maio 14, 2014

"Os rios enchem como nunca, o rodoviarismo chega ao fim", por Lúcio Flávio Pinto

PICICA: "O maior investimento público-privado está contido no Plano de Expansão de Energia. Nos seus 10 anos de vigência, ele pretende construir 30 grandes barragens na Amazônia até 2020, à média de uma por quadrimestre. No planejamento vizinho, estão previstas 80 barragens na Amazônia Andina, com potencial para 100 mil MW, quase o que o Brasil produz hoje.

Além de colocar as empresas estatais e os fundos de previdência na composição societária das concessionárias de energia, o governo federal transformou o BNDES numa mãe financeira desses empreendimentos. Foi assim em Jirau e Santo Antonio e será ainda mais assim em Belo Monte. Quando o custo total da usina estava em 19 bilhões de reais, o banco assegurava, em abril de 2010, financiar R$ 13,5 bilhões à hidrelétrica, mais da metade do que aplicou (US$ 25 bilhões) na Petrobrás. O capital do banco era então de R$ 54 bilhões, o que limitava seu comprometimento, que só pode chegar a 25% para um único empreendimento. O orçamento de Belo Monte já é estimado em R$ 30 bilhões.

Como essa diretriz se mantém, sob ritmo forte de execução, se há um clamor por mais estudos e melhor adequação às condições sociais e ambientais? A resposta está no grau de poder que esses grupos detêm. A Folha de S. Paulo constatou, com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral, que de 2002 a 2012, as empresas de infraestrutura (madrinhas do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento da presidente Dilma Rousseff) foram as que mais que contribuíram para as campanhas eleitorais.

Cinco construtoras, três bancos, um frigorífico (o inefável Friboi) e uma metalúrgica (a Gerdau) compareceram com um bilhão de reais para os partidos que partilham (ou disputam de fato) o poder. A do ex-ministro da educação, Fernando Haddad, do PT, para a prefeitura de São Paulo, foi a mais cara de 2012."



Os rios enchem como nunca, o rodoviarismo chega ao fim

 

LÚCIO FLÁVIO PINTO

No dia 25 de abril, as nove turbinas já instaladas na hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, voltaram a funcionar. Elas ficaram paradas durante dois meses e uma semana, fato inédito na história da geração de energia de fonte hídrica – no Brasil e talvez no mundo. Porque justamente nesse período o Madeira, que é o principal afluente do rio Amazonas, atingiu volume recorde de água em todos os tempos, desde que a sua vazão começou a ser registrada. Sua descarga chegou a 60 milhões de litros de água por segundo (a média das cheias anteriores era de 18 milhões de litros). Seria o momento de geração a plena carga, de maior faturamento.

A inusitada ordem de paralisação da usina partiu do Operador Nacional do Sistema Elétrico, o ONS, em Brasília. Ao contrário do que foi interpretado, a medida não visava proteger Porto Velho, a capital de Rondônia, localizada sete quilômetros rio abaixo da barragem. É verdade que a turbinagem da água provoca efeito a jusante, com marolas que teriam incrementado a ação do rio sobre a orla da cidade, que sofreu a maior cheia da sua história em função do volume de água do Madeira. Duas mil famílias ficaram desabrigadas no perímetro urbano e mais de 10 mil na área rural do Estado.

Esse efeito a jusante, porém, era bem menos intenso do que rio acima. A 117 quilômetros de Santo Antonio, os engenheiros da hidrelétrica de Jirau pressentiram a destruição da ensecadeira, uma barragem provisória de terra e rocha que permite a concretagem da barragem a seco. O remanso provocado pelo represamento do rio em Santo Antonio estava exercendo uma pressão muito forte sobre a estrutura, ameaçando destruí-la e alagar a área onde o paredão de concreto estava sendo levantado.

Durante dois meses essa tensão se manteve. Provavelmente se as comportas de Santo Antonio continuassem fechadas, para desviar água para as turbinas produzirem, a ensecadeira teria desmoronado. A paralisação se tornou imperiosa, mesmo no momento crítico de geração de energia na parte centro-sul e sudeste do país, onde os reservatórios das usinas estavam em nível crítico e o abastecimento estava sujeito (como ainda está) a racionamento.

Santo Antonio é a sétima maior hidrelétrica do país e a terceira em geração de energia firme (a média de produção ao longo do ano). Com as nove turbinas, sua capacidade é de 640 megawatts, o que seria suficiente para atender 80% do consumo de todo o Pará. O governo já autorizou o funcionamento de 26 turbinas das 44 que serão instaladas até a conclusão da implantação da usina. Em Jirau a produção no momento é de 450 MW.

A hidrelétrica de Jirau começou a gerar um ano e meio depois (em julho de 2013) e tem, nominalmente, 200 megawatts a mais do que Santo Antonio. Esta, no entanto, pelo critério mais importante de mensuração, dispõe de 2,2 mil MW firmes durante o ano inteiro, enquanto essa potência em Jirau é de 1,9 mil MW.

A energia média em Santo Antonio tem o melhor aproveitamento dentre todas as grandes hidrelétricas do Brasil: é de 70% contra 61% de Itaipu (com seus 14 mil MW nominais), 57% de Jirau, 49% de Tucuruí e – o maior de todos os contrastes – apenas 40% de Belo Monte, no rio Xingu/Jirau e Santo Antonio somam 4,1 mil MW médios e Belo Monte (com 11 mil MW de potência máxima), apenas 4,4 mil MW.

Por isso as questões que afetam em conjunto as duas hidrelétricas têm interesse muito maior do que o estadual e o regional. Ainda mais porque elas foram concebidas para se tornarem supridoras dos principais mercados de energia do país, em especial São Paulo. O Estado mais rico da federação se liga às duas usinas pela maior linha de transmissão de energia do mundo, com 2,3 mil quilômetros de extensão.

Mesmo assim, a cheia milenar do rio Madeira não recebeu a atenção devida da imprensa nacional e foi mal abordada pela mídia local. Muitas e graves questões estavam e continuam em causa. Algumas diretamente relacionadas às duas barragens. Ficou demonstrado, por exemplo, que elas não formam projetos integrados. Pelo contrário, alguns dos seus aspectos são colidentes.

As reclamações de Jirau, de que Santo Antonio opera numa cota mais alta do que a de projeto, parecem ter-se confirmado no momento em que a ensecadeira da barragem rio acima ficou ameaçada pelo funcionamento das turbinas de Santo Antonio. A paralisação não seria necessária se o problema fosse a jusante, sobre Porto Velho. Sendo uma usina com pequeno reservatório, quase a fio d’água, Santo Antonio poderia continuar a funcionar mesmo com a água passando por cima da barragem.
Para a população da capital, numa circunstância de cheia recorde, o melhor mesmo seria que as duas barragens fossem mais altas para reter mais água. Assim elas poderiam manobrar seus reservatórios para que eles impedissem a vazão violenta do Madeira a partir do trecho represado. A enchente causaria menos danos do que já provocou em Rondônia (prejuízo superior a um bilhão de reais), talvez não tivesse deixado o Acre completamente isolado do restante do Brasil pela primeira vez e não continuasse a levar mais danos até o Amazonas pelos próximos dois meses.

Um rio não serve apenas – e, em certas condições, nem principalmente – para gerar energia. Ele é um meio de vida para aqueles que vivem às suas margens. Mas esse é um aspecto secundário ou ignorado nos projetos de aproveitamento econômico. A grande cheia deste ano aponta para um problema que poderá se tornar gravíssimo no futuro. Ao chegar ao fim da linha, o Madeira despeja todos os anos 750 milhões de toneladas de sedimentos no Amazonas.

Além de ser o maior contribuinte de água para o maior rio da Terra, é também o seu principal fornecedor de material em suspensão. Para os ribeirinhos essa contribuição se traduz em nutrientes para o solo, adubado todos os anos. Mas os sedimentos estão sendo retidos no pé da barragem. Embora ela seja baixa, a retenção é cumulativa. Diminui a lâmina d’água rio acima, ameaçando a potência energética da usina, mas também retém sedimentos que não vão mais adubar o curso inferior. A agricultura e a própria vida sofrerão enorme prejuízo. O volume de sedimentos retidos na barragem de Jirau é 24% maior do que o da barragem de Assuã, que esterilizou o delta do Nilo, no Egito.

O projeto original da hidrelétrica de Tucuruí tinha a solução técnica para esse problema: foi previsto um descarregador de fundo na estrutura da barragem. Mas essa abertura foi abandonada porque era considerada muito cara e envolvia questões de segurança da estrutura. No caso de Santo Antonio e Jirau, o mecanismo podia ter sido implantado a menor custo e sem o potencial de risco apontado em Tucuruí. Foi um dos vários erros dos projetos.

A implantação das duas obras prossegue a plena carga indiferentemente a esses “detalhes”, embora o Ministério Público Federal tenha conseguido apoio judicial para a revisão e reelaboração dos estudos de impacto ambiental das duas usinas. Sem o acompanhamento atento da opinião pública, entretanto, essas exigências podem não ter o melhor resultado. E a imprensa nacional se manteve ao largo da cheia deste ano. Talvez porque não tenha havido mortes, tão comuns em regiões com relevo mais movimentado, como São Paulo, Rio de Janeiro ou Minas Gerais, onde qualquer deslizamento é fatal para seus moradores.

No entanto, a cheia deste ano apresentou elementos novos para uma situação que é comum. Os moradores das beiras de rios amazônicos se adaptaram, ao longo de séculos e gerações, ao movimento do rio, que enche durante seis vezes e vaza ao longo da outra metade do ano. Em 2014 a velocidade e a altura das águas do Madeira foram excepcionais, alagando e destruindo muito mais do que em qualquer outra cheia anterior.

Não há dúvida que as duas barragens já interferem nesse fenômeno natural. Mas ainda não há informações suficientes para identificar a amplitude dessa interferência e sua intensidade. É uma relação ainda recente. Há outros elementos de ponderação que podem atenuar o efeito da ação humana sobre esse portentoso ciclo da natureza. Há hipóteses relativas ao degelo dos Andes, ao maior aquecimento do clima e ao regime de chuvas. Mas é evidente que esses fatores têm que ser cruzados com a observação sobre os efeitos do barramento artificial do rio.

Não foi só o Madeira que encheu mais do que o previsto em 2014. Outros rios, como o Purus e o Juruá, na margem direita do Amazonas, ou o Jari, do lado esquerdo, tiveram comportamento excepcional. É possível que o Negro também evolua acima de todas as marcas e igualmente o próprio Amazonas, cujo ciclo de enchimento irá até junho e julho. Os órgãos públicos precisam estar atentos a todos esses elementos de um conjunto de vida que ainda escapa à percepção técnica de quem decide sobre a realização de obras na Amazônia.

Em Humaitá, o município mais atingido pela enchente do Madeira, no sul do Amazonas, a comunidade do Paraizinho perdeu quase todo o seu patrimônio material, das casas às roças. Sua maior reivindicação agora é conseguir um flutuante no qual instalaria moradia coletiva até que as águas baixassem. Na seca, o flutuante viraria porto, suprindo uma carência local. Mas ninguém está ao alcance da comunidade.

Seria por se tratar de um pedido primitivo para uma realidade inviável? Na Holanda, não. Depois de décadas, bilhões de dólares e 40 mil mortos para conquistar terra sobre o mar do Norte, formando um terço do país em “polders”, a Holanda está devolvendo essa terra criada ao mar e montando uma civilização sobre palafitas. Casas, prédios e fábricas estão sendo atados a pontos de amarração para subir e descer conforme o movimento diário das marés. Um projeto de civilização para um planeta em mutação.

Não há nada nem de longe que se equivalha a essa iniciativa dos holandeses, que conhecem muito mais a água do que os dirigentes de uma região onde está a maior bacia hidrográfica do mundo. As realizações são bitoladas por um planejamento viciado. Não há iniciativas de antecipação à presença humana e de conciliação com a natureza.

O maior investimento público-privado está contido no Plano de Expansão de Energia. Nos seus 10 anos de vigência, ele pretende construir 30 grandes barragens na Amazônia até 2020, à média de uma por quadrimestre. No planejamento vizinho, estão previstas 80 barragens na Amazônia Andina, com potencial para 100 mil MW, quase o que o Brasil produz hoje.

Além de colocar as empresas estatais e os fundos de previdência na composição societária das concessionárias de energia, o governo federal transformou o BNDES numa mãe financeira desses empreendimentos. Foi assim em Jirau e Santo Antonio e será ainda mais assim em Belo Monte. Quando o custo total da usina estava em 19 bilhões de reais, o banco assegurava, em abril de 2010, financiar R$ 13,5 bilhões à hidrelétrica, mais da metade do que aplicou (US$ 25 bilhões) na Petrobrás. O capital do banco era então de R$ 54 bilhões, o que limitava seu comprometimento, que só pode chegar a 25% para um único empreendimento. O orçamento de Belo Monte já é estimado em R$ 30 bilhões.

Como essa diretriz se mantém, sob ritmo forte de execução, se há um clamor por mais estudos e melhor adequação às condições sociais e ambientais? A resposta está no grau de poder que esses grupos detêm. A Folha de S. Paulo constatou, com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral, que de 2002 a 2012, as empresas de infraestrutura (madrinhas do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento da presidente Dilma Rousseff) foram as que mais que contribuíram para as campanhas eleitorais.

Cinco construtoras, três bancos, um frigorífico (o inefável Friboi) e uma metalúrgica (a Gerdau) compareceram com um bilhão de reais para os partidos que partilham (ou disputam de fato) o poder. A do ex-ministro da educação, Fernando Haddad, do PT, para a prefeitura de São Paulo, foi a mais cara de 2012.

O incremento da hidreletricidade, que responde por 75% da matriz energética nacional, é decidida (autoritariamente) quando começa a mudar também a matriz de transporte. A era do rodoviarismo chega ao fim, depois de meio século de devastação. Após incidir por tanto tempo nesse modal irracional, as grandes empresas do agronegócio passam a investir, com ou sem a colaboração e o subsídio do governo, em hidrovias e ferrovias.

É uma ofensiva de enormes proporções. Portos graneleiros se multiplicam, o último deles, em Barcarena, a 50 quilômetros de Belém, no Pará, inaugurado pela multinacional Bunge com a presença da presidente Dilma Rousseff. Já é o seu segundo maior terminal no Brasil. Em breve, será o primeiro. A Cargill se expande em Santarém, no Pará, e a Maggi em Itacoatiara, no Amazonas.
As três poderão estar juntas na abertura de uma ferrovia de Sinop, no norte de Mato Grosso, até Miritituba, no Tapajós paraense. Daí, por rio, cada uma para o seu terminal. E, a partir daí, para o mar, o destino de sempre dos melhores produtos amazônicos, que costumam deixar na terra nativa o sopro e o cheiro do que exportam: a riqueza local.

Lúcio Flávio Pinto, 64, é jornalista desde 1966. É sociólogo, formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1973). Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém/PA desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras. Leia mais sobre o perfil dele em Colunistas.

Fonte: Amazônia Real

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