agosto 25, 2014

"A politização sem dogmas do Teatro do Oprimido", por Ovidio Poli Junior

PICICA: "Em autobiografia, Augusto Boal revê circunstâncias pessoais e históricas que o levaram a romper com forma arcaica da velha “arte engajada”"

A politização sem dogmas do Teatro do Oprimido


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Workshop de Boal com técnicas do Teatro do Oprimido em Paris (1975), durante exílio do dramaturgo

Em autobiografia, Augusto Boal revê circunstâncias pessoais e históricas que o levaram a romper com forma arcaica da velha “arte engajada”

Por Ovídio Poli Junior

Difamam a sua pátria os que calam os crimes do seu governo, jamais os que falam.
(Augusto Boal)
Entre os nomes de nossa dramaturgia, Augusto Boal (1931-2009) figura não apenas como autor e diretor, mas sobretudo como teórico da arte teatral. Aos 70 anos, declarou em entrevista considerar-se um exilado em seu próprio país, em virtude de seu trabalho ser mais conhecido no exterior do que entre nós – um homem cujo trabalho e trajetória muitos brasileiros só vieram a conhecer recentemente, depositário que somos do legado de estupidez deixado por aqueles que, de maneira diferenciada, censuraram, prenderam, torturaram e expulsaram do território e da memória do país pessoas como José Celso Martinez Corrêa, Mário Lago, Flávio Rangel, Ferreira Gullar, Plínio Marcos e o próprio criador do Teatro do Oprimido (citamos apenas alguns nomes, dos muitos inscritos na esfera teatral).

No decorrer da leitura de Hamlet e o filho do padeiro, sua autobiografia, nosso interesse pontual pela experiência carcerária do dramaturgo foi-se ampliando pela rede de recordações que o autor tece desde a infância passada no bairro da Penha, no Rio de Janeiro, até os anos mais recentes em várias partes do mundo. O autor recorda fatos importantes da história teatral brasileira e episódios de sua vida, relatados de forma exuberante e com intensa alegria em mais de trezentas páginas, das quais emerge uma profunda paixão pelo teatro.

A obra é escrita com humor cáustico e profunda ironia, entremeando memória e imaginação em uma abordagem nem sempre linear que confere à narrativa ritmos distintos. O propósito central do livro, no entanto, não se perde: o autor quer nos contar a interação existente entre sua trajetória pessoal, as circunstâncias históricas em que viveu e sua teoria teatral.


Augusto Boal nasceu em 16 de março de 1931. Os familiares, camponeses da região trasmontana de Portugal, emigraram para o Brasil no começo do século passado, estabelecendo-se no pequeno comércio (uma padaria e um armazém de secos e molhados). O pai viera exilado aos vinte anos, em 1914, por se recusar a participar da guerra.

Dos anos de infância sobressaem os “ensaios” com um carismático cabrito – que, nas palavras sempre irônicas do autor, teria dado ensejo a seu primeiro trabalho de “direção teatral”:

“Chibuco era o máximo! Corria, dava cambalhotas – raríssimo em caprinos – e pulava corda – único. Sem destreza, é verdade, mas pulava. (…) Chibuco foi meu primeiro ator, fez de mim verdadeiro diretor teatral. Eu era autoritário como são os diretores imaturos. Com ele, comecei minha carreira teatral: eu dirigia espetáculos caprinos sem jamais consultar meu elenco. Só mais tarde aprendi as alegrias do trabalho em equipe”.[1]

Os anos seguintes transcorreram entre as reverberações remotas da guerra, as dramatizações das radionovelas com os irmãos, as duas padarias do pai, a escola e a rua. Esse período é narrado com vivacidade e espírito crítico, com a pena da galhofa e sem a tinta da melancolia:
“A professora de aritmética trouxe o irmão mais velho à Escola. Fardado: Subtenente do exército. Dona Edite contou o esforço dos pais em realizar os sonhos militares do filho, cantou seus sucessos no quartel de cavalaria – já que não tinha tido a felicidade de ser sorteado para defender a Pátria na Itália, cuidava da bosta dos cavalos”.

É certo que toda autobiografia confere ao vivido uma coerência e uma continuidade que em última instância são construídas pelo olhar seletivo[2]  da memória e da imaginação: porém, diferentemente das biografias, esse gênero narrativo nos permite apreender como o biografado teria vivido subjetivamente a sua vida (ou como gostaria de tê-lo feito).

