janeiro 23, 2014

"Os rolezinhos e a bolha democrática.", por Ricardo Gomes

PICICA: "[...] a crítica deveria lembrar que o consumo não é um mal em si. Antes, o problema é o controle sobre o processo de produção e o consequente hiato criado entre o produzir e consumir. Não é por um direito à propriedade que queremos o que é nosso, mas por um direito a continuar um processo produtivo enquanto criadores de relações e subjetividades. Se as subjetividades não fossem novas e desviantes do padrão “consumidor de shopping”, se elas não fossem outras, não haveria problemas no shopping, os rolezinhos simplesmente não existiriam, ou quem exerce a prática seria só mais um docemente incluído no ambiente, sem causar espanto ou horror algum ao andar pelos corredores cheio de lojas. A aparência, a cor da pele e a forma de viver acompanham quem vai ao shopping, e, neste caso, ir ao shopping não é só uma ação dentro do direito de ir e vim, mas a desestabilização dos lugares pré-concebidos, a continuidade do ciclo de lutas por mais direitos concretos e por uma democracia real. Sobretudo, esse ato específico é o combate potente ao racismo desde um ponto de vista concreto, onde as relações racistas se impõe sobre a vida e a afetividade. Afirmamos mais uma vez que não falamos do ato de comprar em si,  e sim do processo anterior de participação concreta na geração do valor e da vida. Se a nova classe brasileira conseguia chamar atenção por conta de sua forma conflituosa de ascender socialmente, agora é uma outra parte dela que entra nesse processo, também de maneira conflituosa. Nesse sentido, gerar valor quer dizer acrescentar indefinidamente valores na estrutura social, modificando-a radicalmente."

Os rolezinhos e a bolha democrática.

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Foto de Marcelo Castañeda

Por Ricardo Gomes

Os rolezinhos e a bolha democrática

Janeiro segue quente e festivo. Mais uma vez, lutas nas ruas e redes, mais uma vez a partir dos pobres que tomaram a dianteira no processo insurrecional. Por mais que este processo necessite de desdobramentos, o fundamental é que ele se agenciou com os levantes populares do ano passado. Não pela sua existência pura e simples, mas por se aliar com as demandas e o modo de organizar dos protestos anteriores e por fazer parte de um mesmo ciclo produtivo de alteração e multiplicação dos direitos. Certamente não se trata de um grupo organizado que, de forma centralizada e racional formula e executa suas ações com objetivos claros e pré-estabelecidos. O que faz o ‘rolezinho’ funcionar dentro da maquina revolucionária do desejos dos pobres é sua capacidade de desestabilizar de forma rápida e quase total o poder constituído, demonstrando toda a violência racista implícita nos atos e relações cotidianos que lhe estruturam, virando o medo contra seus usuários mais hábeis, não para gerar mais medo mas sim para intensificar a festa e a efetivação da solidariedade. Além disso, os participantes dos ‘rolezinhos’ se organizam de maneira aberta, pelas redes, sem centros hierárquicos formados, o que permite sua disseminação rápida e dispersão positiva, quando necessário. É certo que vários grupos reprovam o fato do acontecimento se dar num shopping – o espaço de poucos, o templo do consumo, a morte do tempo, o único lugar em que a elite diz se sentir protegida. Eles querem comprar e vender, explorar, ser um objeto, uma mercadoria, querem ser iluminados pela mesma luz das vitrines e destruir o brilho de todos, não só desconhecer e desprezar o brilho dos outros, mas articular meios para interromper quem não sabe se destruir, quem não sabe servir sem ser visto.

Mas a crítica deveria lembrar que o consumo não é um mal em si. Antes, o problema é o controle sobre o processo de produção e o consequente hiato criado entre o produzir e consumir. Não é por um direito à propriedade que queremos o que é nosso, mas por um direito a continuar um processo produtivo enquanto criadores de relações e subjetividades. Se as subjetividades não fossem novas e desviantes do padrão “consumidor de shopping”, se elas não fossem outras, não haveria problemas no shopping, os rolezinhos simplesmente não existiriam, ou quem exerce a prática seria só mais um docemente incluído no ambiente, sem causar espanto ou horror algum ao andar pelos corredores cheio de lojas. A aparência, a cor da pele e a forma de viver acompanham quem vai ao shopping, e, neste caso, ir ao shopping não é só uma ação dentro do direito de ir e vim, mas a desestabilização dos lugares pré-concebidos, a continuidade do ciclo de lutas por mais direitos concretos e por uma democracia real. Sobretudo, esse ato específico é o combate potente ao racismo desde um ponto de vista concreto, onde as relações racistas se impõe sobre a vida e a afetividade. Afirmamos mais uma vez que não falamos do ato de comprar em si,  e sim do processo anterior de participação concreta na geração do valor e da vida. Se a nova classe brasileira conseguia chamar atenção por conta de sua forma conflituosa de ascender socialmente, agora é uma outra parte dela que entra nesse processo, também de maneira conflituosa. Nesse sentido, gerar valor quer dizer acrescentar indefinidamente valores na estrutura social, modificando-a radicalmente.

