janeiro 31, 2014

"Concentração fundiária e grilagem no Pará", por Girolamo Domenico Treccani

PICICA: "A Constituição Federal (art. 51 do ADCT) e a do estado do Pará (art. 15) determinaram a revisão da legalidade das titulações de terras realizadas a partir da metade do século passado, permitindo o combate à grilagem. Passadas duas décadas, nem o Congresso Nacional nem o estado do Pará cumpriram suas obrigações"

DOSSIÊ AMAZÔNIA
Concentração fundiária e grilagem no Pará
A Constituição Federal (art. 51 do ADCT) e a do estado do Pará (art. 15) determinaram a revisão da legalidade das titulações de terras realizadas a partir da metade do século passado, permitindo o combate à grilagem. Passadas duas décadas, nem o Congresso Nacional nem o estado do Pará cumpriram suas obrigações
por Girolamo Domenico Treccani
(Residência de ribeirinhos no Amazonas)

A apropriação de terras públicas na Amazônia continua uma realidade na qual milhões de hectares estão ilegalmente ocupados e matriculados. Na ausência de uma definição jurídica, adotaremos a seguinte: grilagem é “toda ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros”.1

O poder público pode atestar se alguém recebeu um título, mas não há estatísticas sistematizadas das informações sobre quantas e quais terras foram incorporadas ao patrimônio público; quantos títulos foram expedidos a particulares; para quem; qual seu tamanho; ou onde ficam as áreas que se incorporaram ao patrimônio particular. E o mais grave é a desconexão entre os papéis (documentos) e o que existe no chão.

Para responder a esse desafio, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e o Incra celebraram em junho de 2008 um convênio que digitalizou mais de 4 milhões de folhas, que, inseridas no Sistema de Gerenciamento de Lotes, permitem pesquisar os dados dos beneficiários dos diferentes processos e visualizar os 34.188 imóveis que apresentam dados espaciais de localização.2

O caos fundiário está associado à violência no campo, como constatou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3 ao relacionar a grilagem aos conflitos pela posse da terra. A situação de conflito se agrava à medida que a “economia verde” se consolida pela entrada na Amazônia de biocombustíveis e a abertura do mercado de créditos de carbono, que permite aos “papéis podres”4 se valorizarem para servir de lastro a operações no mercado internacional: as investidas do agronegócio elevam a procura de terras. Por isso é fundamental associar o combate à grilagem com o limite da propriedade da terra.

Uma CPI da Câmara dos Deputados5 identificou 100 milhões de hectares de terra grilada no Brasil, a maioria na Amazônia, sendo os principais estados o Amazonas (55 milhões) e o Pará (31 milhões). Além disso, a comissão apurou que recursos públicos financiaram a grilagem e propiciaram o aumento dos conflitos.6

Nos últimos anos, o Poder Judiciário dos estados da Amazônia adotou medidas de combate à grilagem. No Amazonas, foram cancelados registros de 48.478.357,558 ha;7 no Pará, o Provimento n. 13/2006 determinou o bloqueio das matrículas que desobedeceram aos limites constitucionais de concessão de terras públicas.

Para auxiliar nas investigações, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJE-PA) criou a Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas à Grilagem,8 a qual comprovou a existência de cerca de 6 mil registros imobiliários com áreas superiores aos limites constitucionais, cuja soma chega a ser 474.681.399,01 ha, quase quatro vezes a superfície do Pará (380,45%).

Considerando que o TJE-PA não aceitou cancelar administrativamente esses registros, a Comissão Pastoral da Terra recorreu ao CNJ, que determinou enfim seu cancelamento9 e permitiu a “requalificação” das matrículas que comprovassem respaldo em documentos válidos.10 Até maio de 2013 foram canceladas 3.168 matrículas com uma área total de 440.912.162,0433 ha e requalificadas 33 matrículas (124.462,1734 ha).

O Provimento n. 10/2012, do TJE-PA,que dispõe sobre o “Procedimento de Requalificação das Matrículas Canceladas pela decisão do Conselho Nacional de Justiça no Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.00.0000, bem como sobre o Procedimento de Cancelamento de Matrículas de Imóveis Rurais, fundamentado em documentos falsos ou insubsistentes de áreas rurais, nos Cartórios do Registro de Imóveis nas Comarcas do Interior do Estado do Pará”, prevê a identificação das matrículas canceladas e a plotagem daquelas requalificadas.

Se os Cartórios de Registros de Imóveis apresentam dados inconsistentes, o controle exercido pelo Poder Executivo também apresenta graves distorções. Apesar de cerca de metade das terras paraenses não estar cadastrada no Incra, em 27 municípios a área cadastrada é superior à sua extensão territorial. Ou seja, “tem mais papel que terra”. (Ver tabela.)

Comparados esses dados, pode-se concluir que, se durante séculos a Amazônia foi considerada “terra sem dono”, hoje ela tem “donos até demais”.

A Portaria CNJ n. 46/2013 criou um grupo de trabalho para a modernização dos Cartórios de Registros de Imóveis. Essa iniciativa e a ação prevista no Provimento CNJ n. 18/2012, que institui a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados, são fundamentais para combater a grilagem. Mas os sistemas do CNJ devem dialogar com os do Incra, Terra Legal e Ministério do Meio Ambiente e com os sistemas estaduais.

O trabalho de unificação e análise dos documentos é o objetivo do Acordo de Cooperação Técnica que está sendo celebrado entre o Ministério Público, órgãos fundiários e ambientais, o Tribunal de Justiça do Pará e a Associação dos Notários e Registradores do Pará. O objetivo é digitalizar e especializar os documentos e sistematizá-los num único banco de dados, verificando a existência de sobreposições para solucioná-las por meio de uma Câmara Técnica de Conciliação.

A “pirataria fundiária” se beneficia da ausência de informações relativas à localização e utilização de milhões de hectares de terras devolutas. Assim, a União e os estados devem estabelecer parcerias para um cronograma de arrecadações.

Para elaborar as diferentes políticas públicas fundiárias e tributárias é necessário acelerar a introdução do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais, previsto na Lei n. 10.271/2001, unificando as bases do Incra e da Secretaria da Receita Federal, e disponibilizando-o para consulta pela internet.11

O cadastro fundiário deve ser associado ao Cadastro Ambiental Rural,12 a fim de permitir agregar informações sobre o detentor do imóvel e o uso que se faz deste, e integrar as dimensões fundiárias e ambientais.

É necessário criar um Sistema Nacional de Registros Públicos, por meio da integração dos sistemas estaduais, no qual devem constar os registros de todas as terras públicas e particulares, georreferenciadas e certificadas. Esse sistema deve ser gratuito e disponível na internet para favorecer a transparência e o acesso a todos.

A Constituição Federal (art. 51 do ADCT) e a do estado do Pará (art. 15) determinaram a revisão da legalidade das titulações de terras realizadas a partir da metade do século passado, permitindo o combate à grilagem. Passadas duas décadas, nem o Congresso Nacional nem o estado do Pará cumpriram suas obrigações.13

A complexidade da situação fundiária amazônica impõe uma ação integrada entre os diferentes órgãos estaduais e federais, e a Varredura Fundiária Territorial, que prioriza a atuação conjunta no âmbito municipal, pode ser um caminho.14  
Girolamo Domenico Treccani 

Professor de Direito Agrário da Universidade Federal do Pará


Ilustração: Cordel Imagem / Sambaphoto

1  Incra, Livro branco da grilagem de terras no Brasil, Brasília, Ministério de Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário, 1999, p.12.

2  20.174 processos titulados apresentam dados espaciais insuficientes para plotagem.

3  Conselho Nacional de Justiça, “Relatório da comissão especial criada para investigar os cartórios de registros de imóveis de Altamira e Vitória do Xingu”, Brasília, 14 set. 2009.

4  Sindicatos acusam empresas de dendê de estar comprando todo e qualquer tipo de papel e tentando sua legalização junto aos órgãos fundiários.

5  Câmara dos Deputados, Ocupação das terras públicas na região amazônica. Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito, Coordenação de Publicações, Brasília, 2002.

6  Idem, p.233 e 234.

7  Marinildes Costeira de Mendonça Lima, “Relatório das correições extraordinárias nos registros de terras rurais no estado do Amazonas”, Governo do Estado do Amazonas, Secretaria de Cultura Turismo e Desporto, Manaus, 2002, p.13-14.

8  TJE/PA, Portaria n. 271, de 31 janeiro de 2007.

9  Decisão do ministro Gilson Dipp, 16 ago. 2010.

10            A decisão da ministra Eliana Calmon, de 22 de setembro de 2010, determina que os cartórios notifiquem os interessados diretamente ou por meio do site do CNJ.

11            A Receita Federal rejeitou nossos pedidos de informações relativos aos seus cadastros alegando “sigilo fiscal”. Essa posição contradiz a Lei n. 12.527/2011, que regula o acesso a informações.

12            Ver Decreto Federal n. 7.830, de 17 de outubro de 2012.

13            Analisando os dados contidos no livro de Alceu Luis Castilho, Partido da Terra: como os políticos conquistam o território brasileiro, Contexto, São Paulo, 2012, percebe-se a grande quantidade de políticos que detém terras: será que o Congresso se dispõe a cumprir a Constituição?

14       O Decreto Estadual n. 739, de 29 de maio de 2013, determina que os “municípios verdes” cujo território esteja coberto pelo CAR-PA tenham prioridade na regularização fundiária e adota a varredura como instrumento de ação.


Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

"Agência Pública luta pelo bom jornalismo", por Mauro Malin

PICICA: "Natalia Viana é uma jornalista que desde o início não se acomodou com o que lhe era oferecido pelo mercado e por outras circunstâncias. Foi uma das fundadoras, em março de 2011, da Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Define essa iniciativa como uma forma de contribuir para fomentar e melhorar o jornalismo independente praticado no país."


ENTREVISTA / NATALIA VIANA

Agência Pública luta pelo bom jornalismo

Por Mauro Malin em 28/01/2014 na edição 783



 
Natalia Viana é uma jornalista que desde o início não se acomodou com o que lhe era oferecido pelo mercado e por outras circunstâncias. Foi uma das fundadoras, em março de 2011, da Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Define essa iniciativa como uma forma de contribuir para fomentar e melhorar o jornalismo independente praticado no país.

Nesta entrevista, feita em setembro de 2013 e atualizada no corrente mês de janeiro, ela lamenta que “o debate sobre a nossa mídia tenha chegado a um nível que hoje beira o tribal.” Explica: “Crítica aos grupos de mídia, à Globo, à Record, etc., eu acho admissível. O que eu acho inadmissível é os manifestantes atacarem jornalista que está ali na cobertura. Jornalista na rua está querendo mostrar alguma coisa de errado.”

Natalia estabelece uma divisão radical entre jornalistas/jornalismo e empresas jornalísticas. Seu postulado parte da necessidade que essas empresas têm de obter lucro, o que as levaria a investir pouco em reportagens de fôlego, de uma categoria que se convencionou chamar jornalismo investigativo. É o que faz a Pública, mediante financiamento de instituições como a Fundação Ford, também financiadora do Observatório da Imprensa, e, agora, crowdfunding (financiamento coletivo).
A seguir, a entrevista.

Reescrevia releases

Você me disse que não tem experiência em redação de grandes jornais ou revistas.

Natalia Viana – Quando me formei, em 2001, estava muito desiludida com a profissão. A faculdade ditava regras e modelos: “É assim que você deve fazer”. E eu nunca me dei bem com essa coisa de padrão.

Eu tinha desistido de jornalismo. Fui trabalhar como frila na área de livros infantis da Editora Ática. E minha melhor amiga passou no Curso Abril. Ela adorou o Curso Abril e eu fiquei morrendo de inveja dela. Falei: vou atrás disso. Comecei a mandar currículo e acabei indo trabalhar no site Terra. Era editora de um canal de notícias culturais chamado São Paulo Virtual. Mas era um pouco chocante. Porque eu só reescrevia releases e publicava. O dia inteiro na Berrini, naquele prédio horroroso, não fazia mais nada, não tinha nem tempo de ir ao cinema, não fazia o menor sentido. Eu, desesperada, chorava todos os dias no banheiro. Até que um dia eu soube que uma estagiária da Caros Amigos ia sair. Eu já era formada, mas fui lá conversar com o Serjão (Sérgio de Souza). Ele disse: não posso te pagar o salário que você tem. Posso te pagar R$ 150 por mês. “Eu quero aprender jornalismo.” “Então venha, que eu vou te ensinar.” 

Escola da Caros Amigos

Eu aprendi jornalismo na Caros Amigos. Fiquei lá durante quatro anos, depois fui fazer mestrado de radiojornalismo em Londres. Foi então que me tornei colaboradora de grandes jornais. Mas desde que eu entrei na Caros Amigos fiz frilas para o Estadão, a Abril – Claudia, Capricho, Superinteressante, Vejinha (Veja São Paulo). Como eu não ganhava muito, sempre fiz muito frila. Mas nunca trabalhei fixa numa dessas redações.

Quem mais está com você na iniciativa chamada Agência Pública?

N.V. – As criadoras somos eu, Marina Amaral e a Tatiana Merlino, que saiu ainda no primeiro ano. A Marina foi fundadora e dona da Caros Amigos durante dez anos. Saiu em 2007. É, na minha opinião, uma das maiores jornalistas do Brasil. A Marina é fantástica. E é uma jornalista mais experiente, trabalhou em tudo quanto foi redação: Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo, TV Cultura. Nós duas aprendemos jornalismo com o Serjão e temos uma visão parecida do que é jornalismo.
Vinda de Londres, um pouquinho antes de fundar a Pública eu estava trabalhando com o Wikileaks. Consegui então fazer algumas coisas que são tendência: o jornalismo sem fins lucrativos que fazemos é um modelo que existe em vários lugares, mas que estava crescendo na época, e continua. Começou nos Estados Unidos, com o Center for Investigative Reporting, que faz jornalismo de interesse público, nos anos 1970 e ganhou um fôlego enorme com o ProPublica, que é um entre mais de cem existentes nos EUA por causa da tendência dos jornais, sobretudo comerciais, de fazer menos esse tipo de jornalismo, porque é custoso... Quer dizer, não é custoso, é trabalhoso, leva tempo, e não é tão lucrativo.

Eu não diria que os jornais não querem fazer isso. Eles fariam tanto quanto possível, para dar furos, para ter prestígio, o que faz diferença, comercialmente.

N.V. – Fariam. Tanto quanto o possível dentro do modelo de negócios deles. Aliás, eu acho que houve um avanço no jornalismo investigativo nas grandes redações no Brasil nos últimos anos. Mas ainda é uma quantidade ínfima se comparada ao total do jornalismo que é feito, e menor ainda se pensarmos na quantidade que é necessária para de fato informar as pessoas sobre questões públicas. 

Melhorar o padrão

O jornal não é uma empresa exatamente como qualquer empresa. Nunca. Ele tem um lado inextirpável de serviço de interesse público. 

N.V. – Claro. No entanto, eu vejo que, pelo menos nos últimos anos, quando tenho acompanhado mais, entrado mais nessa discussão, os jornais muitas vezes se portam como empresas lucrativas, é onde colocam sua força de trabalho.

Como se pode, por meio do trabalho de vocês, contribuir para melhorar o padrão geral de jornalismo, o que é muito diferente, por exemplo, do que faz o Ninja? O Ninja não tem compromisso com a evolução do jornalismo. “Vou fazer uma narrativa independente”. Esse “independente” eu questiono, e questiono o “jornalismo”, porque no Ninja não tem edição e não existe jornalismo sem edição. Não é que não se possa fazer jornalismo sem edição, é que não se deve, porque nesse caso se abre caminho para qualquer coisa ganhar foros de jornalismo, de notícia verdadeira, e para qualquer falsário plantar o que quiser, fazer terrorismo, afirmar que tem certeza de que o PCC vai explodir um shopping no fim de semana, como uma moça fez por e-mail, ingenuamente, alguns anos atrás...

N.V. – ...mas mesmo com edição passam algumas coisas que não são realmente informativas, ou fatos verdadeiros...

...e a outra coisa do Ninja é “ação”. Entrou aí para justificar que a pessoa do Ninja é ativista. O Ninja não responde às grandes indagações que eu tenho, muito mais difíceis, uma batalha para melhorar a mídia jornalística em geral, mais difícil do que você sair por aí com um celular fotografando ou filmando.

N.V. – Olha, eu nem acho que é esse o propósito deles. Mas acho o Ninja necessário. Aliás, mais que isso: O Ninja é uma realidade, está aí, e só existe porque cumpre um papel. E eu gosto desse papel. Acho que esse tipo de jornalismo mais ativista tem sim seu mérito, traz informações que, embora parciais, muitas vezes são importantes. Quem está na internet está buscando não uma fonte, mas dezenas de fontes ao mesmo tempo. É aí que vai se construindo a notícia, a informação hoje em dia. Um jornalista amigo meu definiu muito bem isso outro dia: a internet é uma conversa. É completamente outra lógica em relação à era do auge da indústria da informação. Mudou. 

Divórcio

Volto à pergunta original: como vocês contribuem para o aprimoramento do jornalismo?

N.V. – Nossa batalha é pelo jornalista e pelo jornalismo. Tem uma coisa que eu acho muito importante falar. Eu vejo muito separados o jornalista e o jornalismo dos meios de comunicação e dos donos deles. E daí vem a crítica que eu estava fazendo. Minha experiência, e a da geração que se formou comigo, é que não se trata bem o jornalista.

Mas não tem mercado, tem escola de jornalismo em excesso.

N.V. – Mas não é só que não tem mercado.

Não tem mercado para os 20 melhores que saem da PUC a cada ano.

N.V. – Tem. Tem assessoria de imprensa.

Isso não é jornalismo. Digna profissão, mas não é jornalismo.

N.V. – Não é jornalismo, concordo. Mas todo mundo que se formou na PUC comigo teria condição de ir para a grande imprensa, e alguns foram. Imagina! Tem um monte de gente que foi para tudo quanto é lugar. Trabalham para caramba, não têm liberdade.

Todas as redações que eu conheci eram draconianas e estúpidas.

Compressão salarial

N.V. – Mas havia uma diferença. Havia um pagamento decente.

Mas tem que ter.

N.V. – Não, não existe.

Como assim?

N.V. – Não existe bom pagamento. Eu sei, pela minha experiência prática, que as pessoas da minha idade que trabalham com jornalismo ganham muito mal. Qualquer pessoa que entra nos grandes jornais no Brasil ganha R$ 2,5 mil, R$ 3 mil. Quem ganha mais, ganha R$ 4,5 mil, R$ 5 mil. Isso em São Paulo. Tem editor de revista ganhando R$ 6 mil... 

É muito pouco.

N.V. – Eu sei que existe uma cultura meio malévola da redação, que eu não vivi, e nem sei se continua, mas havia duas coisas, acho. No período da redemocratização, estar num jornal significava estar lutando pela melhoria do país. Mesmo que se ganhasse pouco.

Isso é muito importante, faz muita diferença em relação a hoje.

N.V. – Houve uma deterioração. Há nas redações muitos jovens considerados descartáveis. E o pior é que eles não estão ali por uma “causa”, porque os jornais deixaram de ser a “voz do povo”, a voz da democracia, a voz da vanguarda. Essa é a questão. As marcas envelheceram. 

Em qualquer situação de trabalho onde se tenha oferta intensiva de mão de obra o salário vai cair. Outra coisa é que a escola de comunicação não ensina. O que ensina é trabalhar na redação.

Jornalismo investigativo

N.V. – Também acho. Sou contra a exigência de diploma. O que acontece? Tem uma certa massa de jornalistas que se formam. Tem muita gente, dentro e fora das redações, que gosta e quer fazer jornalismo investigativo, jornalismo de interesse público, aprofundado. Reportagens, investigações. Não é jornalismo cosmético.

Esse nome é um equívoco de tradução: “investigative journalism”. Basta dizer jornalismo. Se não é investigativo, não é jornalismo.

N.V. – Não concordo, não concordo! Por exemplo, tem o cara que, acabou o jogo, transmite a informação, é jornalismo, sim, é notícia. Notícia é jornalismo. Se você eliminar tudo que não é investigativo do jornalismo, não sobra muita coisa. “Notícia investigativa” eu nunca vi. Acho que jornalismo investigativo é um tipo de jornalismo. Que exige um tipo de jornalista. Não é qualquer jornalista que tem a paciência de ficar olhando pilhas e pilhas de documentos, como a Marina está fazendo agora com as acusações de espionagem da Vale, por exemplo, para entender o que aquilo significa. E muitas vezes é um trabalho extenuante, obsessivo. E chato. Tem gente que acha que é a coisa mais aventurosa do mundo. Não. Às vezes tem que trabalhar com tabelas e bancos de dados, ficar analisando tabelas e mais tabelas para encontrar sentido naquilo, ou ficar ligando dez, vinte vezes para conseguir uma informação ou convencer a pessoa a dar entrevista.

Então, nossa missão na Pública é incentivar os jornalistas que querem fazer esse jornalismo, de modo geral. A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) faz um trabalho muito legal de treinamento. Mas nessa nossa missão tem uma questão que você colocou: se não tem mercado, se mesmo quem é bem-treinado não tem tanto espaço, às vezes por divergência ideológica, às vezes por interesse econômico empresarial que interfere na decisão de publicar ou não aquela matéria... Às vezes não tem tempo, não tem espaço para aquilo, o jornalista tem que produzir cinco ou seis matérias num dia e não pode ficar parado naquilo. Então, precisamos criar espaço para esse jornalismo. 

Nesse sentido, além de produzirmos uma rede que republica nossas matérias, incluindo veículos tradicionais, também fomentamos, damos bolsas para jornalistas fazerem esse tipo de trabalho. Ampliando o espaço para esse tipo de jornalismo, também ajudamos a melhorar o jornalismo de modo geral. Estabelecendo claramente uma diferença entre os jornalistas, o jornalismo, de um lado, e a imprensa, os donos de veículos, de outro. 

Regulação

Toda vez que se discute alguma regulação da mídia tem aquela... “Ah, é um ataque à liberdade de imprensa.” Na maioria dos casos, essa reação parte de empresas.

A imprensa, jornal/revista, impressa ou digital, não tem que ter nenhuma regulação, só a Constituição e a legislação infraconstitucional. As empresas, enquanto tais, sim: problemas trabalhistas, tributários, todos os problemas que uma empresa tem.

N.V. – A propriedade cruzada é uma coisa típica de empresa e não de imprensa.

Propriedade cruzada pode ou não ser considerada algo grave. Nos Estados Unidos acharam que era, proibiram. Aqui, não acharam, não proibiram. Claramente, estamos falando principalmente da Globo, mas de outras empresas também.

N.V. – Mas é uma questão de empresa, não de imprensa.

Entra na questão do espectro das concessões de comunicação de rádio e televisão, porque o espectro não é ilimitado. É obrigatório regular, sempre foi regulado. Fundar jornais não pode ter nenhuma limitação. Vai lá, funda. Se vender o produto, se convencer alguém a financiar – é caro, sociológica e economicamente tem que ser viável. No fundo, iniciativas como a Agência Pública acabam influenciando a grande imprensa. E isso é muito importante, porque vai chegar ao povo, ou à parcela que consegue ler jornal.

Republicação

N.V. – O leitor de um texto meu em inglês no The Nation sobre a Pública, era até americano, comentou em inglês: “Que bom, uma infusão saudável de competição dentro do jornalismo brasileiro.” Eu não vejo a Pública como competidora, principalmente porque trabalhamos muito com veículos de imprensa. Tudo que publicamos é em Creative Commons, é de livre reprodução, e temos uma unidade de republicação que faz relacionamento com os jornais para que eles usem esse material.

Como está indo a experiência de republicação?

N.V. – Superlegal. Entre nossos republicadores estão o Terra, o IG, o Yahoo, três dos mais importantes. O UOL republica algumas vezes, via algum site que é nosso republicador como o Opera Mundi. Além disso, temos parcerias de republicação em jornais impressos como o Jornal do Commercio, de Recife, o Diário do Pará, de Belém, a Gazeta do Povo, de Curitiba, O Povo, de Fortaleza, Diário do Tocantins, de Palmas.

Eles simplesmente republicam, não têm que pagar nada. O custo da matéria já foi coberto pela maneira como vocês se organizam. Como vocês conseguem financiar isso?

Amazônia

N.V. – Nosso financiamento principal vem da Fundação Ford, da Open Society Foundations. Isso é o básico, pequeno. E temos projetos específicos financiados por outros. Por exemplo, em 2012 fizemos três investigações longas na Amazônia. O foco eram os grandes investimentos na região, muito além de Belo Monte. Mandamos uma dupla de repórteres passar 20, 30 dias no Tapajós, outra para o Madeira, onde estão as hidrelétricas, e a Marina Amaral, nossa diretora, ficou responsável pelo Sul do Pará. Foi investigar a mineração da Vale. Isso rendeu uma série extensíssima chamada Amazônia Pública. A série foi financiada por uma coalizão de fundações americanas chamada Climate and Land Use Alliance (Clua), que tem interesse nesse tema. Em todos os projetos e financiamentos da Pública, a regra é: eles não olham o que vamos produzir, não temos nenhum compromisso editorial. Às vezes tem uma cláusula formal a esse respeito, às vezes, não.

Depois de publicado, olham.

N.V. – Não, não olham.

Deveriam olhar.

N.V. – Não, nunca tem: “Ah, vocês deveriam ter falado disso ou disso...” Geralmente dizem: “Que legal, repercutiu, as matérias estão boas.” Por exemplo, para a Clua, que trabalha com clima e meio ambiente, o que interessa é levantar uma pauta que discuta os investimentos na Amazônia. Obviamente, eles têm essa agenda. Como vão usar isso, é problema deles. O material é público. Tudo que publicamos é público. Às vezes, as organizações têm interesse em levantar a pauta: “Olha, esse é um assunto importante de que ninguém fala.”

Eles deveriam olhar. Se você financia uma matéria que vai na direção oposta à que você imaginou, ou você estava muito errado, ou não entenderam a pauta. 

N.V. – Mas eles não sabem nem qual é a pauta. Para a Clua nós falamos: “Está acontecendo isso com as usinas hidrelétricas do Tapajós e do Madeira e a gente sabe genericamente o que acontece no Sul do Pará.” Não é uma pauta, é muito genérico. O repórter vai ficar lá vinte dias e vai produzir cinco matérias. Nós discutimos mais a quantidade de produção do que o que vai ser feito. Não dizemos: “Vamos desmascarar...” Não é assim. Eles não mandam mesmo na pauta. Se teve alguma coisa que contrariou o interesse dos financiadores, nunca...

Não é questão de contrariar o interesse. Estou pensando que eles têm que prestar contas. As pessoas dão dinheiro para eles. Como eles empregam o dinheiro?

Financiadores

N.V. – Nossa maior financiadora é a Fundação Ford. Ela é bastante liberal.

Mas ela fiscaliza o dinheiro.

N.V. – O dinheiro é fiscalizado. Nós prestamos contas das viagens, de tudo. A Fundação Ford tem uma reputação de nunca se intrometer nos projetos. O objetivo, a missão do projeto de mídia da Fundação Ford é ampliar a democratização dos meios de comunicação brasileiros. E ela vê que nisso a Pública tem um papel.

O Observatório da Imprensa é basicamente financiado pela Fundação Ford. E tem alguns anúncios, conseguidos via captação e devido à influência de pessoas que acham importante a atuação do Observatório e podem justificar essa programação de anúncios de acordo com as diretrizes das empresas onde trabalham.

Crítica real

N.V. – Claro. Vê-se que o Observatório da Imprensa é a única crítica real da imprensa. Há um monte de veículos que não criticam. Têm zero de crítica. É tudo corporativo.

E tem também a partidarização, que não funciona para melhorar o jornalismo. Pode-se ter até uma boa crítica a partir de uma ideologia, de uma tomada de posição política, mas não basta, porque vai obnubilar o lado criticável dessa opção política ou ideológica.

N.V. – Nesse sentido, o Observatório da Imprensa é um fórum plural para caramba, tem todo mundo que quer dizer alguma coisa.

É, sim. É tão plural que às vezes me dá raiva...

N.V. – Mas é bom ser plural! 

Não me refiro ao parti pris, mas à qualidade da crítica. Recentemente, fomos procurados por uma pessoa que desejava denunciar uma emissora de televisão que teria forjado um noticiário para promover uma telenovela. Um evidente absurdo. Eu rejeitei a “pauta”. Deu vontade de dizer à pessoa: podemos publicar, mas para denunciar esse tipo de acusação sem fundamento. Existem acusações delirantes a certos meios de comunicação.

Jornalista na rua

N.V. – Eu lamento profundamente que o debate sobre a nossa mídia tenha chegado a um nível que hoje beira o tribal. Sinceramente, crítica aos grupos de mídia, à Globo, à Record, etc., eu acho admissível. O que eu acho inadmissível é um manifestante atacar jornalista que está ali na cobertura. Jornalista na rua está querendo mostrar alguma coisa de errado.

Sempre. 

N.V. – Não sei se tem coisas exageradas, mas às vezes os veículos merecem. É uma tristeza o que a Veja, por exemplo, diz que é jornalismo. Aquilo desqualifica profundamente a profissão. Outro dia eu estava numa palestra no Rio Grande do Sul e um menino novo, que deve ter 21, 22 anos, ainda está na faculdade, disse: A Veja, historicamente, sempre foi uma revista de direita. Eu falei: Espera aí, a Veja foi fundada pelo Mino Carta, passaram por ali os melhores jornalistas brasileiros, ela teve uma posição progressista durante a ditadura, pelo menos no começo.

Ela foi progressista até o fim da ditadura. E mesmo depois. Quando o PT foi para o poder é que a coisa se complicou.

N.V. – O problema não é fazer um jornalismo de direita. É fazer um jornalismo pífio. Isso é ruim para a profissão como um todo. Acho que todo veículo de comunicação, tanto a Veja como a Pública, tem que estar muito consciente do seu papel. Quando nós da Pública dizemos que só fazemos reportagem, estamos brigando por algo que achamos que seja importante. Se falharmos na nossa missão, não só nós seremos prejudicados, mas aquilo que queríamos fazer avançar – o jornalismo investigativo. É claro que erros acontecem, mas adotar o jornalismo de má qualidade como regra é ruim para o jornalismo como um todo, tem um impacto. 

Crowdfunding

É toda essa intenção de melhorar. Agora, deixe-me perguntar: o crowdfunding está funcionando?

N.V. – Está tendo uma acolhida superlegal. Não tivemos nenhuma crítica. Teve muito boa recepção, nós rapidamente chegamos aos R$ 15 mil, hoje [10 de setembro de 2012] já estamos com R$ 25 mil, que é uma boa grana para uma iniciativa que nunca pediu dinheiro. A Pública sempre deu seu conteúdo de graça. E também outras iniciativas de jornalismo que já existiram no Brasil nunca pediram um dinheiro tão grande, fora documentários. O total que pretendemos atingir é alto, R$ 47 mil. Dois dias antes do prazo final, conseguimos alcançar essa meta, e a superamos. Chegamos a R$ 58.935. Foi muito bom porque com o dinheiro extra conseguimos doar mais duas bolsas para repórteres, então nesse momento temos 12 repórteres, financiados pelo público, e cujas pautas foram eleitas pelo público, correndo atrás de histórias sensacionais. Isso eu acho muito bacana, porque beneficia muita gente – o leitor, a Pública, o jornalista que quer ir atrás da suas pauta e não vê oportunidade no mercado industrial – o que não significa que não possa existir; é preciso encontrar uma maneira de viabilizá-lo. 

De onde veio esse dinheiro, geograficamente, sociologicamente.
 
N.V. – Veio mais de São Paulo. Eu não estudei as doações. Para chegarmos aos R$ 25 mil, 341 pessoas tinham doado e a média era de R$ 75.

Então está bom. Vocês estavam pedindo bem menos do que isso...

N.V. – A média está superlegal. 

Alguém deu “um caminhão de grana”, o que puxa a média para cima?

