agosto 22, 2014

"Ferguson: acordar da hipnose pós-racial", por George Ciccariello-Maher

PICICA: "Em 9 de agosto, Michael Brown foi interpelado por um policial da pequena cidade de Ferguson, no Meio-Oeste dos Estados Unidos, rendido e assassinado com seis tiros. Ele estava desarmado e não oferecia qualquer ameaça. Michael tinha 18 anos. Michael era negro. 

Num país governado por um presidente negro que aderiu à retórica do “pós-racial”, o assassinato em Ferguson escancarou novamente a ferida histórica. Foi o quinto jovem negro morto pela polícia nos EUA em 2014, em circunstâncias semelhantes. Seguiram-se protestos diários, performances, ações diretas, culminando em enfrentamentos com uma polícia que, por ordem do governo, tentou tirar as pessoas das ruas. A grande mídia e muitos comentadores, desde então, não cansam de condenar a “violência”, equiparando a brutalidade policial diuturna com a legítima revolta das pessoas. 

Nesta entrevista, realizada pelo coletivo Commonware com um ativista e escritor norte-americano, ele fala da situação em Ferguson dentro de uma longa trajetória histórica de matança, perseguição, humilhação e encarceramento em massa de negros, bem como da importância do movimento por direitos e revolta como poder constituinte. Para George, uma reforma da polícia limitada à desmilitarização simplesmente não reforma nada: é preciso desarticular, junto com a militarização, o agudo racismo institucional entranhado em suas práticas. (N.E.)" 


Ferguson: acordar da hipnose pós-racial

21/08/2014
Por George Ciccariello-Maher


Entrevista com George Ciccariello-Maher, por Anna Curcio e Lenora Hanson, no Commonware, 20/8/2013 | Trad. UniNômade

Em 9 de agosto, Michael Brown foi interpelado por um policial da pequena cidade de Ferguson, no Meio-Oeste dos Estados Unidos, rendido e assassinado com seis tiros. Ele estava desarmado e não oferecia qualquer ameaça. Michael tinha 18 anos. Michael era negro. 

Num país governado por um presidente negro que aderiu à retórica do “pós-racial”, o assassinato em Ferguson escancarou novamente a ferida histórica. Foi o quinto jovem negro morto pela polícia nos EUA em 2014, em circunstâncias semelhantes. Seguiram-se protestos diários, performances, ações diretas, culminando em enfrentamentos com uma polícia que, por ordem do governo, tentou tirar as pessoas das ruas. A grande mídia e muitos comentadores, desde então, não cansam de condenar a “violência”, equiparando a brutalidade policial diuturna com a legítima revolta das pessoas. 

Nesta entrevista, realizada pelo coletivo Commonware com um ativista e escritor norte-americano, ele fala da situação em Ferguson dentro de uma longa trajetória histórica de matança, perseguição, humilhação e encarceramento em massa de negros, bem como da importância do movimento por direitos e revolta como poder constituinte. Para George, uma reforma da polícia limitada à desmilitarização simplesmente não reforma nada: é preciso desarticular, junto com a militarização, o agudo racismo institucional entranhado em suas práticas. (N.E.)

Foto: AFP/Getty, Scot Olsen
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A nossa primeira questão tem a ver com o modo como Ferguson explodiu, depois do assassinato de Mike Brown e da resposta policial. Quais dinâmicas sociais levaram a essas intensas revoltas? O que levou ao levante da comunidade negra e como você pode explicar a violência policial em resposta?

Para entrar no contexto histórico mais abrangente, especialmente para quem não está nos Estados Unidos, é importante dizer que a violência policial aqui não é um fenômeno abstrato ou universal. É um fenômeno focado em certas pessoas e certas populações-”problema”, especificamente, embora não só, afroamericanos e americanos negros.

Quando olhamos para Ferguson e ao fato que é um subúrbio de Saint Louis, que em termos raciais e históricos já era de muitas maneiras um ponto de conflito e tensão raciais. Ferguson era quase totalmente branca até a década de 1970, mas se tornou uma cidade em sua grande maioria negra, cerca de 65-70%. Porém, sua força policial é quase universalmente branca. E quando olhamos para dados recentes do FBI, descobrimos que, por exemplo, 92% dos presos por baderna em Ferguson são negros, o que dá um bom insight sobre o modo como as pessoas são sistematicamente constrangidas. As pessoas em Ferguson são constrangidas pela polícia, e acusações menores como baderna usadas a título de controle social da população.E novamente o que temos não é um problema abstrato, mas a manifestação e repetição de uma violência policial histórica, branco-suprematista, em que as vidas negras não valem nada e onde a morte negra é quase sempre legitimada. E isto continua a se desenrolar na narrativa da mídia, como se a coerência fosse completamente irrelevante, três ou quatro explicações da polícia servem para legitimar diante do público a violência contra este jovem. Dizem que Mike Brown estava provavelmente envolvido num roubo, que a polícia alega ter ocorrido mais cedo naquele dia, embora ele pareça estar usando roupas diferentes (se realmente for ele naqueles vídeos divulgados); talvez ele estivesse atravessando a rua fora da faixa, o que novamente deve ser entendido num contexto em que a polícia está constrangendo as pessoas por crimes menores.

E, obviamente, isto deixa bem claro às populações brancas vizinhas que esta é uma questão de negro x branco, assim como quando a polícia revelou imagens dos ditos “saqueadores” em Ferguson, que eles fizeram para lembrar pra todo mundo que a polícia estava lá protegendo a propriedade contra a dita violência dos outros.

Você falou no fenômeno da “fuga branca”, que aconteceu em todo o Meio-Oeste americano. Poderia falar sobre a relação desse fenômeno com a desindustrialização, que tem implicações importantes de classe, e como aquela “fuga branca” produziu tensões raciais e de classe em Ferguson?

Estamos falando de uma geografia da raça. Raça é sempre um fenômeno que se manifesta geograficamente. O modo como se manifesta nos Estados Unidos mais frequentemente tem sido a fuga dos brancos aos subúrbios, o que começou como processo há bastante tempo, mas acelerou especialmente nos períodos de desindustrialização dos anos 1970. Então você tem grandes cidades no Meio-Oeste e todo lugar, tal como na que eu vivo na Filadélfia, onde o que você acha nesta dita “era pós-racial”. A raça aparece mais frequentemente codificada geograficamente, do que abertamente em termos raciais.

Então quer seja através de uma linguagem codificada de escolas distritais ou áreas perigosas, quer movendo-se aos subúrbios para dar oportunidades às crianças, o que nós estamos falando é de modos como a segregação é um fenômeno crescente nos Estados Unidos. Ferguson é claramente um exemplo daqueles lugares que antes era uma cidade exclusivamente branca e agora se tornou predominantemente negra. Então, você sabe, estamos falando de outro exemplo desta manifestação geográfica em que a polícia está ali não apenas para policiar a população, mas também as fronteiras. A função da polícia é manter as pessoas na linha e na zona delas, e Ferguson, uma cidade que era branca e virou negra, é uma cidade onde a população precisa ser constantemente aterrorizada pela polícia, e também manter a população distante dos subúrbios brancos na área.

Porque você estava apenas falando da polícia e da comunidade negra, pode dar uma ideia sobre o que as pessoas em Ferguson estão trazendo às ruas, que tipo de experiências e sentimentos elas estão levando?

Tem uma coisa que muitos observadores brancos, mas também observadores liberais, simplesmente não captam sobre a matança de negros nos Estados Unidos. Ela está embutida numa longa trajetória histórica que não é sequer lembrada. Quero dizer, nós estamos chegando até a falar sobre assassinatos altamente divulgados, de pelo menos cinco homens negros pela polícia no último mês, mas isso é uma trajetória constante de assassinatos pela polícia.

As expressões das pessoas em Ferguson atestam isso, quando dizem que tudo o que está ocorrendo está ligado, desde os casos de Emmett Till a Trayvon Martin até o presente, que esta é uma longa trajetória, e que a falha em reconhecer isso é falha em captar a profundidade da raiva nesses momentos de explosão. A raiva é, de muitas maneiras, um produto de uma sensação de desamparo a respeito da constante repetição dessa violência, mas é também a insistência de que algo precisa ser feito, e que, na ausência de reforma legal que resolva qualquer coisa, na ausência de representantes eleitos e parlamentares que resolvam qualquer coisa, talvez essas rebeliões e revoltas venham a funcionar.

O que, falando historicamente, não é realmente um julgamento inexato, se você pegar os casos ao longo da história americana. Revoltas e rebeliões tiveram um papel imenso nos avanços, quando não diretamente, então pelo menos indiretamente, ao transformar a esfera e ação políticas, e levar a resultados concretos. Se olharmos Ferguson, veremos que o afastamento do xerife local de Saint Louis, afastado de policiar a situação foi um resultado dessa intervenção nas ruas e dos conflitos com uma força policial pesadamente militarizada.

Como os brancos liberais lidam com situações de violência, ou com a questão da violência em protestos? Parece que, nos últimos dois dias, a mídia se aferrou às imagens de policiais marchando com manifestantes, dando preferência a vigílias e ações pacíficas em relação ao que aconteceu no começo, que não eram apenas revoltas, mas também saques e enfrentamentos de rua. O que tal privilégio concedido ao “pacífico” sobre o “violento” faz para obscurecer a história do racismo nos EUA, como também para confundir o que poderia ser necessário para responder a essa história?


Absolutamente. Nós deveríamos ser perfeitamente claros. Existe uma manchete comum agora, desde que a polícia rodoviária estadual resolveu aparecer nos protestos ontem: “Polícia se junta aos protestos”. Nós deveríamos ser perfeitamente claros: a polícia não está se juntando aos protestos. Essa aparição é uma contrainsurgência, é uma estratégia histórica de contrainsurgência que envolve recuar da resposta militar com mão de ferro, barra-pesada, que foi como a polícia atuou no começo, brutalmente, e vestir luvas de veludo, uma estratégia suave para desarmar o protesto.

Claro que isso não muda o fato que a meta da polícia é desarmar o protesto e enfraquecer a mobilização das pessoas e fazer isso, também, através da cooptação. Isso deve ser entendido como premissa. Não é uma coisa boa que a polícia tenha ido aos protestos, embora seja um fenômeno menos brutal.

E isto leva à segunda parte, o que está acontecendo em Ferguson não é sobre a militarização da polícia. A militarização é um fenômeno imenso que tem ocorrido durante a última década, especialmente desde os atentados do 11/9, por meio de departamentos que adquiriam uma tecnologia de nível militar, a partir do Departamento de Defesa, por meio de subsídios e fundos antiterroristas.

Mas se a ameaça terrorista nunca existiu ou se ela dissipou, essa estrutura militar continua aí e pedindo pra ser usada. O velho dito de que pra quem tem martelo tudo parece prego. Isto é exatamente o que temos visto nas ruas com esses xerifes locais usando blindados. Se você está sentado no topo de um desses blindados, olhando por uma luneta de um rifle de longo alcance, então qualquer coisa vai parecer como um insurgente. Qualquer coisa vai parecer um combatente inimigo. E isso é crucial, mas não é a essência do que está acontecendo; porque se nós olharmos à essência do que está acontecendo com a militarização da polícia, nós perdemos de vista o fato que a polícia dos anos 1950, 1960 e 1970 não era militarizada mas ainda assim eram agressores brutais e racistas das comunidades negras.

Então nós precisamos manter essas duas linhas em nossa análise, enquanto evitamos o recurso fácil a simplesmente dizer que precisamos reformar a polícia ou tirar-lhes seus tanques. De novo, a polícia de Ferguson é quase inteiramente branca e policia uma comunidade negra, e o faz de maneira brutal e terrorista. Tirar suas armas pesadas não vai resolver isso. Nós precisamos entender ocaso no contexto da história de longa duração da supremacia branca, que é uma história contínua. E nós podemos emparelhar isso com a transformação da polícia, que de fato tem passado por um processo progressivo de militarização.


