março 31, 2014

"Espaço comum Luiz Estrela, em BH", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "O Luiz Estrela se construiu numa encruzilhada de temas desabridos: as violências e neuroses contra moradores de rua ou com sofrimento mental, a luta pela cidade, os protestos de junho, o movimento antimanicomial, a política, a arte, os corpos, a bifurcação entre solidão e multidão. A riqueza do comum conseguiu superar o filme de horror a que aquele lugar remetia. Outrora lugar de sofrimento e morte convertido  nas oficinas, encontros, militância, teatro, música e festas que é hoje. Todos os descarregos resolvidos na ação coletiva, na tarefa de organização. A vida não é um recurso escasso a ser preservado a todo custo, mas uma potência tão abundante que nem mesmo a morte consegue anulá-la definitivamente, transformando-a, em vez disso, em outra forma da mesma substância viva. Em sua luta, Luiz Estrela se fez comum."

Espaço comum Luiz Estrela, em BH
luizestrela 
Foto: Felipe Rezende



Luiz Estrela foi espancado até a morte, em 26 de junho de 2013. Um morador em situação de rua, poeta, militante LGBT e da Praia da Estação. Foi morto no mesmo dia de uma manifestação de 100 mil em Belo Horizonte, reprimida brutalmente pela polícia. Os eventos podem não estar relacionados. Até hoje, o assassinato de Luiz não foi apurado. Quatro meses depois, ativistas ocuparam um casarão abandonado e iniciaram o Espaço comum Luiz Estrela. O rosto firme de Luiz foi pintado na fachada. Ele expõe o caráter de luta, sempre presente quando se realiza o direito à cidade — contra a lógica proprietária do estado e do mercado. Por isso o “comum” do nome: para destacar que é uma ocupação auto-organizada, com espaço compartilhado e autônoma em relação aos planos superiores do público ou do privado. Daí por diante, o Espaço comum se tornou um polo de produção político-cultural de BH, incorporando-se ao circuito ativista/artístico, para congregar as mais diversas formas de vida, num calendário efervescente.

Estive lá ontem, para um debate aberto e horizontal com os autores do livro Nas ruas, Rudá Ricci e Patrick Arley, e as pessoas presentes (livro e debate merecerão um post à parte). Desta vez, pude conhecer melhor a história. Da outra vez em que estive, não era considerado seguro entrar no casarão, devido à deterioração da estrutura. Ontem, já tinham sido feitos serviços de escoramento. A arquiteta Priscila, a ativista responsável pela obra, do grupo Indisciplinar, fez uma visita guiada com a gente, depois da roda de debate. Iluminados tenuemente por celulares, visitamos corredores ramificados em celas acessíveis apenas por estreitas passagens. Nas celas, havia paredes que foram rabiscadas e desenhadas pelas crianças que ali ficaram presas. No fundo do corredor, um buraco sinistro na parede levava a um túnel de destinação desconhecida, que mais parece uma catacumba, levando a ainda outras celas construídas no labirinto do subsolo. Ainda não desvendaram o mistério do túnel (para que serviria?). Até tentaram explorá-lo, mas faltaria ar e ficaria muito quente, a partir de determinado ponto. Há algumas décadas, o casarão tinha sido uma casa de torturas de crianças, algumas deportadas do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, o nosso Auschwitz nacional onde foram exterminadas pelo menos 60 mil pessoas porque seriam “doentes mentais”. Em BH, as crianças recebiam choques elétricos, eram dopadas até a catatonia, amarradas e sofriam sabe-se lá que outros abusos, até o fechamento do instituto psiquiátrico, em 1979. Testemunhos dão conta que as crianças viviam entre os gritos da tortura e o silêncio dos remédios até finalmente “sumir”. Em algumas celas, é possível ainda encontrar brinquedos, sapatinhos e frascos de remédio.

O Luiz Estrela se construiu numa encruzilhada de temas desabridos: as violências e neuroses contra moradores de rua ou com sofrimento mental, a luta pela cidade, os protestos de junho, o movimento antimanicomial, a política, a arte, os corpos, a bifurcação entre solidão e multidão. A riqueza do comum conseguiu superar o filme de horror a que aquele lugar remetia. Outrora lugar de sofrimento e morte convertido  nas oficinas, encontros, militância, teatro, música e festas que é hoje. Todos os descarregos resolvidos na ação coletiva, na tarefa de organização. A vida não é um recurso escasso a ser preservado a todo custo, mas uma potência tão abundante que nem mesmo a morte consegue anulá-la definitivamente, transformando-a, em vez disso, em outra forma da mesma substância viva. Em sua luta, Luiz Estrela se fez comum.



É possível colaborar com a restauração e reforma do Espaço Comum Luiz Estrela, à Rua Manaus, 348, Santa Efigênia, mediante o crowdfunding autogerido, uma alternativa de financiamento coletivo com que os ocupantes apostam garantir maior autonomia em relação ao poder público e as empresas. 

Mais informações sobre como contribuir financeiramente: http://catarse.me/pt/espacocomumluizestrela

Fonte: Quadrado dos Loucos

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