agosto 17, 2014

"Deleuze: Corpo sem Órgãos", by Rafael Trindade

PICICA: "O Corpo sem Ógãos (ou apenas CsO) é um conceito desenvolvido por Deleuze e Guattari, utilizado em Anti-Édipo e Mil-Platôs. Este conceito, retirado de Artaud, funciona muito mais como uma prática, ou conjunto de práticas, em vez de uma noção bem definida. Faz parte de um estilo de vida nômade. Não compreendemos o Corpo sem Órgãos, o vivemos."

Deleuze: Corpo sem Órgãos

Lying Figure in a Mirror, Francis Bacon
Lying Figure in a Mirror, Francis Bacon

“Órgão: ór.gão. sm (gr órganon) 1. Parte ou estrutura de um organismo ou corpo vivo, adaptada a uma determinada função. 2. Mec. Cada uma das partes de um mecanismo que exerce uma função especial. (Dicionário Michaelis)”
O Corpo sem Ógãos (ou apenas CsO) é um conceito desenvolvido por Deleuze e Guattari, utilizado em Anti-Édipo e Mil-Platôs. Este conceito, retirado de Artaud, funciona muito mais como uma prática, ou conjunto de práticas, em vez de uma noção bem definida. Faz parte de um estilo de vida nômade. Não compreendemos o Corpo sem Órgãos, o vivemos.
Vimos a definição do dicionário, o corpo organizado funciona como uma máquina que trabalha para a produção. Quando nosso corpo se torna um organismo, lhe dão uma utilidade, ele se insere em nossa sociedade para realizar determinados fins. Nosso desejo é esmagado, organizado externamente, nossos órgãos são capturados, amarrados dentro de uma lógica capitalista, ordenados. O órgão é sempre instrumento de algo para além dele mesmo, neste caso, o social. E assim nos tornamos presos, fracos, infelizes.
“O organismo não é corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer, um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair trabalho útil” (Deleuze, Mil Platôs, Vol. 3)
É assim que nossos órgãos se tornam nossos inimigos. Foi por isso que Artaud declarou guerra aos próprios órgãos. A vida torna-se fraca, o desejo é canalizado, tudo trabalha pela produção, pela finalidade. Já vimos como o desejo para Deleuze não é falta, é produção (veja aqui), mas o corpo, afastado daquilo que pode, perde sua capacidade revolucionária e se torna doente, perde sua capacidade de criar o real para aceitar a vida medíocre que lhe dão. A alternativa de Deleuze está em criar para si um Corpo sem Órgãos.
O CsO não é inimigo dos órgãos, mas inimigo do organismo. Ou seja, não é inimigo dos instrumentos, mas inimigo da instrumentalização. Pura busca de intensidades, o CsO procura desfazer-se da organização produtiva em que foi inserido para tornar-se produção de realidades diferentes da que lhe deram. Ele odeia o adestramento. O corpo antes estava doente, sua vida estava desintensificada, anestesiada, sua rotina não lhe proporcionava nada de novo. Com a criação de um Corpo sem Órgãos, o corpo se torna improdutivo para se tornar intensivo. As coisas passam novamente a fluir, a lhe afetar, ele acorda e percebe que está vivo, não é um instrumento, mas um conjunto de sensações.
Os órgãos estão separando o corpo do que ele pode, porque estão capturados, a potência se perde no organismo investido pelo social. Desta forma, o meu desejo, através do meu corpo, investe em fins, o significado fica no lugar da sensação. É necessário não deixar a forma, o organismo serem dominantes em mim: modificar órgãos, fazer deles matérias para novas esculturas do desejo, rearranjos intensivos. Este é o resultado do CsO, efetuação da potência, assim como do pensamento. Na medida em que a potência se efetua, não há como a própria potência não ser afetada. A intensidade destrói sua própria casa, a do homem é o próprio corpo submetido ao organismo.
Sendo assim, o CsO não está preocupado com horários, dinheiro, mercadorias, rótulos, prazos: sua busca é por outras formas de viver e se expressar, em suma, outras formas de sentir a vida. Aumentar o prazer de viver, de sentir, de experimentar, produzir, afetar e ser afetado.
Exemplo: a mão, usada para apertar o parafuso com a chave de fenda, mover a alavanca na fábrica, escrever o relatório no escritório. Quando esta mão perde a finalidade que lhe deram, se torna CsO. Então aprende a dedilhar um violão, pintar um quadro, acariciar uma pessoa. A boca que era usada para dar ordens, organizar, repreender, dar sentido; passa a cantar, beijar, provar. Os pés que levam ao trabalho podem ser usados para dançar.
“Eu crio um corpo que não perde o devir, um corpo em acontecimento, que é condição de si próprio. Os órgãos se tornam meios de mim mesmo. Abrir as portas do corpo para a vida potente e fechar para as armadilhas” – Luiz Fuganti.
O CsO nasce da capacidade de se abrir para novas sensações, novas disposições. Organizações que não nos deram previamente. Cabe a pergunta, o que me convém? Sexo, drogas, rock’n’roll? Talvez. Viajar, experimentar comidas exóticas, meditar? Pode ser também. Pintar, escrever, praticar um instrumento musical? Claro! Nadar, correr, escalar? Sim! Todas as possibilidades são consideradas, tudo que foge à vida anestesiada, tudo que desfaz o entorpecimento da rotina, tudo que produza intensidade, tudo que gere novos agenciamentos, organizações.
Eu desorganizo meu corpo para torná-lo instrumento de intensidade. Deleuze faz apenas uma recomendação: prudência, cuidado, medida. “A prudência é um instrumento da ousadia” (Luiz Fuganti). Uma experimentação contínua que quer criar a si mesma. Uma vida que quer cada vez mais expandir-se e criar novas realidades. Uma potência em ato que é causa de seu crescimento. O Corpo sem Órgãos é sempre revolucionário porque deseja tomar o que é dele: a potência de existir.
“Seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide” (Deleuze, Mil Platôs, Vol 3)
Seja esta, de agora em diante, nossa maneira de se relacionar com o corpo.

Construção mole com feijões cozidos, Salvador Dali 1936
Construção mole com feijões cozidos, Salvador Dali 1936

Fonte: Razão Inadequada

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