte, não são fatos absolutamente gratuitos. É possível, ademais, observar também a construção de novos dispositivos jurídico-legais que não só permitem legalmente a operacionalização de tais ações, como a própria punição para crimes até então inexistentes no código penal. A recente aprovação no congresso da lei que tipica o crime de “terrorismo” é sintomática neste sentido.

Por tudo isso colocado acima, seria possível falarmos então em uma desmilitarização das polícias, ou mesmo da “segurança pública” no Brasil? Até que ponto tal crítica – ainda que legítima, encontra-se de certa forma mal colocada, dado o papel importantíssimo que a militarização desempenha nos interesses geopolíticos internos e externos brasileiros? No tocante a este tema, não se pode perder de vista os sérios limites impostos – no contexto de expansão do capitalismo (semi) periférico brasileiro – em desmilitarizar um Estado onde a própria militarização é uma das condições fundamentais para sua realização enquanto projeto (sub)imperialista de “potência”. Cabe aqui por fim uma pergunta inevitável: quem seriam então os “insurgentes” ou, ao olhos do Estado e das forças policiais, quem seriam os “inimigos” do “Brasil-potência” do século XXI? No campo mas sobretudo nas cidades, a resposta para esta pergunta parece tornar-se cada vez mais clara, principalmente para os espíritos mais atentos, capazes de perceber para onde vão os tiros de chumbo ou de borracha desferidos pelo “desenvolvimento”."

UPPs: breves notas sobre geopolítica e o falso problema da militarização das polícias

Texto de Eduardo Rodrigues (professor, mestre em Geografia e militante do Grupo de Educação Popular (GEP) do Morro da Providência/RJ)

 Muito tem se falado e discutido até agora sobre o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. Após cinco anos da chamada “pacificação” de favelas, o discurso (quase) hegemônico de apoio ao programa parece enfim encontrar sinais de desgaste. Motivos para isso não faltam. O caso do pedreiro Amarildo de Souza – assassinado dentro da Rocinha em julho deste ano, foi somente uma em meio às inúmeras denúncias de brutalidade e corrupção praticadas pelos policiais das UPPs. Não obstante, um dos principais objetivos do programa – pautado pela retomada do controle territorial estatal das favelas, vem sendo colocado sistematicamente em xeque pela permanência não só do comércio varejista de drogas nesses locais, como também pelo próprio controle territorial armado operado explicitamente por traficantes em áreas supostamente “pacificadas”. Além destes fatores, estudos recentes trazem alguns outros elementos importantíssimos para o debate, ao demonstrar como a “pacificação” funciona como um dos pilares do atual modelo “empreendedorista” de gestão do espaço urbano carioca. Seja através da conjugação de processos como especulação imobiliária, gentrificação ou regularização autoritária da economia das favelas, ou mesmo pela sua dimensão enquanto controle disciplinar e biopolítico dos favelados, as UPPs condensam processos que vão muito além de um mero mecanismo de “segurança” para a realização da Copa de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Se os “megaventos” criaram condições mais propícias para a operacionalização do projeto, eles, de forma alguma, encerram os objetivos da “paz”.

 Este pequeno texto, no entanto, não objetiva debruçar-se sobre os pontos expostos acima. Gostaria, por outro lado, de apontar, em linhas gerais, um outro problema, que diz respeito aos moldes cada vez mais geopolíticos que a “segurança” das cidades vêm adquirindo. Dentro deste quadro, as UPPs são apenas uma parte de um problema consideravelmente maior, que articula processos que se operam em escalas para além do território das favelas já ocupadas pela polícia.

 Já há algumas décadas, percebemos um movimento de crescente alinhamento entre as preocupações no campo da “segurança nacional” e na “segurança pública” em diversos países, sobretudo no Brasil. Desde o período da ditadura civil-militar brasileira (1964 – 1985), questões ligadas ao corolário da “segurança nacional” encontram desdobramentos explícitos em questões ligadas à “segurança” das cidades. A maneira de operar das Forças Armadas (FAs) – pautada pela delimitação clara de um “inimigo” a ser combatido, sempre apareceu como um espectro verde-oliva a rondar o modus operandi das forças policiais em nosso país. Mesmo não sendo uma invenção da ditadura, os militares aprofundaram o processo de militarização da polícia, ao transformar cada batalhão policial num braço da repressão política aos “comunistas subversivos” da guerrilha rural e principalmente urbana. Nunca é demais lembrar que durante os períodos de maior agudização do regime – através da promulgação do AI-5 em 1968 e da Lei de Segurança Nacional em 1969, a articulação entre as facetas interna e externa da “segurança” serviu não só como base jurídico-legal para desbaratar os grupos da guerrilha brasileira, como também – já nesta época – para criminalizar e prender diversos militantes ligados ao movimento de resistência às remoções de favelas cariocas. Seja no âmbito das FAs ou das próprias forças policiais brasileiras, a categoria “inimigo” sempre foi usada como mecanismo calibrado por uma ponderação de cunho ideológico, que está sujeita a estereótipos e preconceitos sobre aquilo que seria o comportamento desejável/indesejável de determinados indivíduos. Tal fato é um dispositivo poderosíssimo a ser usado para justificar não só o uso e “abuso” das FAs, como também das próprias forças policiais em nosso cotidiano.