O recente livro de Michele Alexander, “The New Jim Crow”, foi importante para demonstrar a continuidade entre o fim da escravidão e o surgimento do encarceramento em massa. Mas boa parte da resposta àquele livro foi advogar pela reforma da lei de encarceramento. Como Ferguson demonstra a falha de uma reforma legal, para enfrentar a história da raça nos EUA?

Por um lado, a questão da reforma é uma tentação constante nesses momentos e caminha lado a lado com a questão da pacificação, que é essencialmente calar e silenciar as pessoas que estão nas ruas de Ferguson, que afinal de contas já são as pessoas mais silenciadas da sociedade. E você tem esta tendência realmente infeliz de comentadores liberais de engajar-se nesse duplo silenciamento, quando eles dizem “sim, talvez seja legítimo resistir e protestar, mas nós realmente gostaríamos de policiar e ditar os termos desse protesto.” Eles fazem certas alegações sobre o entendimento de como a mudança acontece, quando na realidade essas alegações estão quase totalmente erradas.

A maneira como a mudança social acontece é frequentemente através desses momentos de erupção em massa e revoltas espontâneas e o modo como a mudança com frequência se desdobra se dá através dessa tentativa de reformistas de cooptá-la. Então, por um lado, eu penso que nós definitivamente precisamos ser hesitantes e resistentes e críticos a essas tentações reformistas. Nós também precisamos reconhecer que elas inevitavelmente virão à tona e que isso é, provavelmente, o modo como a mudança deve ocorrer.

Mas o perigo, especialmente nesta situação, seja não deixar claro, qual o tipo de reformas de que estamos falando? Etamos falando de reformas sobre o treinamento policial, sobre a sensatez do treinamento, ou estamos falando sobre algum tipo de cota para mudar a natureza demográfica do departamento de polícia de Ferguson?

A realidade é que a função da polícia permanecerá a mesma. Você pode ter um departamento de polícia inteiramente negro e a função do departamento de polícia vai ainda ser suprematista branca, não apenas porque eles protegem a propriedade, mas porque a relação entre propriedade e brancos [whiteness] na polícia americana serve para proteger os brancos também, eles sustentam a linha de cor ao ditar quais populações estão sujeitas à violência e quais não, e quais populações precisam ser controladas, e quais não.

Então as reformas não vão realmente resolver essas questões e isto novamente nos traz à questão da dita “América pós-racial”, em que a eleição de um presidente nos diz um bocado sobre a natureza da sociedade. Na realidade, ter um presidente negro pode ser entendido em termos dialéticos como uma oposição, pode ser a última estratégia em reagir à resistência popular à supremacia branca e obscurecer esses fatos.

Então nós temos Obama indo à televisão dizer que as críticas à polícia estão corretas, no tocante à repressão aos protestos, mas também pra dizer que nunca existe desculpa para a violência contra a polícia. E que, mesmo diante disso, mesmo as pessoas engolindo esse argumento, essa foi uma declaração totalmente vazia, porque não diz nada sobre as lutas do movimento de direitos civis, no passado, em que a polícia estava violentamente abusando dos americanos negros.

Mesmo o próprio Obama teria de reconhecer a legitimidade da autodefesa naquela ocasião. Então o reformismo também não diz muito sobre como responder a esse mesmo tipo de fenômeno. O perigo do reformismo é fácil de ver no pedido ao FBI em dirigir as investigações; o FBI?, fala sério!, não pode ser uma sugestão séria. E ainda assim, muitas das ditas organizações de direitos civis estão seguindo nessa direção, que é contrária às reivindicações por maior controle substantivo comunitário sobre a polícia, organizações elas próprias frequentemente muito reformistas. Esses comitês de supervisão comunitária frequentemente são instituições sem dentes, sem qualquer força para provocar a demissão de policiais abusivos e violentos.

