março 19, 2014

"A segunda via ao triângulo tráfico-milícia-UPP", por Bruno Cava

PICICA: "A milícia é como uma máfia, um mercado de extorsões, intimidação e corrupção, totalmente atravessada pelo estado. Enquanto o tráfico é o próprio estado, a ponta mais violenta e perigosa de uma longa cadeia produtiva de drogas e armas, — o que Michel Foucault chamaria de “economia das ilegalidades”, cujas ramificações abrangem o sistema financeiro, eleitoral e político-partidário."
 
A segunda via ao triângulo tráfico-milícia-UPP

Alemão
Foto: João Lima/OcupaAlemão, 17/3/14



Existe uma forma miserável de colocar os termos da discussão sobre segurança pública no Rio de Janeiro. É colocá-la em termos de três modelos separados e exclusivos: a UPP, a milícia ou o tráfico. O “realismo político” exigiria optar por uma. O tipo de realismo político que, no fundo, quer nos empurrar goela abaixo um problema fechado, pré-decidido. Nessa lógica maceteada, a milícia seria melhor que o tráfico, e a UPP melhor do que as duas. Haveria uma evolução civilizacional: do tráfico bárbaro à milícia mafiosa até chegar na reocupação do estado por meio da militarização pacificadora. Nesse triângulo das Bermudas, contudo, desaparecem não somente as articulações e sobreposições entre os modelos, como também ignoram-se todos os protagonistas que habitam os territórios em questão. Eles são convenientemente esquecidos como meros objetos de uma política construída desde cima, por projetos de domínio da cidade.

A milícia e o tráfico são modelos muito antigos. Baseiam-se na reserva territorial de mercado. Ambos os modelos funcionam como exércitos particulares, super-armados e superviolentos, que impõem o terror como forma de dominação direta. Ambos se baseiam numa moral própria de obediência, senso de pertencimento, bem como um “proceder” adequado ao funcionamento dos negócios. Se o tráfico se concentra no varejo das drogas ilícitas, a milícia se estende sobre o território para controlar todas as atividades econômicas, explorando difusamente as pessoas e negócios. A milícia é como uma máfia, um mercado de extorsões, intimidação e corrupção, totalmente atravessada pelo estado. Enquanto o tráfico é o próprio estado, a ponta mais violenta e perigosa de uma longa cadeia produtiva de drogas e armas, — o que Michel Foucault chamaria de “economia das ilegalidades”, cujas ramificações abrangem o sistema financeiro, eleitoral e político-partidário.

A UPP não é muito diferente. Também estabelece um comando autoritário armado, que arbitra e exerce uma moral, um “proceder”. Só que, diferentemente da milícia e do tráfico, é uma pacificação que passa pela abertura da favela ao mercado oficial: sobem os bancos, as teles, o turismo formal, os serviços agora taxados pela prefeitura, a especulação imobiliária. É um modelo dentro de um contexto político-econômico. A UPP tenta enquadrar a inclusão social dos pobres (a dita “Classe C”) no mercado de trabalho e consumo, para explorar as crescentes jazidas de valor. Por causa disso, detém um grande respaldo do conglomerado de atores no governo da cidade: empresários, financiadores, grande mídia e intelectuais orgânicos da cidade-empresa. É como se a UPP fosse um open house para um novo tipo de capitalismo, mais inclusivo apenas no sentido de explorar mais gente, de estender seus negócios para novos segmentos e fontes de riqueza. O nome “estado”, aí, como oposição ao “estado paralelo”, não passa de figura de publicidade, porque estado sempre houve: a medida do medo, a usurpação da democracia, através da delegação do controle social a máfias e grupos armados. UPP, milícia e tráfico? Nenhuma das anteriores.

O fato é que os três são piores. Nenhum dos modelos reconhece o protagonismo dos sujeitos que vivem e fazem a cidade. Se há uma face positiva na inclusão no mercado de consumo e trabalho, ela consiste na reapropriação do processo por quem o experimenta, no fortalecimento das capacidades dos próprios moradores, grupos, coletivos e culturas de resistência. Essa riqueza que é tão cobiçada pelo novo modelo de pacificação, que corta os intermediários e centraliza a exploração e a dominação, sem no entanto propiciar a democracia. É nesse sentido que uma segunda via ao triângulo tráfico-milícia-UPP aparece, quando a auto-organização consegue criar instâncias colaborativas e autônomas de produção cultural, deliberação política e compartilhamento de experiências. É aí, também, que a inclusão social é transformada em potência política: como reapropriação de um processo antes voltado apenas ao consumo e o trabalho. A contradição na base da atual política de pacificação está nesse contraefeito de abertura de possibilidades para que as pessoas se organizem, e venham a contestar os modelos exploratórios, centralizados e (seletivamente) violentos. Uma contestação que é imediatamente reorganização política, isto é, construção de alternativas. O manifesto de uma plenária no Complexo do Alemão, ontem, sinaliza essa segunda via das favelas, mostrando que junto de tantos protestos, revoltas e incêndios de ônibus também existe um pensamento implicado da cidade, que aos poucos ganha consistência e se dissemina.

Isto acontece também em comunidades onde não existe UPP nem existirá, considerando a impossibilidade matemática de militarizar a cidade como um todo. Nesses lugares, a propaganda massiva do governo/imprensa pelo modelo induziu uma “demanda de UPP” que, na realidade, significa antes a busca e o desejo de alternativas do que uma opção. Por isso, a crescente oposição às UPPs que brota nos territórios pacificados não é incompatível com a demanda por UPP nas comunidades onde ela não existe. Em ambos os casos, acontece uma auto-organização gradual da crise da segurança pública — uma organização da crise que exige ainda muito trabalho de mídia, político e cultural, na elaboração coletiva de alternativas. O horizonte, de qualquer maneira, é continuar lutando pela democratização dos territórios como única paz capaz de instituir as pessoas como verdadeiras produtoras da cidade e governantes de suas vidas em comum.

Fonte: Quadrado dos Loucos

Nenhum comentário: