janeiro 11, 2014

"A luta pela paz", por por Giuseppe Cocco, Bruno Cava, Eduardo Baker

PICICA: "No Rio de Janeiro, a multiplicação de ameaças de morte nas manifestações e pelo telefone aos mídia-ativistas indica a existência de práticas repressivas extralegais por parte do próprio aparelho do Estado"

O MOVIMENTO DE JUNHO-OUTUBRO
A luta pela paz
No Rio de Janeiro, a multiplicação de ameaças de morte nas manifestações e pelo telefone aos mídia-ativistas indica a existência de práticas repressivas extralegais por parte do próprio aparelho do Estado
por Giuseppe Cocco, Bruno Cava, Eduardo Baker
(Protesto contra a violência policial em pista da Avenida Brasil, no Complexo da Maré)

Na noite de 24 de junho de 2013, a Polícia Militar do Rio de Janeiro invadiu o complexo de favelas da Maré com seu equipamento de guerra: blindados, helicóptero e fuzis. A polícia ocupou o território habitado por cerca de 150 mil pessoas e protagonizou uma madrugada de terror. Além do cerco no qual “ninguém entra ou sai”, foram interrompidas as ligações elétricas e de telefone, centenas de domicílios foram invadidos sem qualquer autorização judicial e, dependendo de quem se consulta, de nove a catorze moradores foram sumariamente executados pela polícia. Como simplesmente atirar é “pouco”, a tropa de elite optou por degolar algumas das vítimas.

Essa é uma realidade rotineira nas favelas do Rio de Janeiro, uma cidade onde os números oficiais apontam cerca de quinhentos mortos anualmente pelas forças do Estado, a grande maioria jovem, negra e pobre, e um número similar de desaparecidos. A “novidade” dessa chacina com relação à rotina mortífera foi ter acontecido logo depois da manifestação de 1 milhão de pessoas na Avenida Presidente Vargas (20 de junho), como desdobramento da repressão de uma manifestação de favelados na principal avenida ao lado da favela. Usou-se o pretexto de sempre: o conflito armado com o narcotráfico. O “recado” estava dado: “Os favelados que não se juntem ao levante, ou serão mortos”. Mas a brecha estava aberta. No dia seguinte, 3 mil manifestantes desceram os morros das favelas do Vidigal e da Rocinha e foram até a casa do governador no bairro luxuoso do Leblon, demandando melhores condições de vida na favela, saneamento, educação, saúde e o fim da Polícia Militar. Em 4 de julho, 5 mil pessoas tiveram a coragem de voltar a protestar na Maré, na mesma avenida do protesto do dia 24, reunindo movimentos sociais, ONGs e coletivos, todos com a bandeira “Estado que mata, nunca mais!”. A conexão entre o levante de junho e as lutas pela paz estava feita, apesar do terror estatal.

Quando, em 14 de julho, um morador da favela da Rocinha foi levado pela polícia e em seguida “desapareceu”, surgiu a campanha “Cadê o Amarildo?”, que teve repercussão nacional e internacional. Amarildo transformou-se no símbolo de uma resistência cujo primeiro desafio é tornar visíveis os milhares de anônimos mortos e desaparecidos cotidianamente nas grandes cidades brasileiras. Com a campanha, soubemos quem era Amarildo, um ajudante de pedreiro negro, de 47 anos, pai de seis filhos, visto pela última vez sendo levado “para averiguação” pelos policiais. O caso é particularmente emblemático, levando em conta que eram militares da Unidade Policial Pacificadora (UPP), um quartel encravado na favela para exercer a política de “pacificação” dos territórios. A pressão popular foi o fator decisivo para garantir a eficácia de uma investigação que demonstrou como Amarildo foi arrastado a uma sessão de tortura com choques elétricos e sufocamentos, até ser morto e ter o corpo desaparecido. Não por acaso, o delegado de polícia que conduziu a investigação com lisura foi “premiado” pelo governo e transferido para uma delegacia distante.
No dia 15 de outubro, depois de uma manifestação de mais de 50 mil pessoas, o governo do Rio realizou uma operação de represália, mandando prender duzentos manifestantes. Eles foram enquadrados pela primeira vez, segundo uma nova legislação sancionada por Dilma Rousseff em setembro, como “organização criminosa”, e 64 deles acabaram encarcerados no presídio de Bangu, em condições medievais. A única prova: o fato de estarem sentados pacificamente na escadaria da Câmara dos Vereadores. A maior parte dos detidos conseguiu a liberdade por meio da atuação de advogados populares e da Defensoria Pública. Ainda assim, duas pessoas permanecem presas. Os dois são negros. Um deles, morador de rua, já foi condenado a cinco anos de uma prisão que serve ao Poder Executivo para ameaçar o ciclo de manifestações por vir.