Podemos pensar nos frequentes assassinatos de negros pela polícia, que você mencionou acima, como estratégia para controlar a comunidade negra que funciona junto com o encarceramento em massa?

Absolutamente. E eu penso que o encarceramento em massa não é algo sobre as prisões apenas, é a polícia e as prisões como um complexo. É um processo de aterrorizar as comunidades e pegar quase aleatoriamente certos membros dessas comunidades, para colocá-los na prisão — nós dizemos “quase” mas, repito, 92% daqueles presos em Ferguson por baderna são negros. Não precisa nem ser dito que as estatísticas mostram que as pessoas brancas não são acusadas por baderna, porque é o tipo de acusação barata lançada sobre alguém.

Se você estiver perto de um policial nos EUA, e eu acredito que em muitos outros lugares seja a mesma coisa, tudo o que você tem de fazer é questionar a autoridade dele para realmente ver a fúria com que ele está preparado para reagir. Isto é porque o sistema requer que eles não apenas estejam dotados da força de lei que lhes é concedida, como também um poder discricionário na rua que é, realmente, um poder soberano para decidir quem vai preso e quem não vai, quem é sujeito a uma violência legal, e quem não é.

Eu mesmo caminhando pela rua não sou avaliado como alvo dessa violência na maior parte do tempo, mas qualquer jovem negro está já é automaticamente um alvo potencial para a violência. Então o policiamento é parte do sistema de encarceramento de massa que inflige terror àquelas comunidades, que destrói comunidades e separa famílias, assim como a escravidão fazia na maior parte do tempo, e é realmente uma tentativa de controle social através da submissão dessas comunidades.

Não se trata simplesmente de levar uma percentagem grande em termos numéricos, o que ocorre, mas é também aterrorizar e forçá-las à submissão. Houve, como eu disse, jovens negros mortos várias vezes no último mês, mas o que ficou no caso de Ferguson não foi a matança, mas a resistência de milhares de pessoas, mas uma resistência de pequenos números numa pequena cidade que, independente de toda a força e atenção e tentativas de cooptação, continua nas ruas todas as noites, e que responde com diversas táticas às tentativas policiais de cooptação, como as que rondaram na mídia ontem, apesar de tudo isso, as pessoas novamente rebelaram-se na noite passada, dizendo que não vão comprar essa história da polícia estar do nosso lado.

Em resposta ao que foi dito acima, sobre a resistência de pequenos números de pessoas, nós poderíamos falar da importância da subjetivação ao redor do que está acontecendo em Ferguson, ou noutras palavras, como a comunidade negra em Ferguson foi capaz de transformar o medo do controle policial numa vontade de tomar as ruas. Algumas vezes, esta transformação acontece, mas nem sempre, o que poderia explicar essa mudança? E teria o evento precedente do assassinato de Trayvon Martin contribuído nessa capacidade?

Está certo. Nós estamos num momento histórico que precisa ser entendido como muito específico e, ao mesmo tempo, parte de uma longa trajetória histórica. Isto significa que a resposta emocional à outra matança na comunidade de jovens negros é causa de raiva, mas também causa de desespero e um tipo de sensação de desamparo, como eu disse antes, diante do fato que talvez nada vá acontecer para mudar isso, que é uma constante, e nada de novo aqui ou uma exceção. É uma realidade constante mas, ao mesmo tempo, essa mesma maré de desamparo dá espaço para sentir que nada há a perder com a resistência.

Se você colocar-se nos sapatos de um jovem negro que, unicamente por ser jovem negro, tem 30% de chance de gastar uma boa porção da vida na prisão, aí o risco de continuar no mesmo status quo é quase tão alto do que o risco de sair à rua e resistir, mesmo se nenhuma forma de transformação estiver garantida. Então você tem que combinar a situação subjacente com o senso que nós estejamos rompendo a hipnose pós-racial, uma hipnose que tinha atingido o pico na eleição de Obama, em 2008.