Em Hamlet e o filho do padeiro, os anos de infância e adolescência aparecem como cruciais para a definição de um projeto (no sentido sartreano) que, alimentando-se na história, iria desembocar na concepção do Teatro do Oprimido: da experiência infantil nascera o desejo de dedicar-se ao teatro; esse desejo, porém, ficou descansando como massa sovada devido ao trabalho diuturno na padaria, interrompido aos dezoito anos com o ingresso na Escola Nacional de Química. O contato com os oprimidos também se deu nesse período – operários do curtume, “formigas apressadas”, ainda escuro pediam café com leite, pão com manteiga e aguardente antes de levar os braços às máquinas. Daí nasceram algumas de suas peças, que deixava repousando e, anos mais tarde, reescrevia: “Escrevendo, faço meu pão, como meu pai”.

No curso de Química, do qual apenas se desincumbia, é eleito para o Departamento Cultural do Diretório Acadêmico. Organiza um ciclo de conferências e convida Nelson Rodrigues. A conferência revelou-se um fiasco: sete pessoas foram ouvir o dramaturgo. Após o episódio, no entanto, Nelson Rodrigues tornar-se-ia seu conselheiro, recebendo várias de suas peças e anotando-as com comentários. Por seu intermédio, Augusto Boal conhece Sábato Magaldi e outras personalidades do meio teatral. Em 1953, após a conclusão do curso de Química, embarca para os Estados Unidos e passa a frequentar o curso de dramaturgia ministrado por John Gassner, experiência crucial em sua formação.

Recém-chegado ao Brasil após dois anos nos EUA, onde trabalhou como garçom, Augusto Boal aceita o convite de Sábato Magaldi para dirigir o Teatro de Arena em São Paulo. Ali conheceria Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, com quem trabalharia por mais de dez anos imprimindo ao grupo uma forte conotação nacionalista, desenvolvendo uma postura preocupada com a temática social e política e, sobretudo, com a popularização da linguagem teatral. As montagens e os seminários de dramaturgia ali nascidos iriam se associar, no período imediatamente anterior ao golpe de 1964, com as experiências e práticas teatrais desenvolvidas pelo Centro Popular de Cultura no Rio (CPC-UNE) e pelo Movimento de Cultura Popular no Nordeste (que, anos depois, Boal viria a caracterizar como dogmáticas).

Grande parte de sua autobiografia é marcada por reflexões e relatos sobre esse período, no qual as tentativas de aprimoramento estético e formal conviveram com uma progressiva escassez material e financeira. A reflexão de Boal aponta um certo pieguismo na prática conscientizadora adotada na época e examina os dilemas que levariam a formulações estéticas posteriores. A decisão de excursionar pelo interior do país é apresentada em termos estritamente políticos, que tiveram desdobramentos no âmbito formal e estético:

“No Arena, nós nos limitávamos a mostrar a vida pobre, como éramos capazes de entendê-la. Em cena, nos vestíamos de operários e camponeses: os figurinos eram autênticos, mas não o corpo que os habitava. (…) Nosso público era classe média. Operários e camponeses eram nossos personagens (avanço!), mas não espectadores. Fazíamos teatro de uma perspectiva que acreditávamos popular – mas não representávamos para o povo!”.

Em Pernambuco, durante o governo de Miguel Arraes, o dramaturgo vivenciou uma situação que o faria questionar a autenticidade daquilo que chama de forma mensageira ou evangélica de teatro político.

O episódio ocorreu logo após uma apresentação teatral, em que os atores exortavam uma plateia de camponeses a retomarem suas terras dos latifundiários:

“Foi quando o camponês Virgílio, chorando entusiasmado com nossa mensagem, me pediu que, com o elenco e os fuzis, fôssemos com seus companheiros lutar contra os jagunços de um coronel, invasor de terras. Quando respondemos que os fuzis eram falsos, cenográficos, não davam tiros, e só nós, artistas, éramos verdadeiros, Virgílio não hesitou e disse que, se éramos de fato verdadeiros não nos preocupássemos: eles tinham fuzis para todos. Fôssemos apenas lutar ao seu lado. Quando lhe dissemos que éramos verdadeiros artistas e não verdadeiros camponeses, Virgílio ponderou que, quando nós, verdadeiros artistas, falávamos em dar nosso sangue, na verdade estávamos falando do sangue deles, camponeses, e não do nosso, artistas, já que voltaríamos confortáveis para nossas casas”.[3]

O golpe de 1964 interrompeu esses questionamentos e inauguraria uma conjuntura distinta, que o levaria à prisão e ao exílio:

“Triste felicidade. O Arena, no Nordeste, havia encontrado o nosso povo; o CPC, no Rio, encontrara o seu. Embora dialogando com o povo, continuávamos donos do palco, o povo na plateia: intransitividade. (…) Continuava a divisão de classes, perdão, palco e plateia: um falava, outro escutava. (…) Agora, com a repressão, nem palco nem plateia: o povo tinha sido expulso dos teatros, sindicatos, associações, paróquias – povo proibido. Teatro outra vez assunto de classe média e intelectuais”.

O tom da narrativa é marcado pelo extremo sarcasmo ao abordar episódios com a censura, como a exaustiva negociação travada com um censor durante o ensaio geral de Chapetuba F. C., de Oduvaldo Vianna Filho, que estreava como dramaturgo e discutiu durante horas uma permuta entre os palavrões que o funcionário do regime pretendia excluir da peça.[4]

Durante o exílio, que transcorreu em países latino-americanos e europeus, Augusto Boal desenvolveu e sistematizou suas concepções teatrais, hoje estudadas e praticadas em inúmeros centros espalhados pelo mundo. Entremeando episódios, em Hamlet e o filho do padeiro Boal nos conta a gênese do Teatro do Oprimido – que, em síntese, é constituído por um conjunto de técnicas e concepções que procuram fazer com que o espectador se transforme em protagonista e colabore com o espetáculo. O livro demarca com precisão essa transformação, mostrando de que maneira se entrecruzaram reflexão estética e circunstâncias históricas.[5]

Acuado pela ditadura, ainda assim esse teatro encontrou meios de resistência e de expressão: estrangulado economicamente, sustentado às vezes por “três dúzias de bananas”, fez da escassez material um instrumento para reformular o espaço cênico e a relação entre palco e plateia; perseguido e banido, nasceu na nudez e na simplicidade, no isolamento da prisão e na interação com plateias populares, no interior do Brasil e nos países do exílio.

(Na próxima semana: a experiência do cárcere e a criação literária)

 

[1] Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. As citações seguintes foram extraídas desta mesma obra.
[2] A seletividade da memória implica não apenas na simples percepção das coisas, sendo antes e sobretudo uma forma de projeção sobre o mundo.
 

[3] Boal conclui sua reflexão recorrendo a Che Guevara: “Esse episódio me fez entender a falsidade da forma mensageira de teatro político, me fez entender que não temos o direito de incitar seja quem for a fazer aquilo que não estamos preparados para fazer. (…) ‘Ser solidário é correr o mesmo risco’, dizia o Che: nós não corríamos risco nenhum cantando nossos hinos revolucionários”.
 

[4] O autor relata ainda outros episódios burlescos, como a apreensão dos livros O vermelho e o negro, de Stendhal, e História do cubismo, que supostamente fariam alusão a ideais socialistas e anarquistas (devido às cores) e à revolução cubana (pelo sufixo).
 

[5] Em Arena conta Zumbi vemos nascer o Sistema Curinga (rodízio de personagens inspirado na figura do kurogo do teatro kabuki japonês e na famosa carta do baralho). Em longas páginas, vinculados aos acontecimentos que lhes deram origem, são descritos os questionamentos feitos à época das experiências no Nordeste, que iriam desembocar no Seminário de Dramaturgia em Santo André (quando pela primeira vez Boal pôde ver operários no palco e na platéia). Do mesmo modo, nos anos pós AI-5, vemos nascer a modalidade do Teatro-Jornal (uma espécie de teatro instantâneo, baseado em técnicas que transformam notícias de jornal em cenas teatrais, concebido pelo Núcleo 2 do Arena para fugir à perseguição policial). A partir de uma inesperada intervenção de uma espectadora indígena peruana, identificamos o embrião do Teatro-Fórum. Em Buenos Aires, simulando um grupo que se recusa a pagar a conta em um restaurante com base em uma lei existente no país, temos o nascimento do Teatro-Invisível. Nos anos mais recentes, durante seu mandato como vereador no Rio de Janeiro, vemos irromper o Teatro Legislativo, que associa as técnicas gerais do Teatro do Oprimido a práticas populares propositivas de caráter legislativo.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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