Enquanto isso, em São Paulo, no dia 25, um jovem foi preso e acusado de “homicídio doloso” depois de agredir um coronel da PM que se meteu sozinho e fardado no meio de um protesto na cidade, quando outros 92 manifestantes foram detidos. Em entrevista, o policial lamentou: “foi a minha vez”. Pois bem. No domingo, dia 27, foi a vez de Douglas Rodrigues, de 17 anos, adolescente da periferia de São Paulo, cujas últimas palavras ao policial que o matou foram: “Por que o senhor atirou em mim?”. O policial que disparou no adolescente desarmado, diferentemente do manifestante que estapeou o coronel, vai responder por “homicídio culposo”, sem intenção.
Além de tudo isso, Gleise Nana, uma jovem ativista dos protestos do Rio de Janeiro que vinha denunciando ameaças de um policial pela internet, morreu em 25 de novembro, depois de várias semanas em coma, por causa de um incêndio não esclarecido em sua casa, em 19 de outubro. No Rio, a multiplicação de ameaças de morte nas manifestações e pelo telefone aos mídia-ativistas indica a existência de práticas repressivas extralegais por parte do próprio aparelho do Estado. Além disso, nas últimas mobilizações de dezembro, a Polícia Militar espancou e prendeu manifestantes sem nenhum motivo, alegando os delitos de “desacato” e/ou “desobediência”. 

O governo Dilma, depois de apoiar o arbítrio da polícia no Rio de Janeiro, finalmente anunciou em 31 de outubro, sob o pretexto de “combater o vandalismo”, a federalização da repressão às manifestações nas duas principais cidades, Rio e São Paulo, colocando à disposição a Polícia Federal e o sistema de inteligência. O PT e seu governo, na figura de um ministro de Justiça transformado em ministro da Polícia, estão jogando no lixo sua história de lutas, inclusive contra a ditadura. A única porta que abrem ao movimento… é aquela da prisão. Dilma e José Eduardo Cardozo apenas se preocupam com a ordem desse poder. Trata-se de uma postura irresponsável diante da brecha democrática aberta pelas mobilizações de junho-outubro. As mobilizações de dezembro de milhares de jovens nos shopping centers confirmam que a mudança de composição de classe veio para ficar, inclusive em 2014. 

Ora, no Rio de Janeiro, cinco meses de mobilizações democráticas diárias nos mostraram uma evidência: quando o poder quer, a PM – apesar de sua habitual truculência e dos episódios de uso de armas de fogo por policiais isolados – não mata na avenida. Isso mostra ao mundo, em primeiro lugar, que o extermínio de jovens, pobres, negros e favelados não é um “desmando”, mas uma nítida e sustentada política de Estado, uma política racional com propósito e objetivo; em segundo lugar, o movimento de junho-outubro foi (e continua sendo) a invenção potentíssima – porque radicalmente democrática – da paz. Uma paz da democracia. Não a “pacificação” contra a senzala para manter a escravidão em formas diferentes, mas a libertação dos pobres como paz. 

Giuseppe Cocco é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é autor, entre outros, de GLOBAL - Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Record, 2005), escrito em conjunto com Antonio Negri.

Bruno Cava
Mestre em Filosofia do Direito


Eduardo Baker Mestre em Direito Penal, advogado e ativista da Justiça Global


Ilustração: Daniel Marenco/ Folhapress
06 de Janeiro de 2014

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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