Desde então, desde antes da posse de Obama, Oscar Grant foi assassinado por um policial em Oakland, estalando séries de revoltas, e levando a uma transformação maior da situação política em Oakland e na Califórnia. Não muito depois, o assassinato de Trayvon Martin trouxe à cena nacional um debate muito similar.

Então você vê as pessoas gradualmente chegando à conclusão que a ideia do pós-racial é uma piada brutalmente doentia e saindo da zona de conforto da presidência de Obama, para entrar numa maior vontade de resistir. Eu penso que é um passo imenso em termos históricos, e apesar de tudo foi importante para Obama ser eleito, porque foi muito importante para as pessoas chegarem à conclusão que ele não vai nos salvar.

Agora que passamos por isso e temos um presidente negro que está fingindo não ver este tipo de violência racializada, que faz declarações tão ridículas sobre Trayvon Martin e Mike Brown, que continua financiando o governo de Israel enquanto ele continua bombardeando Gaza, e agora que temos um candidato potencial em Hillary Clinton, que está inclinada a fazer muito pior, então fica muito mais fácil para as pessoas chegarem a uma concepção clara da realidade e agir a partir dela.

Sobre outro precedente histórico a falar é o do movimento Occupy e as conexões nacionais que ele estabeleceu, que nós vimos emergir entre Ferguson e outras cidades nos EUA rapidamente. Podemos pensar no Occupy como um momento-chave que ativou o nível de resistência que nós vemos hoje?


A resposta, assim como qualquer resposta sobre o Occupy, é sim e não. Sim, porque Occupy é um marco importante para o recente fenômeno político nos EUA. Ele certamente influenciou toda uma geração de radicais e militantes pelo país, e galvanizou a vontade de agir, e forjou e reforçou certos modos de ação como assembleias, democracia popular, protestos de rua. Não, no sentido que nós precisamos entender o próprio Occupy como parte de uma trajetória histórica; na Califórnia, o Occupy teve sua natureza militante, radical, em grande parte por causa da organização ao redor da morte de Oscar Grant, em 2009.

Aquela organização fornece um entendimento da realidade da polícia e da vontade de engajar-se na ação de rua e o reconhecimento de que aquela ação poderia trazer transformações e benefícios bem reais. Essas foram lições que nos foram trazidas pelo Occupy. E mesmo além daquela realidade local, se nós estamos falando sobre Occupy numa escala global, então nós estamos falando sobre a Primavera Árabe Norte Africana, os indignados na Espanha, as ondas de rebeliões através do mundo e que se tornaram um elemento definidor dos últimos 10 ou 20 anos. Então, o próprio Occupy é parte dessa trajetória mais abrangente que permitiu avançar em certos sentidos e que se alimentou de entendimentos e conexões existentes.

E parte da razão pela qual não podemos centrar no Occupy, é que nós podemos cair no risco, de novo, de cair no libertarianismo civil [civil libertarianism], ou cair na negligência das realidades históricas do que o policiamento significa nos EUA.

Então você tem, por exemplo, o Anonymous, que com todas as críticas que se possam ter a respeito deles, teve um papel importante em muitos avanços políticos e nos eventos em Ferguson, e fez mais para os eventos de Ferguson do que todos os liberais por aí no Tuíter. Mas mesmo o Anonymous está clamando por reformas limitadas quanto à vigilância e militarização policiais, porque se você abstrair da história da polícia e da supremacia branca, você iria entender o que se passa em Ferguson como apenas um problema de aparelho técnico que a polícia carrega, em vez de ver a função estrutural que a polícia exerce.

E é aí que nós precisamos das duas coisas juntas. Isso se relaciona de várias maneiras ao Occupy, como ele próprio se despedaçou e se dividiu ao redor dessa questão: de nós simplesmente reformarmos a democracia americana, de maneira a trazê-la para mais perto da Constituição; ou de nós radicalizamos a democracia americana para compreendermos a história da supremacia branca de que a Constituição é parte?

Uma última pergunta poderia ser novamente sobre a comunidade negra em Ferguson, porque nós temos visto algumas imagens de homens negros na grande mídia que estavam falando contra a violência, mas sem distinguir sobre a violência da polícia. Em vez disso, tudo se torna violência. E nossa questão é: você pensa que isto pode ser sinal de uma fratura na comunidade negra, tanto em Ferguson quanto fora, que tem a ver com questões de classe?

Sim, mas entender e trazer à mente que a classe não está se manifestando estritamente como um fenômeno econômico, mas primeiro como político, no sentido que ser classe média é muito mais um arranjo mental e muito mais uma identidade, a despeito da renda de cada um.

Então eu penso que você tem essa fratura, e a expressão geralmente usada nos EUA tem a ver com o que é chamado “política da respeitabilidade”, noutras palavras, demonstrar o quão bem comportado você é, na esperança de que comportar-se bem vai realmente transformar as relações sociais, quando nós sabemos muito bem que, na realidade, não é nada disso que acontece.

E então o argumento constante que é feito: se os jovens negros se vestissem um pouco melhor e usassem as calças mais pra cima, se falassem um pouco melhor, então, talvez, a situação deles melhoraria. Mas nós sabemos de uma realidade estrutural que esse não é o caso, que não existem empregos aí esperando para as pessoas que se comportam melhor, a situação é muito mais profunda. Mas você vê a mesma coisa se manifestando e você vê mesmo em alguns dos seus mais porta-vozes mais radicais, você em Al Sharpton chegando e agarrando a família de Mike Brown e colocando-os atrás dele, e tentando urgir que as pessoas se acalmem. E você tem todo um número de comentadores liberais fazendo a mesma coisa e enfatizando a questão da violência dos protestos, que é realmente uma perversão incrível e inversa da realidade dos protestos, que são protestos contra a violência.
Quase não precisa ser dito, mas os manifestantes em Ferguson não mataram um único ser humano, o que não pode ser dito da polícia nas ruas. Então se nós estamos falando sobre qualquer coisa que não seja a violência da polícia, nós estamos já no território do inimigo. Mas isso vai mesmo além disso, porque mesmo aqueles que enfatizam a violência da polícia, que dizem, bem, isto tem a ver com a militarização da polícia ou sobre como a polícia respondeu de uma maneira brutal, eles fazem isso de um jeito que separa e corta fora a causa real dos protestos — a saber, a violência contra Michael Brown. E então isso precisa ser o ponto de partida.

As pessoas não vão às ruas para protestar contra a resposta policial ao protesto, elas vão às ruas para protestar contra o assassinato racista de Michael Brown. Isso precisa ser mantido em foco e haverá uma quantidade de vozes chamando por mais resposta não-violenta, mas se nós entendermos a violência como a violência contra seres humanos, não teve realmente alguma, se é que teve alguma, violência nesses protestos. A violência tem sido a violência contra Michael Brown e a violência da polícia contra os manifestantes e nós não deveríamos desistir dessa retórica, embora isso será mais perigoso.

Eu penso que os próprios manifestantes na sua resposta, na noite passada, mandaram uma mensagem muito clara sobre esses mediadores autointitulados, a que estes não falam pelos manifestantes, que eles não falam pelas pessoas nas ruas que, eu sustento, tem um melhor entendimento sobre a mudança social, do que os porta-vozes liberais que insistem que o melhor modo de mudar a sociedade americana é ir através dos canais estabelecidos, eleger representantes, eleger um Democrata.

Toda a história americana e possivelmente a história do mundo mostram que isso é simplesmente inverdade, que o movimento dos direitos civis foi bem sucedido como resultado da força do movimento do Poder Negro, que as instituições políticas em Oakland, onde Oscar Grant foi assassinado, só começaram a mexer-se quando as pessoas se revoltaram e se rebelaram. E a mesmíssima coisa está acontecendo em Ferguson hoje. Nós podemos simplesmente apontar para o fato que o xerife local foi afastado das ruas, para dizer que esses protestos já começaram  a funcionar.




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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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