abril 16, 2014

"A vergonha de ser um homem: o campo do Morro do Bumba",

PICICA: "A mobilização popular das favelas contra as remoções, por uma gestão democrática do risco e mais em geral da cidade, como se depreende nos manifestos e artigos que publicamos a seguir, mostra que os pobres fazem uma análise precisa do que está acontecendo (bem mais lúcida do que as análises ideológicas antiquadas realizadas por alguns intelectuais de “esquerda”) e estão decididos a reafirmar a potência de suas vidas!"

 

A vergonha de ser um homem: o campo do Morro do Bumba


Editorial. Revista Global N.12.

Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,


pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não
(…)


Pensem que isto aconteceu:
e lhes mando essas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar
repitam-nas a seus filhos.


Ou senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
as seus filhos virem o rosto para não vê-los.

Primo Levi

1) A centralidade paradoxal da vida dos pobres nas metrópoles brasileiras: Biopoder versus Biopolítica


Como tudo no capitalismo, a favelização foi e é um processo contraditório. A chegada dos pobres nas cidades tem (pelo menos) dois grandes determinantes:


- o primeiro determinante é a persistência do latifúndio (inclusive graças à ditadura que reprimiu os movimentos camponeses e continua encontrando amplo apoio naquela mídia que lhe deve concessões estatais e proteção econômica), que expulsou a população rural do campo (do mesmo jeito que a abolição tardia da escravidão acabou empurrando os escravos libertos para a formação das primeiras favelas);

- o segundo determinante é o movimento de resistência que atravessou o país com o êxodo rural rumo a melhores condições de vida e trabalho, dentro do processo de urbanização e para além de sua capacidade de absorção industrial (da mesma forma que os quilombos, as favelas foram também zonas de autoconstrução de espaços urbanos de resistência, persistência dos pobres a viver, desejar, dançar, criar).

Assim, a fuga dos retirantes, a exemplo do Presidente Lula (o mais popular que o Brasil já teve e que proporciona ao país uma popularidade mundial sem precedentes) foi um movimento paradoxal: fruto de relações de poder iníquas (desiguais, racistas e neo-escravagistas) e, ao mesmo tempo, terreno de resistência, luta e invenção. As favelas (e as várias formas de ocupação ilegal, informal, desordenada do solo urbano – ou em via de urbanização) que constituíram nossas “pobres grandes cidades” são também o emblema dessa ambiguidade.


As favelas são, ao mesmo tempo, a vergonha de um poder que trata os pobres como lixo e o orgulho da resistência dos pobres que constituem tudo que é riqueza e valor do Rio de Janeiro e do Brasil. Elas são um estorvo que a elite neo-escravagista continua a sonhar em poder remover para a periferia, em tornar invisível. Mas, elas são também o espaço da dignidade das velhas e novas guardas de pobres que lutam e inventam, resistem e criam.

Em cidades como o Rio de Janeiro, mais do que em outras, as relações de poder e de produção atravessam e são atravessadas pelos embates que dizem respeito às favelas e aos pobres. O grande desafio do bloco de poder – uma mistura sui generis de elites arcaizantes bem representadas pelos grandes meios de comunicação, segmentos institucionais de tipo mafioso (ligados à corrupção e ao tráfico) e setores tecnocráticos (das grandes empresas e do aparelho do Estado) – tornou-se o de regular as vidas dos pobres por meio do controle do processo e do fenômeno de favelização. Por isso, esse bloco de poder se apresenta como um bloco de Biopoder, um poder organizado sobre a vida dos pobres. O grande desafio das lutas populares também passou a ser, com a abertura democrática, a organização dos pobres e a construção de uma forma de representação adequada a essa subjetividade social, uma subjetividade que se expressa e se constitui nas formas de resistência e construção da cidade pelos e para os pobres: nas favelas e nas várias formas de “informalidade”, quer dizer, nas formas de direito constituídas desde baixo, nas ruas, nas redes de socialização dos pobres, completamente separadas do formalismo jurídico do Estado.

