maio 10, 2014

"A Copa que já não teve, pelo visto, começou", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Nada mais preocupante para o Partido da Ordem, e nada mais propriamente político, do que a organização da crise, com a conexão de diferentes lutas autônomas — unidas ao redor das muitas pautas do direito à cidade, por um Rio de Janeiro melhor, mais democrático e menos mafioso. O medo tem que mudar de lado. Não podemos deixar que preparem o caminho para a volta da direita, com a mobilização dos medos e a criminalização das greves, lutas e da auto-organização das forças vivas de nosso tempo."
 
A Copa que já não teve, pelo visto, começou
 
aaaagreve-rodoviario



Os rodoviários do Rio conseguiram organizar uma das mais bem sucedidas greves dos últimos tempos. Usando redes sociais e tecendo um arco diversificado de alianças políticas, os rodoviários conseguiram contornar o peleguismo sindical e, de maneira autônoma, ganharam o apoio da maioria dos trabalhadores. O motivo é óbvio. Está na cara que têm convergido na cidade grandes afluxos do capital, mas as pessoas que vivem e fazem o Rio funcionar não veem a cor do dinheiro. Enquanto isso, os preços explodem, especialmente os aluguéis. O banquete não chega na população, espremida por todos os lados em nome dos megaeventos. Como nas greves dos garis (março) e dos petroleiros (ainda em curso), a greve dos rodoviários tensiona um pacto essencialmente desigual, que só consegue ser mantido graças a um consenso cada vez mais autoritário e policialesco, que inclui a coalizão de governo, as principais instituições e os grandes meios de comunicação.

Precisa ficar claro que essa greve não é só contra as empresas de ônibus. É também contra a coalizão de governo. Essas empresas também participam do estado, como parceiros orgânicos e permanentes. A greve é também contra uma forma de governar a cidade, — uma esfera da representação que não representa mais ninguém. Hoje, não faz mais nenhum sentido separar setor público (grupo político que comanda a prefeitura) e setor privado (financiadores das campanhas e projetos, parceiros preferenciais, padrinhos), como se fossem duas dimensões de natureza político-jurídica distinta. A dita “parceria público-privada” não é nenhuma modalidade específica de governança, mas a própria base operativa com que funciona o estado, em 2014. Uma base concreta, por sinal, mafiosa e respaldada pela brutalidade dos agentes da ordem, “legais” e “extralegais”.

O capital chega a ser burro. Desde pelo menos o começo do século passado, o capitalismo aprendeu não somente a conviver com os sindicatos, mas a usá-los para seus próprios fins, incorporá-los como etapa de integração do trabalho e cooptação de suas lutas. Depois de um período inicial de conquistas do trabalhador, geralmente os donos do capital se adaptam, a fim de recuperar as conquistas dentro do sistema. Foi assim que historicamente o sindicato se tornou indispensável para a reprodução das relações capitalistas, ajudando inclusive na maior produtividade (veja, por exemplo, o toiotismo). Quando o sindicato, no entanto, se torna total e abertamente pelego, agindo como mera correia de transmissão do governo, o efeito é o mesmo que se tivessem fechado o sindicato. E um sindicato fechado ao trabalhador significa destruir qualquer instância de mediação para o conflito entre capital e trabalho. O sindicato perde a sua função de amortecer a luta, e de “despolitizá-la” como se fosse uma questão meramente técnico-econômica de definir algum místico “preço justo” da exploração.

O resultado é, como se viu ontem, a ação direta e imediata dos trabalhadores. Uma ação tão mais potente quanto mais capacidade de auto-organização o movimento conseguir construir. Tão mais potente quanto mais souber relacionar-se com outras lutas igualmente autônomas e imediatas por direitos. Se o sindicato deveria servir para mediar o conflito entre capital e trabalho, enquadrando a insatisfação e o desejo como “demandas de categoria”, supostamente “apolíticas”; a luta direta e autônoma liberta as demandas da categoria e, abrindo-se ao movimento mais geral de lutas da cidade, politiza a manifestação. Não por acaso, os meios de comunicação — que também participam do estado, sobretudo no poder punitivo — corram para acusar a greve de ter “fundo político” ou ser “organizada”, querendo com isso dizer que ela seria perigosa. Sabe muito bem como a maior força da greve está na organização autônoma que assumiu, na força de conversão do “espontaneísmo” das insatisfações e desejos em ação coletiva e com escala. E não à toa, também, deprecie sistematicamente as ligações entre o movimento e outros grupos políticos já existentes. Porque é aí mesmo, nessa miscigenação selvagem, que as demandas acabam escapando das “categorias”, e a governança é ameaçada em seus esquemas público-privados.

Desde as jornadas de junho de 2013, formou-se um “Partido da Ordem”. À semelhança do que ocorrera nas revoluções de 1848, na França, esse partido representa uma coalizão 
contrarrevolucionária que mobiliza as instituições da república e os principais meios de comunicação para desqualificar, criminalizar e eliminar todas as formas de movimento social, autonomia e luta políticas. Marx, no 18 brumário de Luís Bonaparte, via-o como expressão do “pavor burguês pelo fim do mundo”. Essencialmente moldado como reação à crescente mobilização popular no período pós-revolucionário, o Partido da Ordem “concretiza-se em brutais intervenções policialescas da burocracia, da polícia e dos tribunais.” Uma depois da outra, vão sendo caçadas e destruídas as organizações. O que os membros do Partido — pequeno-burgueses, elite burocrática, empresários da cidade — não se dão conta, contudo, é que na esteira da repressão se dissolvem também todas as conexões entre as redes e movimentos sociais e o próprio partido, que termina por se alienar da população. Se em cada greve e em cada protesto, os participantes são tachados de vândalos, chega uma hora que os “vândalos” vão ser maioria. O resultado histórico foi um golpe da direita monárquica, encabeçada pelo sobrinho de Napoleão Bonaparte que, mediante pautas populistas, se aliou diretamente às bases. O Partido da Ordem estava impotente e dispensável, tendo preparado as condições políticas para sua derrocada por um grupo medíocre. Acabou dissolvido e seus líderes exilados, enquanto Luís Bonaparte dava por encerrada a segunda república francesa para ser coroado, no ano seguinte, imperador.

Nada mais preocupante para o Partido da Ordem, e nada mais propriamente político, do que a organização da crise, com a conexão de diferentes lutas autônomas — unidas ao redor das muitas pautas do direito à cidade, por um Rio de Janeiro melhor, mais democrático e menos mafioso. O medo tem que mudar de lado. Não podemos deixar que preparem o caminho para a volta da direita, com a mobilização dos medos e a criminalização das greves, lutas e da auto-organização das forças vivas de nosso tempo.



PS. Para uma leitura do PT, depois de junho de 2013, como se comportando igual ao Partido da Ordem, ver editorial da Revista Lugar Comum, n.º 40.

Fonte: Quadrado dos Loucos

Nenhum comentário: