maio 24, 2014

"O Super-Homem-Cordial* está solto nas ruas!", por Ricardo Gomes

PICICA: "É preciso saber quando ‘os acordes dissonantes se incorporaram ao som dos imbecis’, é preciso saber quando certas formalizações políticas se tornam ultrapassadas, ou pior, quando certas formalizações se tornam obstáculos para o fazer democrático. Esse combate pelo avesso que deve ser travado contra as velhas institucionalizações, sacralizações, formas políticas apodrecidas, essencialismos e suas variantes violentas e burocráticas é justamente o que toma as ruas das diversas cidades do Brasil. Efetivação, sem mediação, da multiplicidade democrática contra toda estrutura sufocante e parasitária do capital. O Estado diante desta mesma estrutura ou se submete livremente ou arma acordos patrocinados pelas mais toscos argumentos neo-desenvolvimentistas, nacionalistas, progressistas, enfim, todo arcabouço de uma esquerda velha, covarde e impotente. Velha, covarde e impotente por que não consegue se livrar de velhos paradigmas industriais que, além de não serem mais a tendência geral do capital, não é, sobretudo, a tendência geral das possibilidades positivas do trabalho vivo."O Super-Homem-Cordial* está solto nas ruas!

Frame do vídeo do Coletivo Linhas de Fuga sobre a greve da educação.
Frame do vídeo do Coletivo Linhas de Fuga sobre a greve da educação.

Por Ricardo Gomes
Ano 413 da degustação do Bispo Sardinha (1967 no calendário romano).

Em torno do tropicalismo rugiam leões um tanto quanto nostálgicos e ressentidos. Os leões se dividiam em alguns tipos ou espécies. De um lado rugidos contra a dessacralização do trio estático, violão, cavaco e tamborim, que supostamente havia descido o morro e invadido o asfalto. Já naquela altura dos acontecimentos existia quem assegurava que ocorria na verdade outra coisa. Segundo estes, contra a sua vontade, este trio havia se tornado peça de enfeite em casas bem comportadas. Mas contra isso os adoradores do trio estático não se levantavam, ou melhor, até contribuíam, já que afirmavam um tipo de uso essencialista dos instrumentos em questão, o que de alguma maneira está implícito em todo uso paralisado dos instrumentos. De outro lado rugidos contra as imoralidades macunaímicas, a exibição da exuberância corporal e de uma suposta degradação moral que só certo humor/amor pode destravar. Ora, amar Vicente Celestino tudo bem, mas ao mesmo tempo, amar grupos de jovens do iêiêiê de roupas exóticas e pedaços de corpos a mostra, amar a transparência da ainda inocente cultura de massa selvagem e ainda amar os heterônimos e as poesias desmascaradoras dos confortos matinais, ai ai ai ais, assim já é demais. E a poesia concreta, a sua outra predileta!!?? Se ainda fosse um amor por vez. Não, a tropicália amou tudo de um vez e lançou seu corpo sobre o tempo com a força destes amores.

Dessacralização absoluta, quase perigosa. O curto tempo de existência da tropicália lhe privou da necessidade do uso da prudência. Uso muito útil a movimentos como este.

Mas eis que o rugido que mais incomodava e excitava o tropicalismo era o rugido dos leões-zumbis, parasitas. Aqueles que defendiam a modernidade ‘deitada eternamente em berços esplêndidos’ e estáticos da Bossa Nova. Símbolo maior do progresso cultural brasileiro a Bossa Nova, movimento que afetou de maneira inconteste todos os tropicalistas em todos os sentidos possíveis, havia se tornado o ponto final deste progresso. Dentro da chamada linha evolutiva da musica brasileira não era mais permitido nenhum tipo de movimentação que recolocasse a força inventiva da nossa musica pra girar, ‘oh girando, oh girando/é vermelho’. Não só era proibido girar esta roda/deslocamento/girando/é vermelho como, segundo as regras difusas da musica brasileira da época, deveríamos regredir. Voltar aos velhos sambas, que no fim das contas nunca haviam sumido. Pois bem, a voz do morto ganhou corpo e o fato é que o tropicalismo não se calou diante de nenhum dos rugidos.

Ora, nesta situação não se trata só de ‘adequar a composição política à nova composição técnica do trabalho’1 ou da estética, mas sim, perverter as possibilidades que serviam para compor qualquer juízo de valor estético, ou seja, atacar as condições de possibilidade das definições. Desdobremos.

Numa conversa entre Augusto de Campos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, o primeiro conta como a institucionalização, burocratização e hierarquização pode atingir processos imanentes e abertos. Mas conta também como se colocar diante disso, ou melhor diante e para além disto

“Isso que aconteceu com vocês é mais ou menos simétrico ao que ocorreu com nossos músicos eruditos de vanguarda. Aquilo que foi e é o João Gilberto para vocês é o Webern para a musica erudita moderna. Foi chegando um momento em que o estilo serial pontilhista post weberiano, antes altamente informativo, foi-se tornando redundante. Então os nossos músicos – Willy Corrêa de oliveira, Gilberto Mendes, Rogério Duprat, Damiano Cozzela – partiram para aquilo que Décio Pignatari chamou de ‘luta pelo avesso’. Assim, quando Eleazar de Carvalho veio apresentar como novidade, em 1966, um concerto de musica de vanguarda no Teatro Municipal de São Paulo, Décio, Rogério, Willy e Cozzela subiram ao palco e interviram na apresentação de Stratégies de Xenaquis, cantando o Juanita Banana. Não se tratava de molecagem. Era uma intervenção, crítica, que introduzia um dado imprevisto no ‘acaso’ controlado (totalmente ‘previsto’ pelos músicos brasileiros) da musica aleatória do compositor grego. Naquele momento e naquele contexto, a composição altamente técnica e elaborada de Xenaquis não funcionava como vanguarda. É o mesmo impulso que fez vocês tomarem posição contra o ‘resguardo’ da Bossa Nova. No momento em que a vanguarad institucionalizada se cobria de uma seriedade antiliberdade foi preciso combate-la pelo avesso.”2
 
É preciso saber quando ‘os acordes dissonantes se incorporaram ao som dos imbecis’, é preciso saber quando certas formalizações políticas se tornam ultrapassadas, ou pior, quando certas formalizações se tornam obstáculos para o fazer democrático. Esse combate pelo avesso que deve ser travado contra as velhas institucionalizações, sacralizações, formas políticas apodrecidas, essencialismos e suas variantes violentas e burocráticas é justamente o que toma as ruas das diversas cidades do Brasil. Efetivação, sem mediação, da multiplicidade democrática contra toda estrutura sufocante e parasitária do capital. O Estado diante desta mesma estrutura ou se submete livremente ou arma acordos patrocinados pelas mais toscos argumentos neo-desenvolvimentistas, nacionalistas, progressistas, enfim, todo arcabouço de uma esquerda velha, covarde e impotente. Velha, covarde e impotente por que não consegue se livrar de velhos paradigmas industriais que, além de não serem mais a tendência geral do capital, não é, sobretudo, a tendência geral das possibilidades positivas do trabalho vivo. Contra isso happenings e performances políticas coletivas e ao mesmo tempo árduo trabalho de trocas intensas e construções inesperadas. Combate constituinte que a partir de um amor desmedido pensa e experimenta novas organizações sociais. Enfrenta a regra estabelecida da estatização dos assassinatos dos pobres e pretos, fazendo multidão com estes, entrando em processos de desestabilizações dos lugares e locais pre-concebidos e sentido a cidade em seu pulsar rápido e quase desesperado. Enfrenta o recuo de um governo que foi atravessado pelas brechas positivas que criou, mas depois, entre o cheiro da potencia polifónica e multifacetada e o odor da repetição nostálgica de um aparelho duro e civilizado, se lançou neste aparelho atrás de um mundo primeiro e único, o primeiro mundo como projeto futuro sempre adiado. Quem entende??!! Querer ser primeiro mundo quando o primeiro mundo desejado afundou vertiginosamente, disparando, na queda, contra imigrantes e outros precários. Este combate precário e camaleônico investe em sua força inovadora. E o Brasil, quem diria, pode virar vanguarda, mas sem pretensão de impor nada. Até hoje não há relatos de um momento pré-Copa do mundo de futebol com tantas mobilizações políticas, deixando um rastro de ineditismo revolucionário. Sem pedir licença, afinal ‘Sem nós a Europa não teria se quer a sua pobre declaração dos direitos dos homens’3. Aqui o espirito rebelde tem corpo. Este corpo é black, negro, potente e se afirma na luta. Não chora sua vida nua, grita sua máscara e voa contra as vidraças e os acordos sanguinários, se multiplica nas redes e canta nas ruas um hino altivo, ‘porque somos fortes e vingativos como o Jabuti’3. Eis o Super-Homem-Cordial, aquele que insistindo afirmava o instinto de preservação da vida e, no dia-a-dia, ousava seguir construindo formas e mais formas de outros mundos possíveis e cada vez mais necessários, seja nos diversos coletivos das comunidades seja em outras tantas ações que atravessam a cidade.