A clivagem social e ética parece nítida: o poder, de um lado; os pobres do outro. Porém, uma vez traduzida em termos políticos, essa clivagem não se mantem mais. Os setores “progressistas” (modernizadores, poderíamos dizer) dos dois blocos (o da “direita” e o da “esquerda”) convergem numa visão negativa da pobreza e dos pobres; uma convergência que se traduz, por exemplo, no uso e no abuso – sempre pejorativo – do termo “populismo”. Os pobres são um problema, e se não aceitam as “soluções” tecnocráticas e burocráticas que os “governantes” pensam para eles, é que merecem mesmo a miséria na qual se encontram, e até o risco que correm por persistir em morar nos morros. Ou seja, são vidas que não merecem serem vividas! Emblemática a análise de André Singer (militante do PT) sobre o que ele chama de “lulismo”: um tipo de “bonapartismo” sustentado pela “base sub-proletária” que “não consegue construir desde baixo as suas próprias formas de organização”1.

No Rio de Janeiro, essa “direita” e essa “esquerda” constituíam (e, em parte ainda constituem) as duas faces de uma mesma moeda: a classe média e alta carioca, os ricos, e boa parte do funcionalismo público. Não por acaso, essa convergência aconteceu de fato em 1994, por ocasião de uma “com-juntura” (junção de duas “urgências” = conjuntura) favorável a essa inflexão: por um lado, a necessidade – da parte do poder – de evitar por todos os meios que a experiência operária do PT paulista se radicasse no Rio a partir da vitória eleitoral de uma mulher, negra e favelada (a Benedita), implementando um PT realmente carioca (um PT dos pobres); pelo outro, a opção pelo oportunismo de um político egresso do brizolismo.

Em abril de 1995, César Maia, recém eleito Prefeito do Rio, publica um artigo-programa que nos indica a operação sobre a qual ele governará a cidade ao longo de praticamente dezesseis anos, “Os Dois Rios”. O raciocínio é simples, até simplório: trata-se de afirmar que a clivagem política fundamental não é mais aquela que opõe a esquerda (os pobres) à direita (os ricos e as elites), mas aquela que separa o “Rio Legal” do “Rio Ilegal”. Nesse artigo, Maia usa os piores chavões do marxismo vulgar para estigmatizar simultaneamente os pobres (o lumpesinato) e o assintencialismo (as “bicas d’água” nas favelas). Por trás desse novo tipo de mistificação esconde-se uma adequação ao projeto político de parte das elites cariocas, aquilo que chamamos o bloco do biopoder: no cerne dessa mudança estão os pobres enquanto tais.


Não mais os pobres submetidos à cruel alternativa entre exclusão neo-escravagista ou transformação em massa em trabalhadores – do setor de serviços ou industriais –, mas os pobres enquanto tais, enquanto pobres! Por um lado, passa-se a querer “incluí-los” (vide o programa Favela-Bairro, lançado durante o primeiro governo César Maia, além da privatização de serviços públicos essenciais como a distribuição de eletricidade, telefonia, e educação); por outro lado, assume-se que o conflito de hoje é mesmo aquele que opõe as elites (o bloco do biopoder) aos pobres (a sua potência biopolítica). Na medida em que a elite descobre essa nova linha de enfrentamento, ela trata de inovar e, sobretudo, de mistificar seus termos. Ela encontra aliados no regime discursivo oriundo de duas linhas de produção acadêmica: aquela da antropologia e a da teoria política da violência. Os antropólogos passam – paradoxalmente – a se transformar em darwinistas sociais, ao passo que os cientistas políticos antropologizam os mitos fundadores da teoria do contrato. Todos convergindo numa única afirmação: por causa da ausência do Estado, a condição dos pobres é a do estado de natureza, quer dizer, da guerra dos pobres contra os pobres, ou o “todos contra todos” de Hobbes! O romance etnográfico de Paulo Lins (A Cidade de Deus) será o produto desse sistemático trabalho de esvaziamento de qualquer perspectiva ética da vida e da luta dos pobres. Como mostrou Primo Levi, o mecanismo de redução dos internados nos campos nazistas à condição de escravos é aquele que faz com que as vitimas acabem sentido vergonha delas mesmas.

Essa inflexão é tão poderosa que, por um lado, mantém dentro dela toda uma série de ambiguidades e indefinições; e, pelo outro, tem como resultado certeiro o desaparecimento de fato da esquerda institucional carioca: o PT do Rio passa ser, definitivamente, uma moeda de troca (um troco barato) no jogo político nacional (ao passo que os outros partidos mais ou menos situados num imaginário de esquerda continuam em irreversível declínio, como é o caso do brizolismo, ou na mais total incapacidade de lidar um processo majoritário).

