janeiro 23, 2014

"O Rolezinho, o trabalho imaterial e a humanidade." Por Marco Pires

PICICA: "“Rolezinho” na agência de emprego ninguém quer fazer, não é? Esse tipo de argumento esconde um desprezo paradoxal pelas pessoas comuns. Um desdém pela média dos humanos, pela maioria, que só pode espelhar um desprezo profundo por si mesmo. Se muitas pessoas concordam com isso é justamente por que elas fazem parte da média: são medíocres como aqueles a quem criticam. E eles podem estar certos. Afinal a humanidade não é uma objetividade boa, ou má. Ela é uma ideia subjetiva que os humanos inventaram para atribuir um sentido (que fora de suas limitadas margens de existências e ação) não existe." 

O Rolezinho, o trabalho imaterial e a humanidade.

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“Rolezinho” na agência de emprego ninguém quer fazer, não é? Esse tipo de argumento esconde um desprezo paradoxal pelas pessoas comuns. Um desdém pela média dos humanos, pela maioria, que só pode espelhar um desprezo profundo por si mesmo. Se muitas pessoas concordam com isso é justamente por que elas fazem parte da média: são medíocres como aqueles a quem criticam. E eles podem estar certos. Afinal a humanidade não é uma objetividade boa, ou má. Ela é uma ideia subjetiva que os humanos inventaram para atribuir um sentido (que fora de suas limitadas margens de existências e ação) não existe.

Muitos que repassam esse tipo de mensagem já foram, ou estão desempregados. Muitos estão hoje sendo sustentados por bons empregos públicos, por incentivos econômicos a todo o tipo de atividade privada, que vem da riqueza coletiva que é impessoal e (trans)geracional.

Muitas pessoas não trabalham atualmente porque o trabalho necessário para manter as pessoas alimentadas, devido ao acúmulo tecnológico de milhares de anos, é inferior as horas de vigília de que dispõem os sete bilhões de humanos vivos.

Trabalhar hoje, no mundo ocidental é uma atividade, cada vez mais lúdica, de promover lazer e diversão para cada vez mais pessoas que podem se alimentar, mesmo estando ociosas. Nossa razão concreta para existir não é mais o labor suado e cotidiano para prover o necessário a subsistência. Hoje somos consumidores. E mais do que consumidores de alimentos ou abrigo, consumimos energia gasta em consumir bens imateriais. Consumimos conceitos com mais urgência e avidez do que nossos antepassados consumiam pão.

No oriente, se a China decidir automatizar a produção, a sociedade se desintegra pelos efeitos alucinantes da perda do sentido de prover a vida pelo trabalho. Mas é um caminho sem volta. Cada vez menos trabalho braçal humano será despendido para alimentar uma parcela, cada vez maior de humanos.

O aumento da riqueza depende do aumento do conhecimento e não de “mão de obra”. E o crescimento do conhecimento é o efeito de milhares de anos de acúmulo de experiências humanas. Não pode ser obra de nenhum ser humano individualmente, nem de um corpo de cientistas isolados do conhecimento que as gerações passadas nos repassaram.

Vivemos o limiar de uma crise ecossistêmica que nos levará de volta a Idade Média ou para uma forma de existência pós-humana. A superação dos atuais dilemas humanos são de uma ordem tal que superá-los significa deixarmos de ser o que nos acostumamos a chamar de seres humanos.

O Estado, o império da lei junto com a ideia de estender para além da família e da tribo os frutos do trabalho humano, nos levaram a considerar a humanidade caçadora coletora como selvagem. No entanto, os traços de selvageria permaneceram latentes em nós, dando os contornos e limites da história das civilizações humanas.

O espírito selvagem que nos leva a persistir na vida, forneceu a tinta com que a Razão escreveu a história. E, ainda assim, não pode haver Razão sem irracionalidade. Nossa metafísica depende do paradoxo que costura nossa integridade. Nosso caráter é a ambiguidade, nossa jaula é a liberdade. Uma metafísica humana será marcada pela contradição.

Quando tentamos explicar o universo fundamental das partículas elementares ou o universo das galáxias com seu brilho ofuscante e seus Buracos Negros, paramos na dualidade onda/partícula. O objetivo e o subjetivo são indistinguíveis. O que vemos e o que sentimos são uma e a mesma coisa.

Mas a obsessão por unir o fundamental e o essencial exige uma equação cuja a resposta não é humana. Não é possível expressarmos o que será nossa mutação. A hibridização de humanos e seus objetos já esteja nos modificando de uma forma que logo não fará mais sentido perguntar pelo que seja moral ou ético. O que devemos, é o que seremos.

Poderemos ser a memória de um legado que uma nova espécie herdará. Poderemos ser lembrados como o elo entre os animais e uma espécie inorgânica, ou biomecânica, que nos sucederá. Nada disso contradita com as profecias das grandes religiões reveladas, nem com as filosofias mais realistas que fomos capazes de forjar.

Talvez estejamos próximos de descobrir que a vida é um fenômeno banal no universo. E essa descoberta terminará por relativizar a própria condição humana, e a consciência que temos dela. Que múltiplas outras formas de conhecer a si mesmo nosso universo pode ter forjado? E em que recantos diversos deste universo imenso isto pode estar acontecendo agora?

Não é que tudo o que aprendemos a nomear como sentido e expressão do universo esteja errado. Não há erro na forma como uma serpente ou uma baleia vêem o mundo de . A forma como uma formiga percebe seu entorno não é errada. Todas são modos diferentes da forma humana de perceber e se relacionar com seu meio.

E agora começamos a dar origem a uma forma de ver a humanidade que já não é mais humana. Nem são apenas humanos os organismos que vêem essa nova forma de percepção que estamos engendrando como cognição mediada. Ao hibridizarmos o armazenamento e processamento de dados, e nossas formas de interação social, uma nova forma de percepção está sendo desenvolvida. A Internet está gerando um tipo de ecossistema em que organismos não puramente biológicos estão desenvolvendo formas de autonomia insuspeitadas.

De um lado elas reverberam por nosso sistema de signos e nos modificam de formas que não podemos prever, nem controlar. Por outro lado, podem engendrar uma espécie de Obsolescência não programada. Uma perda de significado que torna irrelevante se o que chamamos de humanidade retornará a Idade Média ou se tornará pós-humana.

Da mesma forma que alguns primatas não se tornaram humanos. Permanecem entre nós como primos distantes. Temos uma origem comum. Quem sabe nosso destino acabará por ser comum também.
Então, não pergunte porque os outros não querem ir a uma agência de emprego. Pergunte por que você se faz essa pergunta.
 
Referências

Depois de escrever este texto, fui buscar imagens sobre o tema e encontrei referências mais organizadas e técnicas sobre o tema deste meu micro-ensaio:

Considero este um indício da despersonalização irrevogável da autoria que as atuais mudanças na produção de sentido de forma hibrida entre organismos não biológicos e humanos estão engendrando.

Uma referência de produção autoral não é mais possível sem a ajuda de organismos não humanos (os motores de busca). O que percebemos desde o século XX é uma paroquialização do capital simbólico que permite o intercambio e a conversão desse tipo de conhecimento em moeda de outros campos. Fora desse tipo de segmentação das referências, a originalidade não habita mais o indivíduo. Ela é um caráter e um atributo dos coletivos.

Fonte: HumanizaSUS

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