agosto 14, 2014

"Ditadura da Experimentação [ou, nota sobre a Prudência]", by Rafael Trindade

PICICA: "A questão é a seguinte: o que pode um corpo? De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes” – Deleuze, Diálogos" 

Ditadura da Experimentação [ou, nota sobre a Prudência]


A questão é a seguinte: o que pode um corpo? De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes” – Deleuze, Diálogos
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prudência: pru.dên.cia
sf (lat prudentia) 1 Virtude que nos faz prever e evitar as faltas e os perigos e que nos leva a conhecer e praticar o que nos convém. 2 Cautela, precaução. 3 Circunspeção, sisudez, seriedade, tino. 4 Moderação. 5 Cordura. (Michaelis)

Então me falam para eu experimentar. Aí eu ligo a televisão e metade da programação são pessoas que eu não conheço me dizendo como eu devo me vestir, me portar, o que comer, como me divertir, como fazer sexo. Depois eu entro no blog Razão Inadequada e um em cada três textos fala de experimentar novos modos de vida. O que devo fazer?

Lacan esboçou uma teoria onde, ao contrário de Freud, o superego não mais proíbe, muito pelo contrário, ele diz: Goze! O mundo moderno funciona invertendo as proibições e tornando-as obrigações. É muito mais comum o cliente chegar no consultório do psicólogo dizendo “doutor, eu não aproveitei minha vida, eu não vivi plenamente” no lugar de “doutor, me sinto terrivelmente culpado por algo que fiz”. Estamos acostumados a arrependermo-nos do que não fizemos mais do que das coisas que fizemos. “Você nunca fumou maconha?”, “Você nunca viajou para tal lugar?”, “Você nunca teve tal experiência sexual?”. Mas nunca encontramos este gozo do qual nos falam, no fim do dia, deitamos a cabeça no travesseiro e não encontramos o Gozo prometido.

Quantas vezes não nos vimos experimentando coisas, tomando atitudes, simplesmente por pressão externa? Quantas vezes não fomos a lugares porque é “descolado”? Todos passam por isso, o happy hour que não acontece nada e ninguém aguenta mais. Minha intenção hoje é encontrar um critério de seleção para não mais cair nesta ditadura da experimentação.

Contra da Ditadura da Experimentação, contra o império midiático do falso consumo, contra o reinado da aparência, contra a mediocridade do caminho do meio, só temos uma palavra: prudência.
Prudência: é a força que você tem de selecionar, de se ligar ou não se ligar a certas relações, a certos acontecimentos” – Luiz Fuganti
Entramos na filosofia de Luiz Fuganti, que tão bem passa por Nietzsche, Espinosa, Deleuze. Para este filósofo, brasileiro e vivo, a arte das doses não é o caminho do meio, é o instrumento da potência. O aumento da capacidade de ser afetado gera a dose necessária de prudência para manter-se sempre ativo, sempre no máximo de si, na superfície. Não estamos falando de dosar no sentido de racionar, mas sim de misturar nas devidas proporções.

Quando se bebe, é preciso estar sempre no penúltimo copo… isto se se domina a arte da prudência. Por quê? Estar no penúltimo copo é estar sempre no limite, é a prudência de não cruzar uma linha de morte. Eu bebo para modificar a minha maneira de ser modificado naquele momento, eu faço isso para ter determinadas experiências. Seu eu beber meu último copo eu caio inconsciente, eu ultrapasso o limiar e entro em devires que não queria. Não podemos nos tornar trapos…
Não é uma crença boba, ingênua, uma experimentação porra louca, idiota. Existe um jeito, uma questão de dose, a arte das doses, colocar a prudência no lugar do medo. Não a prudência para limitar a ousadia, justo ao contrário, é a prudência que vai levar a ousadia ainda mais longe” – Luiz Fuganti
Antes de mais nada, é preciso vencer o medo. Este é nosso maior inimigo. O medo nos impede de agir, ou nos leva a fazer coisas que não queremos. O medo é nosso primeiro inimigo, ele indica exatamente para onde não devemos ir. Nosso segundo inimigo é a racionalidade: ela é fria demais para ser nossa dona, ela é seca demais para liderar o processo. A razão, no mundo moderno, foi elevada à categoria de deusa, de guia. Ela é importante tão somente em função dos afetos, mas de forma alguma tem poder sobre eles. Não somos irracionalistas, mas sabemos do papel reduzido da razão dentro do maremoto de afetos que somos. Terceiro problema: o poder. A relação poder potência é importantíssima. O poder sempre se exerce sobre o outro. Não queremos ser aquilo que mais desprezamos: tiranos, psicanalistas ou padres.

A prudência no lugar do medo. A prudência como instrumento para se chegar mais longe. A prudência a serviço da ousadia. Se somos prudentes, é apenas no intuito de saber se devemos dar mais um passo para frente. Se somos prudentes é apenas para aumentar nossa potência. A prudência não é a causa de abaixarmos a cabeça e desistirmos, ela é o fator através do qual eu enfrento o mundo. Assim eu me torno ativo: quando as forças em mim querem superar-se, não apenas conservarem-se; quando o que há de forte em mim volta-se para fora, não contra mim mesmo.
Criar as condições para que a vida se torne forte e livre” – Luiz Fuganti
Que forças existem em mim que não têm vazão? O que eu posso? O que me excita, me estimula? Antes de mais nada, devemos entender que somos apenas uma passagem para forças maiores que nos atravessam. Como eu faço para dar vazão máxima sem me despedaçar no processo? Como faço para experimentar o máximo de intensidade, mergulhar o mais fundo e voltar ileso? Prudência…
Arte das doses, da prudência, ou seja, a experimentação de ultrapassar limiares, mas sem perder a natureza, a continuidade de si mesmo. E se perder, que seja por um breve momento, mas retomar em seguida. A gente sabe até onde pode ir, na medida em que a gente sai de si mesmo, mas ao mesmo tempo está com um pé dentro de si mesmo. Estar ao mesmo tempo dentro, fora e na fronteira” – Luiz Fuganti
Habitar fronteiras, estar no limite de si, na superfície extrema. Efetuar encontros, relacionar-se. Estamos cansados de falsa experimentação, estamos cansados de mais do mesmo, de sempre fechar-se e limitar-se cada vez mais. Se não for para efetuar trocas, então não vale a pena. Se não for para desdobrar, complicar, descomplicar, aplicar, explicar, multiplicar, então é melhor nem começar. O prudente sabe quando parar, porque ele sente que está perdendo algo. O prudente sabe mais do que ninguém experimentar porque ele faz de seu corpo um instrumento de medição, ele sabe quando procurar outra coisa porque sente a morte chegando: aquilo não dá mais pra ele, é pouco. Talvez poucas coisas sejam mais importantes hoje em dia do que ser prudente.
Ser extremista, ousado, implica prudência. Para que o extremo seja mais extremo é preciso prudência. Para que a ousadia seja mais ousada é preciso prudência. A prudência é o que se põe no lugar do medo, é um cuidado com o ativo, com o intensivo, com as forças afirmativas, com essa capacidade receptiva. É uma espécie de responsabilidade para que a vida não vire trapo, para não se separar da capacidade criativa. A prudência é uma função da capacidade criativa” – Luiz Fuganti
Luiz Fuganti
Luiz Fuganti

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