junho 12, 2014

"(Não) Vai Ter Copa?", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Quando o desenvolvimentismo buscou retomar o futebol e, também, trazer a Copa do Mundo como forma de coroar a hegemonia de seu projeto, ele fracassou porque o espetáculo em si não é acessível o suficiente para ser uma "festa nacional": também porque os efeitos simbólicos são menores pela maneira que o futebol é incomum para as pessoas hoje, ou é comum apenas do modo que um serviço pelo qual pagamos o é. Aí, a Copa se torna um entrave. Uma frustração. Ainda mais quando a "economia" parece esfriar, não correspondendo às nossas expectativas, quando o sistema político parece não funcionar; diante do inexplicável, do inquietante, surge um mantra que começa a se espalhar: a culpa é da Copa. 

É um sentimento de ausência que explodiu em condições específicas; a falta de boas escolas, bons hospitais ou os altos preços da moradia, do transporte e outros serviços não se devem a algo que não custou sequer 1% do PIB brasileiro de um ano; a exploração cotidiana do capital, nem se fala, certamente pesa mais do que isso. Mas a Copa se torna um elemento subjetivamente magnetizador de angústias determinadas e indeterminadas, muito além do problema que ela representa objetivamente -- mas também pelo que ela representa objetivamente. Some-se isso à maneira como a militarização da segurança repercute junto ao imaginário das vanguardas políticas do país, traumatizadas com a ditadura, e temos uma tragédia. Nem o peso da camisa canarinho do outro lado, por si só, dá conta.

O que esperar da Copa que se inicia amanhã? Podemos dizer que já não teve Copa, pela fragilidade da mobilização em torno dela, podemos dizer que haverá Copa, pois o otimismo das pessoas cresce à medida que o torneio se aproxima, podemos dizer que houve Copa, embora tudo isso, mas nada disso importa: entre um niilismo conservador anti-Copa, aquele fundado no argumento de que não seríamos dignos de realizar o torneio ou porque teremos estádios no interior do país, e o ufanismo militar que garantirá a Copa nem que seja à bala, existe uma coincidência no grau zero de intensidade. Há potência no #NãoVaiTerCopa nas ocasiões em que ele é colocado como um chamado ao impossível -- antagonizando determinados desmandos."

(Não) Vai Ter Copa?



Maracanaço -- Final da Copa de 50

Ou Notas sobre a Economia Política da Copa



A Copa do Mundo, normalmente, traz uma única grande novidade a cada quatro anos: faz de todos os brasileiros torcedores de futebol, unindo quem o é de verdade a quem resolve sê-lo apenas quadrienalmente. Para os que desconhecem as sutilezas da regra do impedimento, pelo menos o "dever patriótico" compensava o estranhamento com festa. Desta vez, no entanto, as coisas foram diferentes: a Copa deixou de ser assunto esportivo -- e indiretamente político -- para se tornar uma questão propriamente política, uma vez que o Brasil sediará a Copa 64 anos depois de ter abrigado o primeiro mundial pós-guerra. E tome polêmica. O que era um largo apoio difuso em um primeiro momento, foi se tornando pouco a pouco motivo de celeuma nacional. A Copa perdeu apoio, logo, quem fundava seus argumentos pró-Copa no fato de que a maioria desejava, perdeu o rumo. À direita e à esquerda, ser contra o mundial se tornou bandeira, pelas mais variadas questões. Qual o enigma desse processo?


As Jornadas de Junho acabaram, no calor da repressão, dando vazão ao #NãoVaiTerCopa. As opiniões, por fim, se dividiram: num primeiro momento, 4 entre cada cinco brasileiros eram favoráveis à Copa, depois eram dois terços, agora não se sabe mais. Um misto de obras atrasadas, não terminadas ou simplesmente não iniciadas, o catastrófico modelo de "segurança" do torneio -- regado à militarização, drones, repressão contra manifestações etc -- e declarações infelizes de figuras notórias do futebol nacional escolhidas se sucederam -- incluindo nomes como Pelé, Ronaldo ou mesmo a neta do ex-dirigente JoãoHavelange.