O fato é que, nessa política dos “dois Rios”, houve uma mudança paradoxal. Os pobres foram encarados como novo e fundamental sujeito, mas as políticas que os visavam continuam sendo contraditórias e hibridizadas, até tornarem-se quase esquizofrênicas: a repressão dos pobres (os informais) se articula assim à urbanização da algumas pequenas e simbólicas favelas (o Favela-Bairro).

2) A inflexão da virada da década: a gestão biopolítica do risco

O que está acontecendo, desde a saída de César Maia na virada da década, é mais uma inflexão dentro da mesma hegemonia. Mas, com Eduardo Paes, há forças que querem resolver essa esquizofrenia e, em função do Mundial de Futebol, das Olimpíadas e da evolução do próprio projeto das elites cariocas, emerge uma visão mais nítida do enfrentamento de classe que é preciso travar para assegurar uma base política e metropolitana a um novo ciclo de acumulação capitalista: uma acumulação capitalista que encontra no Brasil dos últimos dez anos uma nova fronteira de rentabilidade que os derivativos financeiros do norte não proporcionam mais.

A centralidade da noção de “risco”, por um lado, é do mesmo tipo que aquela de noções com as de “cidade criativa” (que está mais na “moda” depois da banalização dos temas da cidade “global” e dos “territórios produtivos”). Por outro lado, o uso da noção de “risco” inflacionou-se de maneira vergonhosa por ocasião das chuvas de 5 e 6 de abril de 2010 no Rio de Janeiro. Nesse momento, a gestão do risco não é uma questão geológica (ainda menos urbanística ou filantrópica), mas sim um eixo de organização do biopoder e, por isso, financeira: são as finanças que visam construir seus cenários biopolíticos de acumulação. Ao passo que o risco das “tradicionais” bolsas de valores se tornou desmedido (com a crise do subprime), a procura por aplicações rentáveis volta-se para os países emergentes e para cidades como o Rio de Janeiro. O risco que se quer diminuir é o dos investimentos e esse risco é apresentado pela potência da vida dos pobres, sobretudo quando eles vivem, trabalham e se divertem em áreas que deveriam ser o teatro dessa valorização: os morros da Zona Sul e Santa Tereza, no Centro e a zona do Porto “Maravilha”. A diminuição do “risco” dos investimentos (e não por acaso o Rio recebeu exatamente no mesmo período o “grau de investimento”) implica uma diminuição da potência e da autonomia da vida dos pobres e, de roldão, a expulsão deles para valorizar as vizinhanças. As remoções são na realidade deportações!

A cidade não é mais enxergada apenas como uma máquina urbana que deve saber atrair as firmas, que deve ser “global” para que nelas se localizem as grandes multinacionais e as classes criativas do mais recente chavão sobre empregabilidade e mercado. A cidade é, corretamente, apreendida como novo espaço de valorização e investimento (por isso a exaltação paradoxal dos temas do “risco”). Mas, essa inovação se faz do ponto de vista dos interesses do novo capitalismo, cognitivo, fundiário, financeiro: um capitalismo que se torna rentista, que visa capturar e controlar os fluxos da cooperação social produtiva que desenham as redes metropolitanas. Assim, a cidade é agora enxergada como firma e, sobretudo, administrada como firma. A gestão Paes aparece claramente nesses termos: ela põe em ato um certo ativismo, mas um ativismo dos ricos para expropriar os pobres, uma perspectiva profundamente reacionária. Para apreender essa inflexão, seria preciso aprofundar a análise da dimensão material dos paradoxos próprios das políticas públicas dos últimos quinze anos no Rio de Janeiro.

A mobilização popular das favelas contra as remoções, por uma gestão democrática do risco e mais em geral da cidade, como se depreende nos manifestos e artigos que publicamos a seguir, mostra que os pobres fazem uma análise precisa do que está acontecendo (bem mais lúcida do que as análises ideológicas antiquadas realizadas por alguns intelectuais de “esquerda”) e estão decididos a reafirmar a potência de suas vidas!

Fonte: Global Brasil Revista Nômade

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