 De qualquer forma, a ideia de “inimigo” ligado ao ideário do Comunismo – tão comum no discurso e nas estratégias de contra-insurgência dos militares durante o período da ditadura, vai passar gradativamente para o lado da criminalidade ordinária nas décadas seguintes. Não por acaso, as favelas passaram a ser o local, ou melhor, o espaço habitado pelos novos “inimigos” a serem combatidos pelas forças policiais. Se antes siglas como VPR, VAR-Palmares, ALN ou MR-8 faziam parte do horizonte de preocupações das agências de inteligência nacional, novas siglas como CV, ADA, TCP ou PCC irão assumir essa posição gradualmente. Se no passado as ações da polícia se centravam na descoberta e destruição de “aparelhos” da guerrilha, agora elas serão direcionadas para a violação de barracos nas favelas em busca de traficantes de drogas. Não é exagero afirmar que na visão das atuais instituições policiais, que ainda se encontram imbuídas do espírito da antiga Doutrina da Segurança Nacional, cada favela se transforme em um novo e potencial “Araguaia”. E, não obstante, o crescente uso das próprias FAs em operações em favelas é outro sintoma cabal do problema exposto acima – inclusive como forças de apoio à polícia no atual processo de “pacificação”.

 Nos dias de hoje, quando encontramos um país atravessado por Copa, Olimpíadas, Bolsa-Família, “nova classe média” e pela retomada de um projeto (sub)imperialista tupiniquim, as coisas são, todavia, significativamente mais complexas. A militarização das favelas cariocas não pode ser tomada como um processo descolado do atual contexto político-econômico experimentado pelo Brasil e pelo Rio, nem muito menos se limitar aos inúmeros (e legítimos) problemas que isso traz para a vida de todos os favelados.


A expansão das empresas brasileiras no exterior é acompanhada pelo avanço militar no Atlântico Sul: o continente africano é um dos alvos

O programa das UPPs, é importante sublinhar, se configura hoje como um importante mecanismo no campo da “segurança”, articulado com o atual modelo de desenvolvimento escolhido pelo Brasil e desdobrado no Rio de Janeiro do petróleo e dos “megaeventos”. Uma leitura possível do processo de “pacificação” aponta para a seguinte premissa: a militarização das polícias, ou mesmo da “segurança pública” num sentido mais amplo, torna-se hoje condição necessária para garantir o funcionamento do atual modelo de desenvolvimento sócio-econômico-cultural do país. Em outras palavras, militarizar e policializar são verbos que transitam até o seara da “integração” dos pobres (e não só dos pobres brasileiros!) ao corolário do “Brasil-potência”, ou seja, a de um Brasil que cresce economicamente com base em vultuosos investimentos em infraestrutura e em mecanismos de ampliação do crédito/consumo, alimentado pelo aumento da produção de bens industriais, agrícolas e do volume das exportações para todo o mundo.


ONU, Brasil e Haiti: redefinação do papel brasileiro em “missões de paz” internacionais

 Deriva daí um problema fundamentalmente geopolítico: a tentativa de inserção diferenciada do Brasil na atual ordem capitalista mundial. Este movimento possui desdobramentos claros no campo da “segurança” em duas frentes complementares. Em primeiro lugar, no plano interno, a ocupação policial permanente das favelas garante o funcionamento de diferentes processos como a formalização econômica e fundiária dos moradores, cobrança de serviços básicos como água e luz, como também a transformação dos morros na nova fronteira de expansão de bens e serviços não só do capital privado e imobliário, como de novas subjetividades, de um novo ethos para uma favela geohistoricamente negada enquanto parte integrante do tecido urbano carioca. Militarizar aqui significa garantir condições suficientes de captura e transformação violenta do favelado enquanto indivíduo mais “útil”, ou mesmo “civilizado” pela pedagogia do capital. Já no plano externo, as UPPs abrem caminho para o desenvolvimento de novas ferramentas de controle a serviço das ambições (sub)imperialistas brasileiras, em especial na sua área de influência geopolítica por excelência: o Atlântico Sul. O Brasil hoje participa direta e indiretamente de inúmeras “missões de paz” nesta região, com destaque para a campanha no Haiti operada desde 2004 (MINUSTAH). Junto com as FAs, percebe-se também um movimento paralelo de expansão da influência brasileira nesta região através de suas transnacionais como a Petrobrás, Odebrecht, Vale, Aracruz celulose, entre outras. É preciso ter em mente que qualquer projeto geopolítico de dominação não pode prescindir do uso das FAs. E o caso brasileiro, por sua vez, não foge a regra: entre 2003 e 2012, os gastos do governo federal no orçamento para “Defesa” obtiveram um aumento de 55,9%, enquanto no período anterior, compreendido entre 1995 e 2002, o aumento foi de 29,3%.  Neste contexto de reaparelhamento das FAs, oficializou-se, desde julho de 2013, uma parceria entre o governo haitiano e o governo fluminense para “exportar” o modelo de “pacificação” de favelas para aquele país. A ideia é substituir gradualmente os militares pelo policiamento de proximidade à la brasileira, nos mesmos moldes das favelas daqui. Além disso, em abril do mesmo ano, a própria ONU já havia sinalizado a intenção de levar a experiência brasileira do Haiti para a República Democrática do Congo. As Nações Unidas convidaram o general de divisão brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz (chefe da MINUSTAH entre 2007 e 2009), para comandar uma nova “missão de paz” no Congo: a MONUSCO. Nunca é demais lembrar que parte do contingente das FAs utilizado na fase inicial de “pacificação” do Complexo do Alemão, em 2010, havia participado previamente da MINUSTAH. A justificativa para o uso dos militares na ocasião era aproveitar a experiência das FAs em manobras militares neste formato, uma vez que, no Haiti, os fuzileiros navais brasileiros realizaram inúmeras ações em favelas. A UPP, neste sentido, funciona também como mais um dos nós que reforçam o entrelaçamento entre as estratégias e preocupações nos campos da “segurança nacional” e da “segurança pública” dos Estados.


Major Carla Martins e o prefeito de Cité Soleil, no Haiti, Jean Rénold 

Philippe: controle social tipo “exportação”

É muito importante relembrar o seguinte ponto: as UPPs são apenas parte de um problema maior, que toma as estratégias de “segurança” interna e externa às fronteiras nacionais do país como frente pioneira de expansão do “Brasil-potência”. A solução militar para os tensionamentos sócioespaciais das metrópoles brasileiras, bem como a crescente presença brasileira em “missões de paz” no exterior, partem de um mesmo exercício: a construção de um “inimigo” comum entre as agendas da “segurança nacional” e da “segurança pública”. Tal exercício funciona como uma espécie de “ligadura” entre a geopolítica em sua face interna e externa, transformando as cidades brasileiras em verdadeiros “laboratórios” para manobras militares a serem usadas no exterior e vice-versa. Chamo atenção, em primeiro lugar, para o uso crescente das FAs nas chamadas operações de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO). Em 2008, o Ministério da Defesa publicou a Estratégia Nacional de Defesa  – documento responsável por delinear, em linhas gerais, o planejamento das FAs para os próximos anos. Através dele, o governo versa sobre uma série de pontos, entre os quais sua intenção em reforçar o uso dos quadros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica em operações de contra-insurgência interna. É preocupante o formato organizativo que algumas divisões militares brasileiras assumem – como a 11ª Brigada de Infantaria Leve (GLO) de Campinas. Contando com 7.000 homens, a brigada é atualmente a principal unidade operacional militar que está sendo preparada para combater, por incrível que pareça, os próprios brasileiros! Além dela, chamo a atenção para a formação de grupamentos policiais especiais utilizados em diferentes situações, que espelham iniciativas de contra-insurgência operadas fora das fronteiras brasileiras. Além das UPPs, temos hoje a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), que atua como uma polícia nacional responsável pela ocupação militar preventiva de territórios estratégicos para o Estado. Seu uso recente, a título de exemplo, como força auxiliar na realização de “megaeventos” como a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Paz, ou ainda para garantir o prosseguimento de vultuosas obras de infra-estrutura – como a da usina de Belo Monte, não são fatos absolutamente gratuitos. É possível, ademais, observar também a construção de novos dispositivos jurídico-legais que não só permitem legalmente a operacionalização de tais ações, como a própria punição para crimes até então inexistentes no código penal. A recente aprovação no congresso da lei que tipica o crime de “terrorismo” é sintomática neste sentido.

Por tudo isso colocado acima, seria possível falarmos então em uma desmilitarização das polícias, ou mesmo da “segurança pública” no Brasil? Até que ponto tal crítica – ainda que legítima, encontra-se de certa forma mal colocada, dado o papel importantíssimo que a militarização desempenha nos interesses geopolíticos internos e externos brasileiros? No tocante a este tema, não se pode perder de vista os sérios limites impostos – no contexto de expansão do capitalismo (semi) periférico brasileiro – em desmilitarizar um Estado onde a própria militarização é uma das condições fundamentais para sua realização enquanto projeto (sub)imperialista de “potência”. Cabe aqui por fim uma pergunta inevitável: quem seriam então os “insurgentes” ou, ao olhos do Estado e das forças policiais, quem seriam os “inimigos” do “Brasil-potência” do século XXI? No campo mas sobretudo nas cidades, a resposta para esta pergunta parece tornar-se cada vez mais clara, principalmente para os espíritos mais atentos, capazes de perceber para onde vão os tiros de chumbo ou de borracha desferidos pelo “desenvolvimento”.

Como referência sobre o problema aqui trabalhado, indico dois excelentes artigos – com um formato mais acadêmico, que complementam e aprofundam alguns pontos deste pequeno texto informativo:



Fonte: Capitalismo em desencanto

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