A Copa se tornou, pois, o que nunca ninguém poderia esperar: um problema. E um problema que transcende ao governo federal que aí está, mas perpassa inclusive todos o sistema político vigente: não só porque inclui a responsabilidade de prefeitos e governadores dos mais diversos partidos, nem apenas em virtude da confusão político-partidária, mas, sobretudo, em razão da contestação à Copa ter atingido a função política e econômica do futebol no nosso país e, possivelmente, no mundo todo -- e  a própria FIFA, antes intocável, entrou na mira. A esse respeito, cabem algumas considerações.

O esporte coletivo é a grande novidade da modernidade. Ele supre uma certa função que a guerra pré-industrial tinha: servir igualmente como diversão dos homens adultos. Com a guerra se tornando um processo de aniquilação total, ela, obviamente, perdeu sua utilidade lúdica. Isso abriu espaço para um novo espaço cultural, uma guerra representada dentro de regras mais ou menos pacíficas: o esporte coletivo, ao contrário do individual, pressupõe um tipo de disputa territorial fundado na integração de vários corpos -- não no desempenho de um corpo individual em relação a outrem --, algo entre a representação, a realidade e a disputa real. Estar num campo ou numa quadra é menos real do que uma guerra, mas é mais real do que uma encenação teatral.

Nesse contexto, o futebol prosperou pelo mundo. Sobretudo porque sua dinâmica é aberta para vários biotipos diferentes. Altos, baixos, asiáticos, africanos ou europeus, todos podem disputar uma partida de futebol de alto rendimento. Num país de mestiços como o Brasil, o futebol só poderia se expandir e se enraizar. Mas não vivemos mais o ápice do esporte bretão no nosso país. Uma das causas é a transformação brutal das cidades, o desaparecimento dos campos de várzea, ou mesmo profissionais, por conta da superlotação e sobrevalorização das cidades -- e também das terras --, a dinâmica de vida e trabalho de um brasileiro do século 21º não lhe permite mais se dedicar ao futebol, a profissionalização do futebol e seu impacto sobre o mundo do futebol amador etc etc. O futebol já não é algo tão presente na nossa vida como era, por exemplo, em 1950: ele é agora espetáculo altamente profissional, restrito, exclusivo e excludente.

O futebol, enquanto fenômeno de massas, deixa de ser uma generalidade e passa a ser uma especificidade social e cultural do brasileira. Uma especificidade importante, mas especificidade: aqueles para quem o futebol é atividade comum são cada vez mais um número menor, mas possivelmente sabem e consomem mais do que um brasileiro da era de ouro do nosso futebol -- mas sabem mais informativamente, menos performativamente, pois é cada vez mais incomum praticar o futebol e vivenciar o mundo do futebol. O Brasil dos campos de várzea está para o Brasil que sedia a Copa-espetáculo como a Europa da propriedade comum estava para a Europa industrial e pós-industrial. O cercamento, meus caros, foi feito.

A partir daí, o futebol perde o aspecto comum que, por outro lado, permitia que o Estado se utilizasse dele em tempos remotos. Em 1970, o futebol não era mercadoria, mas justamente isso, ser expressão cultural e não elemento econômico-mercantil, é o que permitia o regime militar usa-lo simbolicamente para legitimar-se e, por outro lado, organizar o trabalho: sim, trabalhadores, precisam de válvulas de escape sociais para suportar sua vida -- então o futebol da era industrial era espetáculo e experiência que servia como elemento político a serviço da manutenção do sistema econômico.

Com o neoliberalismo, a arte de governo própria do capitalismo pós-industrial, o futebol se torna atividade propriamente econômica -- tudo bem, nutrir a expectativa de ter dinheiro para pagar o pay-per-view ainda anima trabalhadores a trabalhar, mas o futebol agora serve à economia como elemento econômico, ele faz parte do circuito.

Quando o desenvolvimentismo buscou retomar o futebol e, também, trazer a Copa do Mundo como forma de coroar a hegemonia de seu projeto, ele fracassou porque o espetáculo em si não é acessível o suficiente para ser uma "festa nacional": também porque os efeitos simbólicos são menores pela maneira que o futebol é incomum para as pessoas hoje, ou é comum apenas do modo que um serviço pelo qual pagamos o é. Aí, a Copa se torna um entrave. Uma frustração. Ainda mais quando a "economia" parece esfriar, não correspondendo às nossas expectativas, quando o sistema político parece não funcionar; diante do inexplicável, do inquietante, surge um mantra que começa a se espalhar: a culpa é da Copa. 

É um sentimento de ausência que explodiu em condições específicas; a falta de boas escolas, bons hospitais ou os altos preços da moradia, do transporte e outros serviços não se devem a algo que não custou sequer 1% do PIB brasileiro de um ano; a exploração cotidiana do capital, nem se fala, certamente pesa mais do que isso. Mas a Copa se torna um elemento subjetivamente magnetizador de angústias determinadas e indeterminadas, muito além do problema que ela representa objetivamente -- mas também pelo que ela representa objetivamente. Some-se isso à maneira como a militarização da segurança repercute junto ao imaginário das vanguardas políticas do país, traumatizadas com a ditadura, e temos uma tragédia. Nem o peso da camisa canarinho do outro lado, por si só, dá conta.

O que esperar da Copa que se inicia amanhã? Podemos dizer que já não teve Copa, pela fragilidade da mobilização em torno dela, podemos dizer que haverá Copa, pois o otimismo das pessoas cresce à medida que o torneio se aproxima, podemos dizer que houve Copa, embora tudo isso, mas nada disso importa: entre um niilismo conservador anti-Copa, aquele fundado no argumento de que não seríamos dignos de realizar o torneio ou porque teremos estádios no interior do país, e o ufanismo militar que garantirá a Copa nem que seja à bala, existe uma coincidência no grau zero de intensidade. Há potência no #NãoVaiTerCopa nas ocasiões em que ele é colocado como um chamado ao impossível -- antagonizando determinados desmandos.

Existe, é verdade, o esgotamento da captura política do futebol como elemento de adestramento dos trabalhadores e das pessoas em geral, seja pela força dos movimentos ligados à crítica da Copa ou pela luta social travada apesar da realização do torneio -- e reprimida, ou atendida, porque poderia resvalar no torneio. Há dois fatores preponderantes aí: (1) a força da luta, dentro do futebol -- como o Bom Senso F.C. e outras iniciativas --, fora dele -- ou nas novas formas de luta que assumem movimentos tradicionais, e os novos movimentos, que não se intimidam com os acordos de Estado e os consensos; (2) O esgotamento do futebol à medida que ele foi capturado e, agora, se torna mais e mais parte do próprio processo econômico capitalista, isto é, passa da subsunção relativa à subsunção total; se ele servia como elemento social-político-cultural voltado à organização do trabalho, o que lhe sustentará, uma vez que, em seu interior, existe agora uma fricção entre capital e trabalho? E como o futebol cumprirá seu papel cultural na organização do trabalho em geral? 

Vejam bem, a segunda questão corresponde a uma das rachaduras do neoliberalismo, isto é, o problema que aparece com a transformação de elementos não-econômicos de sustentação do sistema econômico em, também, peças do xadrez do mercado: a escola, o hospital, o esporte e assim por diante deixam de ser atividades meios, atividades de sustentação para se tornarem fins.  Uma vez que eles deixam de ser motores auxiliares da organização do mercado para serem organismos de mercado, passa, pois, a haver o problema da organização do trabalho no interior do que servia para organizar o trabalho em geral. Mesmo quando a escola e o hospital ainda estejam sob regime público, eles passam a se submeter à lógica empresarial, o que impõe uma simetria da relação em seu interior e de si com a sociedade, semelhante às indústrias e comércios. O professor, mesmo da escola pública, devém proletário e o estudante e suas famílias, mero consumidor, o que desencadeia um efeito dominó na medida em que o capital profana províncias que não eram sequer econômicas.

Mas a luta radical que se levanta nesse estado de emergência, por seu turno, é inimiga tanto desse neoliberalismo quanto, também, de tentativas de retornar tudo às práticas do velho capitalismo -- inclusive no que diz respeito à sua melhor forma de gestão, isto é, uma espécie de keynesianismo pós-industrial, um novo social-desenvolvimentismo. Ironicamente, é possível que o grande legado da Copa seja o arrefecimento da importância do futebol, em específico, como elemento de conciliação de classes e domesticação do trabalho -- o que poderá projetar, por vias tortas, um futebol melhor na medida em que expectativas políticas (de Estado) e econômicas diminuem sobre ele. O mesmo vale para os espetáculos globais e quetais, o que implica numa crise num setor importante da cultura de massa global -- quantas cidades não estão, neste momento, recusando sediar os Jogos Olímpicos e a própria Copa? O futebol (e o esporte) mercadoria entra em crise e o futebol instrumento político do sistema idem.
Crises em sistemas econômicos, ou pelo menos nas formas políticas que os sustentam, em geral se explicam pela maneira como eles não conseguem mais arregimentar o trabalho: isto é, tornar contingentes não-proletários em trabalhadores empregados (isto é, condicionados a criar sob sujeição relativa), mantê-los dessa forma, convencê-los de que vale a pena viver assim. Sem trabalho, pois, não há capital. A libertação do trabalho é a própria liberação da condição do trabalhador, do mesmo modo que é com a escravidão e os escravos -- o trabalhismo é tão absurdo quanto uma política de melhor tratamento dos escravos, caiando a senzala em vez de destruí-la. A queda da nossa própria ditadura se explica pelo exaurimento da capacidade daquele regime em mobilizar trabalhadores (cf. Cava, 2014).
Se há captura e uso político é, por outro lado, porque existe riqueza comum e real no futebol -- do mesmo modo que o nacionalismo se utiliza da expressão positiva das diferenças culturais para criar uma negatividade; portanto, mesmo na bandeira e no hino há uma dimensão positiva. Existe, pois, a necessidade de lutar dentro do futebol -- da mesma forma que Spinoza confrontava dentro da teologia -- pelo futebol, um futebol qualquer e livre de qualquer função utilitária -- eleitoral, política ou econômica: isto é, dissociar o futebol brasileiro da CBF, o Mundo do Futebol da FIFA, a democracia do Estado. Não é uma tarefa fácil. As esquerdas têm dificuldades históricas nisso, sempre colocando tudo no mesmo balaio, o que ora as faz abraçar tudo de forma ufanista, ora as leva a renegar o futebol como um todo por lhe julgar "alienante" (confundido a captura feita com a relação capturada).
É preciso defender o futebol, quem sabe defender o futebol brasileiro e lutar contra quem se aproveita dele. Haverá sim Copa, ela começa amanhã, mas o que não aconteceu, nem acontecerá, é a Copa nos termos que o poder desejava. Deu jogo. Se a FIFA, o Estado ou qualquer um outro poderoso ganhar ou perder, não será por W.O. -- nem sem ter levado gols.
P.S.: Por tradição, eu torço moderadamente pela Seleção. Não simpatizo muito com o time, embora reconheça que ele seja bom -- e, pelo fator campo, acaba se tornando um dos favoritos. Gosto de Holanda, Portugal, Argentina, Chile e Uruguai. Desgosto da Espanha e da Itália por motivos diversos. A Alemanha me é indiferente como a Inglaterra.
Fonte: O Descurvo

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