N.V. – Houve três doações de R$ 2 mil cada. De uma organização, de uma pessoa que quis permanecer anônima e de um jornalista americano com quem eu trabalhei num documentário. Ainda não estudamos o perfil das doações, mas pelo que vi, de gente que eu conheço, há uma grande maioria de jornalistas ou de estudantes de jornalismo. Que benefício é dado a quem doa? Poderá votar na reportagem e poderá acompanhar o processo da reportagem. Apela mais a querer se interessar por jornalismo. Por outro lado, no meio desse grande debate que já estava pulsante com a questão da internet e já foi forte na época do Wikileaks, e foi muito forte na época das manifestações [de junho e julho de 2013], principalmente com o fenômeno da Mídia Ninja, o que as pessoas perguntam? Isso é jornalismo, não é jornalismo? E: dá para fazer jornalismo fora da estrutura industrial, digamos, da estrutura de empresa? Dá para fazer jornalismo independente? E a nossa resposta, da Pública, é que dá. De que se precisa? Pensar em novas formas de produção e de financiamento. 

Primeiro, produção. O produto é virtual, não existe no papel, e também é integrado, fazemos bastante infográfico, um modelo que funciona na rede. E de financiamento. Eliminam-se os altos salários, o custo da estrutura, da administração. Todo mundo aqui é repórter, faz o que for preciso, porque é apaixonado por jornalismo.

Essa coisa de repórter na administração...

Começo, meio e fim

N.V. – Repórter não é o melhor administrador do mundo, é claro... Mas não tem a hierarquia tão rígida, nem o fatiamento da produção. Cada um pega a sua história e a faz com começo, meio e fim. Claro, não deixa de ter chefia de reportagem, de redação, edição, revisão, e agora, graças a Deus, fact-checking. Tem diferentes pessoas mexendo nos diferentes produtos, mas o começo, o meio e o fim são do repórter.
Quantas matérias vocês já fizeram?

N.V. – Centenas.

Em quanto tempo?

Fôlego

N.V. – Fazemos dois tipos de matérias. Tem reportagens que são mais investigativas, mais aprofundadas. De campo, ou com base em documentos que eram ou não muito conhecidos, ou secretos – temos parceria com o Wikileaks. Exemplo: matéria sobre como as mulheres do sertão do Piauí estão invertendo a ordem do domínio familiar porque elas é que recebem o Bolsa Família e decidem para onde vai o dinheiro. Isso está fazendo, por exemplo, com que muitas se divorciem dos homens que não as tratavam bem. Essa matéria teve mais de 12 mil compartilhamentos. Exigiu um trabalho de campo enorme. Outros exemplos: matéria sobre espionagem realizada pela Vale. Demorou quatro meses para ser feita. Matéria sobre gravuras rupestres que estão sendo roubadas – as pedras em que foram feitas estão sendo removidas – em São Gabriel da Cachoeira. Temos pelo menos uma dessas por semana, porque estamos com uma produção acelerada.

Desde dezembro de 2011 cobrimos Copa do Mundo numa perspectiva do que chamamos de jornalismo cidadão, porque as fontes são de baixo para cima. Entrevistamos muito os movimentos sociais para ver o que está acontecendo com o povo. Remoções: fizemos uma reportagem sobre isso. Camelôs que serão proibidos de vender na Copa. Legislação de segurança, trabalhista, todos os abusos que parecem estar agora realmente revoltando o povo, vimos cobrindo isso com matérias semanais. E também utilizamos muito os nossos parceiros de jornalismo investigativo como o nosso em outros países. No Peru, IDL Reporteros; no Chile, Plaza Publica e Ciper. Nos Estados Unidos tem um monte. Eles fazem reportagens robustas, nós traduzimos e publicamos. Contando-se que são em média duas por semana, desde o começo de 2013, é muita coisa.

Para um site, é uma produção muito pequena. Mas, como as nossas são “reportagenzonas”, elas têm um tempo muito diferente de amadurecimento, o quanto rodam na internet, o tempo que as pessoas gastam para ler, nunca de uma só sentada.

Um exemplo de reportagens grandes é o da revista piauí. Às vezes, disse recentemente Claudia Antunes (“Mais tempo, mais espaço“), pessoas mandam cartas comentando matérias publicadas meses antes.

Não perecíveis

N.V. – Nossas reportagens são muito pouco noticiosas e, por isso, também muito pouco perecíveis.
Do ponto de vista de uma visão de país e do exame de alguns pontos críticos da realidade brasileira atual, como democratização, redução da desigualdade, cidadania, eu poria também muito perto de tudo isso a questão urbana. Como vocês se colocam?

N.V. – Somos a favor de tudo isso!... Quando, em março de 2011, fundamos a Agência Pública, imaginamos que só seriam cobertos três temas essenciais para o desenvolvimento democrático do nosso país – Copa do Mundo, ditadura e tortura – a continuidade da tortura hoje –, e investimentos na Amazônia. Nosso horizonte é o avanço da nossa democracia. Nossa visão era que a maneira como essas três questões seriam cobertas discutidas pela sociedade iria definir se nosso país iria melhorar ou andar para trás.

Copa do Mundo

A reação à Copa do Mundo que veio em junho de 2013 mostrou que a mídia não estava cobrindo criticamente, porque a população estava indignada; que o governo estava agindo autoritariamente – só houve essa revolta porque estava na cara que não tinha havido consulta à população. Na Copa das Confederações, os estádios estavam guardados pela polícia contra o povo. Isso é simbolicamente aviltante. A reação a Belo Monte mostra que a população está interessada em discutir o que vai acontecer na Amazônia, por exemplo. 

Hoje queremos expandir esses eixos investigativos, como os chamamos; a questão urbana para mim é primordial, tem que ser coberta e discutida. Nossas cidades pioraram muito com o crescimento econômico porque ele foi basicamente consumo, e desse modo não se dá prioridade a que a cidade funcione, seja boa de viver. Isso em São Paulo sempre houve. Mas agora todas as grandes cidades brasileiras estão insuportáveis. Isso é falta de governo, de políticas públicas.

Como está o diálogo de vocês com as universidades, pesquisadores, cientistas? Ele existe?

N.V. – Está mal. Gostaríamos que houvesse mais. Fora seminários de que participamos, tem pouco. Mas estamos já há algum tempo com vontade de nos aproximar de escolas de jornalismo para, talvez, desenvolver projetos com as escolas.

São Francisco

P.S. em 28/1, 12h50: A primeira reportagem das 12 que foram financiadas e votadas pelo público conta como está a construção da barragem do São Francisco. A repórter Márcia Elisabeth Dementshuk viajou durante 10 dias para o eixo Leste da megaconstrução, e descreve  as obras e os problemas que elas vêm gerando para a população. 
A reportagem de Marta foi a oitava mais votada pelos 808 doadores do projeto de financiamento coletivo: http://www.apublica.org/Reportagem-Publica/portifolio/mais-votadas/
 
"Barrigada recentíssima"
 
P.S. 2, em 28/1, 21h30. O leitor Rodrigo Aguiar questiona a inexistência de referência a um erro cometido pela Pùblica (ver abaixo). Ele tem razão, mas é preciso levar em conta que a entrevista foi feita em setembro de 2013 e (mal) atualizada depois do dia dessa publicação, a respeito da qual Natalia Viana informa que ocorreu em 8/1 e suscitou editorial que pode ser lido em http://www.apublica.org/2014/01/aos-nossos-leitores-republicadores/ .
Fonte: Observatório da Imprensa

"A face invisível dos “rolezinhos”, por Albenísio Fonseca

PICICA: "Não há o que estranhar no dilema de setores da elite nacional frente ao mais anarquista dos atos da contemporaneidade à brasileira. Impossível de camuflar, tal “estratégia de libertação urbana” evidencia uma nova forma da luta de classes, em pura e, ao mesmo tempo, bruta discriminação econômica, social, étnica e até estética. Ao judicializar os encontros dessa juventude, orquestrados via redes sociais, sem identificar como capitalizá-los, criminaliza-se a pobreza."

A face invisível dos “rolezinhos”


Foto: Epitácio Pessoa/Estadão
Jovens da periferia promovem “occupy shopping” no Rio e São Paulo

A face invisível dos “rolezinhos”

Albenísio Fonseca
Vendo o quanto tantos ficaram na superfície do fenômeno dos “rolezinhos” – mobilização de jovens moradores de áreas periféricas em shopping centers do Rio e São Paulo – surfando na crista da onda sem ousar um mergulho mais profundo, vale refletir a questão sob a ótica não apenas do consumo, mas sob as faces políticas da excludente ideologia do consumo e da crítica à sociedade do espetáculo.
É inevitável partir da constatação de que a horda excluída também quer fazer valer o direito ao prazer do fascínio produzido em série e poder desfilar o glamour das marcas e seus mil e um acessórios “trade company” nestes templos das mercadorias ou “bunkers” do consumo. Não se dá conta de constituir-se uma espécie de subproduto da sociedade da abundância aparente (a sublimar seu viés proletarizante) – que nos transveste, excita e captura.

Não há o que estranhar no dilema de setores da elite nacional frente ao mais anarquista dos atos da contemporaneidade à brasileira. Impossível de camuflar, tal “estratégia de libertação urbana” evidencia uma nova forma da luta de classes, em pura e, ao mesmo tempo, bruta discriminação econômica, social, étnica e até estética. Ao judicializar os encontros dessa juventude, orquestrados via redes sociais, sem identificar como capitalizá-los, criminaliza-se a pobreza.

Não é meramente o espaço privado e supostamente público que se pretende interditar à circulação dos coletivos de jovens pobres e negros no universo refrigerado do império da moda: é o próprio território urbano de áreas nobres que se converte em locais de acesso proibido, em evidente segregação social, sob repaginado “apartheid”. Os “rolezinhos”, do mesmo modo, invertem a seta da “gentrificação” (enobrecimento) em voga.

Contra a mentalidade escravocrata ainda reinante, a “nova senzala” vinda das periferias quer desfrutar o sabor da “coca-cola, subway e Mcs” na Casa Grande. As meninas sacolejam bolsas assinadas por Louis Vuitton. Os garotões trazem gravada a moda surf na camiseta Mahalo e a estampar nos bonés: “fuck you”. Desembolsam suas rendas a caminhar firmes sobre Nikes, Adidas, Asics, Olympikus, indiferentes à farta exploração da mão de obra – na Índia, Paquistão ou China – embutida na produção de tais mercadorias.

“Ama teu rótulo como a ti mesmo”, sim, Joyce, diriam em paródia à estipulação cristã. Mas, ao levar o desejo a sobrevoar as asas da história, o que os “rolezinhos” denotam é uma desesperada e ingênua busca de visibilidade que, afinal, atenta contra a ordem e a assepsia da mentalidade pequeno-burguesa pretensamente hegemônica, no equívoco de que o acesso ao shopping constitua-se em acesso à cidadania. O verdadeiro, desde há muito, foi convertido, caro Débord, em um momento do falso.

Criados sob a segurança e a facilidade de encontrar tudo no mesmo lugar, aliando os conceitos de modernidade e progresso, os shopping converteram-se desde meados dos anos 1980 em locais privilegiados para compras e lazer. O modelo foi importado dos Estados Unidos e implantado nas cidades brasileiras sob os mesmos critérios e contornos da origem. Seus proprietários, geralmente, são grandes grupos de investidores, construtoras ou holdings.

O maior é o Aricanduva, em São Paulo, com 425 mil m². No Rio, o Center Norte tem 245.028 m². Na Bahia, o Salvador Shopping tem 82.500 m². Em 2013, as vendas do setor cresceram 10,65% e o faturamento alcançou R$ 119,5 bilhões. Em 2012 havia 495 shopping no país, quando apresentaram uma circulação média de 398 milhões de visitantes mensais. Novos 38 empreendimentos foram inaugurados em 2013, outros 40 estão previstos para 2014, segundo a Associação Brasileira de Shopping Centers. O setor contempla cerca de 900 mil empregos diretos.

Sem dispor de capital cultural, acesso a espaços de lazer, oferta de empregos e serviços públicos dignos, notadamente em educação e saúde, isto é, frente à ausência do estado, essa parcela de jovens a irromper em rolés segue entorpecida pelos efeitos sedutores e ilusionistas da publicidade. Todavia, de modo inequívoco, os pobres já estão inseridos na lógica dos centros comerciais: Constituem o corpo de serviçais encarregados da faxina dos corredores, toilettes e na segurança terceirizada.

O espetáculo submete a si os homens, depois que a economia já os arrasou completamente. Em todo esse happening juvenil impelido pela cultura de massa, paciência, Hamlet, agora, “to be or not to be, that is the fashion”. Mas, afinal, com que roupa eu vou ao “rolezinho” que um enorme grupo, pelas redes sociais, me convidou? #
Fonte: Blog de Albenisio

janeiro 30, 2014

"Zéfiro Explícito" (Porta Curtas)

PICICA: O 'catecismo' da juventude dos anos 1960. 


Zéfiro Explícito

Assista ao filme, leia o roteiro, comente 13, publique, Documentário, de Gabriela Temer, Sergio Duran, Duração: 15 min, Plays 0

Gênero: Documentário
Diretor: Gabriela Temer, Sergio Duran
Elenco: Gil Caminha, Juca Kfouri, Nilton Bahlis, Otacílio D'Assunção, Otacílio D'Assunção, Paulo César Pereio
Duração: 15 min     Ano: 2012     Formato: Digital
País: Brasil     Local de Produção: RJ
Cor: Colorido
Sinopse: Sob o pseudônimo de Carlos Zéfiro, o funcionário público Alcides de Aguiar Caminha publicou centenas de quadrinhos eróticos que influenciaram gerações. Alcides também foi compositor de sambas, em parceria com grandes nomes como Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Esta é história de sua descoberta

Fonte: Porta Curtas

"Ano VI: No Meio do Caminho da Democracia havia um Fusca." Texto de Hugo Albuquerque

PICICA: "O ano de 2014 começou na velocidade da luz. Para quem apostou no fim, ou no enfraquecimento, das manifestações a potência do protesto contra a realização da Copa do Mundo surpreendeu. Antes, o fenômeno dos rolezinhos impôs uma dura derrota ao elitismo e ao racismo tradicionais. Neste post, que marca o aniversário de cinco anos d'O Descurvo e a entrada no Ano VI, a nossa hipótese para essa tremenda esfinge é a seguinte: não se trata de um processo explicável pela análise de correlação de forças políticas, do equilíbrio macroeconômico ou algo do tipo, mas sim de algo que decorre de uma nova composição social, de uma nova forma de sociabilidade e, até, de pensamento para além da vida em "sociedade"."

Ano VI: No Meio do Caminho da Democracia havia um Fusca.


O ano de 2014 começou na velocidade da luz. Para quem apostou no fim, ou no enfraquecimento, das manifestações a potência do protesto contra a realização da Copa do Mundo surpreendeu. Antes, o fenômeno dos rolezinhos impôs uma dura derrota ao elitismo e ao racismo tradicionais. Neste post, que marca o aniversário de cinco anos d'O Descurvo e a entrada no Ano VI, a nossa hipótese para essa tremenda esfinge é a seguinte: não se trata de um processo explicável pela análise de correlação de forças políticas, do equilíbrio macroeconômico ou algo do tipo, mas sim de algo que decorre de uma nova composição social, de uma nova forma de sociabilidade e, até, de pensamento para além da vida em "sociedade". 

Parece simples, mas não é. O avanço do capitalismo cognitivo, o trabalho imaterial, a globalização, a internet etc trouxeram mudanças sim relevantes, mas o que interessa aqui é que graças a uma nova perspectiva antropológica tudo isso tomou um significado novo. E quando falamos em homem, com efeito, é de desejo que estamos falando: o que há de relevante nas mudanças brasileiras dos últimos anos, não é que tudo mudou pelo motivo de que reformas socioeconômicas mudaram objetivamente as coisas, mas que aquilo que há de relevante nessas transformações foi uma intensa liberação do desejo.

Trocando em miúdos, as gentes mestiças e pobres, as minorias oprimidas no sistema brasileiro, sentiram-se autorizadas a desejar. Numa sociedade marcada por um esquema rígido de exclusão e opressão, isso mudou tudo. É, numa simplificação grosseira, uma nova sociedade brasileira, marcada por novas tensões e, consequentemente, um novo equilíbrio. É preciso aceitar que um novo mundo já está aí, e que no Brasil, mais ainda.  

Enquanto os velhos atores políticos conservadores procuram criar, do caos, a saída para seu beco sem saída, a esquerda partidária aproveita mais porque se reporta, e quer se reportar, a um mundo que não existe mais -- um mundo no qual o partido, o sindicato, o jornal geravam tendências.

Nunca antes na história [recente] desse país houve tanto movimento para gerar transformações. Mas ao mesmo tempo, a resposta que nós temos é a retranca política. A realização da Copa do Mundo, que será ainda objeto de muita discussão e quetais, é simples: exige envergadura política do governo. Não adianta surfar em uma onda de repressão e escândalo público. A Copa exige geração de direitos. A juventude precisa olhar para o horizonte e poder sonhar com mais do que uma vida média. 

Da parte da esquerda, é necessário independência, prudência e a fuga constante do fascismo. Não como ameaça externa, mas como o próprio risco de nos tornamos algo menos do que vampiros. E não apenas o fascismo sujeito histórico, mas o conceito de fascismo. A vontade de resolver o que não se compreende pela violência, a atração fatal pelo poder. A diferença entre o autoritário e o democrata será sempre a postura adotada face aos questionamentos políticos, num primeiro momento, incompreensíveis. É isso. 

P.S.: Sem mais essa história essa de fusca queimado por manifestantes.  Não foi nada disso que aconteceu. A violência que importa, aqui e agora, é a violência de Estado (a menos que você concorde com coisas como isso ou isso).

P.S. 2: Se Dilma se reuniu ou se reunirá com sua equipe para discutir a Copa, eu não sei. Mas ela que se toque do que está acontecendo. Fazer política não dói, ou não deveria -- como o Mais Médicos poderia ter ensinado.
Fonte: O Descurvo

"Pablo Ortellado: vidas devem valer mais do que vidraças" (DAR - Desentorpecendo a Razão)

PICICA: "O 7 de setembro foi um dos momentos notáveis em que o país novamente assistiu a brutais ações repressivas da polícia cuja “contundência” seria justificada pela violência dos manifestantes, sobretudo do Black Bloc. Para quem segue achando que meninos e meninas que quebram vidraças são “violentos” e que, por isso, precisam ser contidos também com violência (sem aspas), convido a uma reflexão histórica sobre a origem dessa tática."


Correio da Cidadania 

O 7 de setembro foi um dos momentos notáveis em que o país novamente assistiu a brutais ações repressivas da polícia cuja “contundência” seria justificada pela violência dos manifestantes, sobretudo do Black Bloc. Para quem segue achando que meninos e meninas que quebram vidraças são “violentos” e que, por isso, precisam ser contidos também com violência (sem aspas), convido a uma reflexão histórica sobre a origem dessa tática.

Em 1999, os movimentos sociais dos Estados Unidos se preparavam para protestar contra a Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio, que buscava levar a desregulamentação econômica para outro nível, incluindo o setor de serviços e criando absurdas garantias para investidores. Duas iniciativas grandes foram feitas para protestar contra o encontro que acontecia na cidade de Seattle: uma grande manifestação de sindicatos, sobretudo os ligados à confederação AFL-CIO, e um bloqueio dos acessos ao local do encontro organizado pela rede Direct Acion Network (DAN). O bloqueio organizado pela DAN era caracterizado pela observação estrita da não-violência, na tradição inaugurada pelo movimento dos direitos civis de Martin Luther King Jr.

Alguns ativistas acreditavam, no entanto, que essa estratégia da não-violência tinha se tornado inefetiva e que era preciso inovar. A não-violência de Gandi e Luther King foi caracterizada por uma desobediência aberta a leis injustas e a não reação à ação repressiva do Estado – usualmente extremamente violenta. Foi assim que os indianos enfrentaram o colonialismo inglês e os negros do sul dos Estados Unidos enfrentaram a política segregacionista. Eles desafiaram colonialismo e segregacionismo violando aberta e publicamente as leis e dando a outra face quando atacados pela violência policial. Essa postura que conciliava uma causa muito justa e uma ação de resistência passiva chocou a opinião pública, que logo se colocou a favor dos protestos, tirando a legitimidade da opressão colonial britânica e da política de segregação dos estados do sul.

Mas para que a estratégia desse certo era preciso que os meios de comunicação cobrissem a violência do Estado. Era a visão da violência do Estado sobre manifestantes passivos em defesa da justiça o que gerava os efeitos políticos buscados. Mas, desde os protestos contra a segregação racial, os movimentos sociais americanos não conheciam uma campanha de maior expressão que tivesse sido bem sucedida. E o principal motivo para que isso tivesse acontecido era que a grande imprensa não cobria a violência policial e, portanto, a resistência passiva gandiana não tinha qualquer efeito prático. Foi esse o entendimento dos ativistas que discordaram do DAN e optaram por montar um Black Bloc, na tradição alemã.

No entanto, de maneira um pouco diferente do que faziam os alemães (que se dedicavam a enfrentar a polícia e proteger as manifestações de agentes provocadores), os ativistas americanos do Black Bloc buscariam retomar a atenção da grande imprensa por meio de uma ousada campanha de destruição de propriedade privada – uma ação simbólica, orientada a grandes cadeias comerciais como McDonald’s e Starbucks. Assim, conseguiriam simultaneamente resgatar a atenção dos meios de comunicação e demonstrar simbolicamente seu repúdio a alguns símbolos do avanço do capitalismo transnacional.

É preciso notar que essa ação de destruição de propriedade também era não-violenta, já que uma das regras que foram auto-instituídas pelos manifestantes é que pessoas ou animais não poderiam ser machucados (regra que extraíram das ações “terroristas” do movimento ambiental radical americano) – e também que nenhum estabelecimento comercial operado pelos donos (isto é, nenhum pequeno comércio) poderia ser atacado.

O que vimos recentemente no Brasil é um direto desenvolvimento dessa estratégia, que já dura 15 anos, e que não está sendo colocada em prática apenas no Brasil, mas em muitos lugares do mundo, como a Grécia e o Egito. Quando olhamos sob a ótica da sua origem histórica, a ação dos Black Bloc parece razoavelmente bem sucedida.

Enquanto a repressão da polícia a manifestantes pacíficos segue invisível para a maior parte da grande imprensa, a destruição de propriedade privada, sobretudo de bancos, ganha enorme visibilidade. Adicionalmente, o fato de o Brasil ainda manter uma polícia militar que opera praticamente sem controle, e que é acusada de ações regulares de extermínio de jovens pobres, cria uma paradoxal situação que tem sido bem explorada pelos manifestantes. A imprensa gasta páginas e mais páginas de jornal e dezenas de minutos de jornalismo televiso para discutir a “violência” contra vidraças, enquanto a verdadeira violência contra a vida de nossos trabalhadores ganha menções pontuais e breves.
Ao chamar a atenção para os bancos, para as grandes marcas e para o Estado brasileiro, o Black Bloc resgata a atenção dos meios de comunicação e a redireciona para o sistema econômico e político que está na gênese da verdadeira violência da nossa sociedade. É uma questão em aberto se essa mensagem está sendo adequadamente recebida pelo público. Mas, seja como for, essa tática não é nem violenta, nem arbitrária – e, sobretudo, ela não é tola. Nossos jovens que estão nas ruas merecem respeito e nosso apoio – e nossa indignação precisa estar orientada para a verdadeira violência, aquela que faz desaparecer Amarildos e assassinar Ricardos.

Vidas devem valer mais do que vidraças.

Pablo Ortellado é professor e pesquisador da USP.
 
Fonte: DAR - Desentorpecendo a Razão

"O lento suicídio dos jornais", por José Tadeu Gobbi

PICICA: "Muitos editores ainda tratam o leitor como se vivêssemos em 1980 e o jornal ainda fosse o formulador das grandes agendas política, social e econômica da sociedade. Ainda imaginam que o jornal é a grande praça onde todos se encontram para falar de política, dos assuntos que interferem no cotidiano das pessoas e para fazer negócios consultando as seções de anúncios classificados. Há uma alienação injustificada. Os jornais estão perdendo sua capacidade de interpretar a realidade, de hierarquizar e intermediar a informação e entregar contextualizada, customizada e refletida ao leitor. Começa a haver uma disrupção entre o jornal e o leitor."

MÍDIA & MERCADO

O lento suicídio dos jornais

Por José Tadeu Gobbi em 28/01/2014 na edição 783



No fim da década de 1990 e início de 2000, quem precisava recrutar talentos ou procurava empregos costumava se utilizar das edições dominicais de grandes jornais diários. Em São Paulo, jornais como O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo circulavam aos domingos com milhares de ofertas de empregos em mais de 100 páginas de classificados cada um. Lembro-me que se pagava na época aproximadamente 9 mil reais por um anúncio de empregos de 4 colunas (11,7cm) x 9 cm num grande jornal de SP, o que resultava num faturamento médio de 130 mil reais por uma única página impressa no caderno de classificados de empregos.


Vivíamos na ocasião o auge da bolha das pontocom com a internet povoando a imaginação e o valor das ações no mercado de capitais. Em 1996, consultorias de RH, sobretudo a Catho, em São Paulo, desenvolveram e operacionalizaram portais de serviços de RH online, com divulgação de vagas e cadastros de currículos de profissionais interessados. Diante da ameaça dos serviços oferecidos por portais de emprego e Recursos Humanos, os jornais reagiram com passividade. Observaram olimpicamente o serviço de ofertas de vagas e busca de empregados migrar gradativamente para o meio digital sem que fosse esboçada qualquer reação a altura da ameaça. O resultado é que perderam este segmento para a internet. A gorda receita advinda deste segmento simplesmente evaporou do caixa dos jornais.


O mesmo comportamento ocorreu quando foi lançado o serviço de classificados online de venda e compra de veículos, o site Webmotors. Lançado em 95 e depois adquirido por uma grande instituição bancária em 2002 o movimento deste portal no mercado de veículos novos e usados foi subestimado pelos jornais. O modelo de negócios do Webmotors se replicou e atraiu o trade do mercado de veículos. O segmento de veículos nos cadernos de classificados dos jornais era robusto em variedade e ofertas. Quem queria comprar ou vender carros, motos, caminhões, ônibus se socorria das páginas dos jornais. Hoje boa parte deste segmento migrou para a internet e esvaziou os cadernos de veículos dos jornais.


A logística de distribuição


A derrocada das empresas pontocom no início de 2001 deu aos executivos de jornal na ocasião a falsa ideia de que o novo fenômeno da internet não tinha fôlego para ameaçar sua confortável posição no mercado, entretanto, a tendência que havia se projetado a partir desta bolha parecia bastante ameaçadora para ser ignorada. A reação dos jornais foi construir sites burocráticos e pouco amigáveis para o leitor. Nenhuma preocupação com design, tecnologia, acesso, serviços e navegação que entregasse ao leitor uma forma mais intuitiva, agradável e amigável de consumir informação no mundo digital. Nenhum recurso gráfico e tecnológico que propiciasse uma experiência nova e agradável com a marca. Pegava-se o material produzido para a versão impressa com uma edição de jornal impresso e colava-se na página digital.


Os portais de veículos de comunicação, jornais, revistas, rádio, televisão são historicamente grandes geradores de tráfego e audiência qualificada na internet. Tendo em mãos o grande volume de tráfego e audiência na sua plataforma digital, por que a indústria de jornais optou por negligenciar esta vantagem competitiva e não desenvolveu e ofereceu serviços de classificados online utilizando a expertise adquirida no jornal impresso? Por que não integrou gradativamente as duas plataformas, impressa e digital, oferecendo ao anunciante maior retorno com a soma das audiências on e offline, mantendo, é claro, a geração de valor na versão impressa?


A resposta é canibalização. O medo que imobilizou os jornais foi o medo da canibalização do jornal impresso, o grande gerador de caixa da empresa. Nos jornais se trabalhou com a premissa de que alimentar uma versão digital de sucesso nos classificados seria um tiro no pé que na pratica resultaria no comprometimento de seu caixa. O ambiente digital é inóspito e ninguém ainda tem um modelo de negócios de jornal na internet autossustentável e rentável. Experiências como a do iTunes e da Amazon passam distantes do imaginário dos estrategistas dos jornais. O long tail é apenas mais um paradigma que se encaixa na logística de distribuição como um desenho da distribuição dos assinantes por um determinado território. O conceito que vale é que a receita de 130 mil por uma página não seria gerada pela plataforma digital nem entregando uma audiência maior e mais qualificada nem um volume maior de ofertas.


Notícia velha, sem análise e acrítica


O imobilismo foi a pior decisão, a transferência de clientes dos cadernos de classificados e noticiário para serviços online parece irreversível. Como negócio o jornal permitiu que estas empresas crescessem em seu mercado oferecendo serviços que ele jornal, como indústria poderia oferecer, ou seja, tráfego, maior audiência qualificada, ofertas organizadas de produtos e serviços, volume de ofertas vindas de seus cadernos de classificados e mais importante, a força, a credibilidade e a confiança de sua marca. Em vez de estabelecer políticas de inovação e integração de plataformas os jornais optaram por negligenciar a ameaça digital e investiram em amplos, modernos e caríssimos parques gráficos.


O resultado é que a queda das receitas de publicidade tem obrigado empresas jornalísticas a promover rigorosos ajustes em sua estrutura. O meio jornal reage ao cenário que se desenhou de maneira visceral com grandes cortes nas redações e o sacrifício da qualidade editorial. A perda de leitores pela conveniência e instantaneidade da internet é agora potencializada pela queda na qualidade da cobertura do jornal impresso.


A este cenário soma-se a falta de ousadia e a soberba das cabeças analógicas no comando das redações e na direção dos jornais brasileiros. Escolha aleatoriamente qualquer título de jornal em qualquer estado brasileiro e vai se verificar que o conteúdo editorial permanece o mesmo, o mesmo tipo de abordagem, as mesmas editorias, o mesmo padrão de cobertura numa época em que as pessoas consomem informação em tempo real pela internet sob o signo dos novos paradigmas one to one e on demand. Entregar notícia velha, sem análise, sem reflexão e de forma acrítica ainda é o padrão do jornal impresso e com a pretensão de que o leitor vá até a banca comprar o produto.


Suicídio lento 


Muitos editores ainda tratam o leitor como se vivêssemos em 1980 e o jornal ainda fosse o formulador das grandes agendas política, social e econômica da sociedade. Ainda imaginam que o jornal é a grande praça onde todos se encontram para falar de política, dos assuntos que interferem no cotidiano das pessoas e para fazer negócios consultando as seções de anúncios classificados. Há uma alienação injustificada. Os jornais estão perdendo sua capacidade de interpretar a realidade, de hierarquizar e intermediar a informação e entregar contextualizada, customizada e refletida ao leitor. Começa a haver uma disrupção entre o jornal e o leitor.


Neste início de 2014, é desesperador o silêncio das empresas jornalísticas diante da avassaladora campanha de empresas do meio digital oferecendo serviços de classificados online. Vemos estas empresas com campanhas bem produzidas convidando o cidadão a anunciar em seus serviços. Não se vê qualquer jornal divulgando seus classificados e convidando o anunciante a vender para sua base de leitores. Não se vê nenhuma grande novidade que seduza o leitor e o anunciante a permanecer nas páginas do jornal ou a mantê-lo na condição de produto indispensável em qualquer plataforma, impressa ou digital.

Por erro na avaliação do cenário, por subestimar as ameaças do meio digital por soberba e excessivo conservadorismo, os jornais, como negócio, estão seriamente ameaçados. Suas fontes de receitas se esgotam neste novo cenário desenhado pela transferência de plataformas e pela mudança de comportamento no consumo de mídia. Seu imobilismo é quase um suicídio. Um suicídio lento e doloroso que ainda não se concretizou, mas que está aí no horizonte. Ou a indústria se reinventa, recupera sua relevância e reage ou saberemos dos jornais pelos livros de história.

Fonte: Observatório da Imprensa