Outro aspecto importante dos rolezinhos é percebê-lo como a possível antecipação da multidão das ruas em agenciar novas máquinas de desejos revolucionários. Todos estavam prontos para a copa, manifestação nas ruas, repressão policial, gritos de ‘não vai ter copa’ e etc., mas, de repente, o conflito se acendeu mais uma vez, mais uma vez se expandiu sem centro de controle definível, por meio da disseminação da comunicação e das subjetividades em colaboração, pegou de surpresa as relações de poder, como convém a um processo real de alteração na estrutura social. A quantidade relevante de atos puxados em apoio ao ‘rolezinho’ em SP também escancara este processo, mesmo que nestes casos não exista o ‘rolezinho’ propriamente dito. Ou melhor, justamente porque este atos são efeitos positivos que produzem outras ações e acontecimentos, que também constrangem o poder e, ao mesmo tempo, colaboram com a luta anterior. A impressão é que o país vive uma ‘bolha democrática’ perto de explodir, ou que talvez já tenha explodido. Chegou a um limite máximo, os poderes constituídos não conseguem mais atender minimamente os desejos, todas as instituições que poderiam mediar as demandas foram tomadas por relações políticas paralisantes ou, no máximo, obsoletas. É certo que, em raros momentos, exista algum tipo de projeto importante acontecendo, mas o caso é que já é real, novas formas políticas de organização descentralizadas já estão na ‘linguagem comum’ dos jovens, o que certamente não é suficiente mas sem dúvida é sintomático. Devemos disputar este caminho sem volta, descentralizado, com baixa concentração hierárquica e grande possibilidade de politização direta e disseminada. Essas formas não vão até os partidos reclamarem suas questões, elas tratam de efetuar concretamente suas ações, mantendo assim sua força múltipla interna, levando a vários desdobramentos e fazendo da cidade um espaço cheio de possibilidades e conflitos. Por exemplo, ao voltar do ‘rolezinho’ percebi que as praias continuavam cheias, aparentemente o que ocorria no shopping do Leblon não tinha maior consequência sobre a cidade, porém, mais tarde, alguns participantes do ‘rolezinho’ foram até um show gratuito na praia e às vezes eles gritavam algumas palavras de ordem. Num certo momento, um dos organizadores do show, um funcionário de uma multinacional, subiu ao palco e pediu para que eles não fizessem isso, dizendo que não era lugar para política. Grande parte do publico reagiu imediatamente com vaias e garrafas d’água na direção do funcionário. As pessoas queriam e querem se posicionar, e qualquer fagulha pode ser suficiente para a intensificação necessária que torna todo ato coletivo um ato político contestatório. Assim, se reafirma a potencialidade descentralizada e imediatamente política do rolezinho, sua espontaneidade e imprevisibilidade.

Falamos no início que os chamados ‘rolezinhos’ continuavam as manifestações de 2013 por conta das demandas e forma de organizar, e isso é relativamente fácil de perceber. Em São Paulo o movimento negro chamou um ato em solidariedade aos jovens e contra a violência racista das PMs (link). Outros atos foram chamados em apoio ao jovens de São Paulo. Contudo, logo aparecem as condenações à direita e à esquerda que falam de ‘contaminação pelo consumo’ e ‘necessidade de conscientização’, enfim, os velhos clichês dos supostamente “esclarecidos”, dos que tem por árduo trabalho apenas desestabilizar o processo imanente de politização presente em todas as manifestações populares descentralizadas. Sejamos francos, boa parte dos partidos de esquerda tradicional não faz outra coisa além disso. Mas, eis que da contaminação surgem ou vibram demandas reais, lutas revolucionárias, imagens e acontecimentos que rompem com o nível de aceitabilidade do racismo cotidiano e de outras violências mais, e, geralmente, surgem mais violentas e potentes do que qualquer ‘ação de base politizada’, surgem como um funk fazendo tremer a caixa de som. Sabemos, porém, que esta violência de que falamos não tem qualquer relação com a violência assassina da PM, que age destruindo as vidas do pretos e pobres. Aqueles que teimam não aceitar o papel de condenado social por natureza, ouvirão sempre as ameaças como as que os jovens paulistas ouviram da PM. Por isso apoiamos o fortalecimento de toda política possível no que eles chamam de ‘contaminado’ e sua produção imanente com diversos desdobramentos concretos e lutas propositivas. Violência aqui quer dizer romper e propor ao mesmo tempo, é disso que se trata o ‘rolezinho’.

Fonte: Das Lutas

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