Já começamos a ver os frutos dessa vingança. Como é o caso das diversas greves por fora dos sindicatos que sempre desembocam em encontros com outros tantos coletivos e movimentos de tipo novo, criando o meio geral para a profusão de formas e conteúdos das novas instituições. Ou ainda o caso do fortalecimento das lutas de outros movimentos (como MTST) que por fora dos partidos tentam fazer a política andar, evidenciando as relações excludentes entre capital e Estado e materializando meios de avançar diretios que problematizem diretamente esta relação4.

Por isso nunca foi preciso chamar atenção para uma suposta necessidade de tropicalização dos protestos. Eles sempre foram tropicalistas porque sempre enfrentaram de frente as condições de possibilidade dos modelos e lugares políticos pre estabelecidos, exigindo a cada ida para rua que alterações e alternativas reais deveriam ser postas a frentes dos acordos reacionários. Isso se expressa diretamente nas coreografias circenses da multidão contra a perseguição policial, nos diversos símbolos pop’s criados e lançados com o devido veneno para os públicos, na quebra de hierarquias estabelecidas e, enfim, no enfrentamento das institucionalizações broxantes da ação política. Está claro, ‘se formos em políticas como já fomos em estéticas estamos feitos’, além disto, a ‘terra é do homem não é de deus nem do diabo’, ‘só me interessa o que não é meu’, portanto, ‘não tem arrego’, ‘se a passagem não abaixar o Rio vai parar’, e a copa que já não teve começou há muito tempo, o que indica ser necessário generosidade e criatividade, para que a copa das greves selvagens e das lutas descentralizadas e populares possa se desdobrar de maneira imanente e consequente. A paz é a criação de outros mundos tropicais-totais oh girando/é vermelho. Dar preguiça de criar, mas no final e no meio é bem gostoso!!!!

* Super-Homem-Cordial é uma criação dos artistas Negro Leo (https://www.facebook.com/groneleo?fref=ts) e Luis Augusto. Dois amigos que sacaram a potência primeira do homem-cordial nas resistência necessariamente inventivas das vielas, mascaras e para além

1-           Cesar Altamira. Marxismos do Novo Século, pag 129
2-           Augusto de Campos. Balanço da Bossa, pag 191 e 192
3-           Oswald de Andrade. Manifesto Antropofágico.
4-           O MTST é um movimento que luta por moradia e organizou um evento em São Paulo com mais de 20,000 pessoas reivindicando ações específicas na área de habitação social. 

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=736522679719399&set=a.466755456696124.100595.464790330225970&type=1&theater

Fonte: PegaroSolComaMão

Nenhum comentário: