agosto 10, 2014

"Leninismo biopolítico", por Bruno Cava

PICICA: "No Dia do Trabalho deste ano, o blogue publicou Lênin para o século 21, arriscando novamente dizer “Lênin”. Invocá-lo num momento de recomposição não foi por acaso, considerando os impasses, recuos e dificuldades das lutas, diante de um capitalismo altamente pervasivo, pronto a esquadrinhar e recuperar as formas de vida que resistem e criam alternativas. Mas dificuldades também diante de um estado neocolonial que se mostra histericamente repressivo apenas à exposição pela resistência da violência de classe e racista, normalizada na concentração de mídias, propriedade, meios punitivos e riqueza nas mãos de poucos. Lênin é ir além da questão do antagonismo, e pensar também a organização do comum. Não de fora, mas como Lênin: nas lutas e para as lutas, sem receio de apostar forças organizativas e assumir a iniciativa. Ousar. O comum começa e termina (recomeçando) nas lutas. 

Este texto avança nas questões e se orienta, em princípio, como um prolongamento do debate proposto em Dialogando com o comum, publicado nas Brigadas Populares de MG, por Guilherme B. Lima."

Leninismo biopolítico
No Dia do Trabalho deste ano, o blogue publicou Lênin para o século 21, arriscando novamente dizer “Lênin”. Invocá-lo num momento de recomposição não foi por acaso, considerando os impasses, recuos e dificuldades das lutas, diante de um capitalismo altamente pervasivo, pronto a esquadrinhar e recuperar as formas de vida que resistem e criam alternativas. Mas dificuldades também diante de um estado neocolonial que se mostra histericamente repressivo apenas à exposição pela resistência da violência de classe e racista, normalizada na concentração de mídias, propriedade, meios punitivos e riqueza nas mãos de poucos. Lênin é ir além da questão do antagonismo, e pensar também a organização do comum. Não de fora, mas como Lênin: nas lutas e para as lutas, sem receio de apostar forças organizativas e assumir a iniciativa. Ousar. O comum começa e termina (recomeçando) nas lutas. 

Este texto avança nas questões e se orienta, em princípio, como um prolongamento do debate proposto em Dialogando com o comum, publicado nas Brigadas Populares de MG, por Guilherme B. Lima.

Lenin


1. Lênin injetou pragmatismo em Marx. Ele deslocou o foco do marxismo da época: de ciência econômica à política de classe, da espera das condições objetivas aos fatores subjetivos da revolução, de ideais progressistas de construção do socialismo à ruptura histórica, de boas intenções à força organizativa real, suas tarefas, sua paciência. Marx é filósofo do antagonismo, Lênin também da organização. Sem autonomia, não há organização comunista; sem organização, as lutas se tornam episódicas.
2. O triângulo leninista: subjetividade – organização – revolução. Lênin analisa o desenvolvimento capitalista na Rússia e enxerga não só uma mudança de técnica e formas econômicas, mas mutações antropológicas, de sensibilidade, de percepção de tempo e espaço, de sonhos implicados na vida. Uma imaginação maior, em movimento. Diferentemente da tradição proudhoniana, os humanos não caem do céu na luta como indivíduos livres prontos a depor a autoridade: os participantes do soviete se forjaram numa nova composição subjetiva, e o soviete foi a maneira como tentaram levar adiante, até o fim, essa transformação. O soviete, em consequência, embora em 1905 tivesse como pauta consolidada a revolução burguesa, à semelhança da francesa, foi muito inovador porque envolveu novos meios subjetivos de luta proletária no terreno da organização. Por mais que o capitalismo na Rússia estivesse atrasado; a potência subjetiva dos trabalhadores vinha se qualificando por décadas de agitação e organização.
3. Lênin não mistifica o soviete, nem romantiza a horizontalidade, nem vê revolução acontecendo apenas com a generalização de instâncias de consenso e autogoverno. Em 1917, socialistas e mencheviques tentavam limitar o soviete às funções de representação dos interesses de classe, incorporando-o à democracia burguesa a partir das palavras “pluralismo” e “participação social”. Num pluriverso de condições históricas favoráveis, o partido bolchevique de Lênin decidiu apostar tudo e passou a tensionar os impasses e limitações do soviete para, pela via do partido, tomar a vanguarda dos acontecimentos e levar a revolução até o fim.
4. O triângulo leninista, no século 21, deve ser atualizado, assim como Lênin atualizou Marx; o soviete, a comuna.  O desenvolvimento capitalista não se dá como progresso homogêneo e linear, mas por saltos. Tais saltos acontecem porque o capitalismo tem uma capacidade adaptativa. Reestrutura-se para neutralizar os avanços da luta de classe, assim como o governo provisório de 1917 tentou recuperar a revolução proletária na democracia burguesa, inclusive empregando a esquerda no próprio governo. Os saltos do capitalismo, portanto, são reflexos e decorrentes dos saltos das próprias lutas, quando conseguem “circuitar” o triângulo subjetividade – organização – revolução.
5. O soviete exprimia a subjetividade da sociedade fabril, através da greve de ocupação, da rede entre sovietes das cidades, da imprensa operária, da possibilidade de gestão democrática da produção. Essa subjetividade não acontecia somente na fábrica. Era uma inteira reorganização da sociedade e incidia, sobretudo, na formação do próprio humano, dos indivíduos e coletivos. Hoje, depois de sucessivas reestruturações do capitalismo, a subjetividade não só escapou dos muros da fábrica, como se disseminou pelas redes produtivas da metrópole. A metrópole é a usina biopolítica do século 21, cujos fluxos são geradores de valor e explorados como tal. Essa situação decorre, acima de tudo, das conquistas das lutas que ampliaram a produção de subjetividade. Mudaram o próprio conceito de sujeito de luta: abarcando lutas de afirmação racial, feministas, LGBTT, sem-teto, sem-emprego etc.
6. Na realidade, o leninismo é desde o princípio biopolítico e isto já está germinal no Manifesto comunista, em que Marx e Engels não separam luta de classe de formas de vida. No entanto, a biopolítica conquistou centralidade a partir das lutas do ciclo sessentoitista e alterglobalização, bem como da reestruturação capitalista dos anos 1970 e 80. Muda o conceito de luta de classe: a classe é multiplicidade. Isto não significa desorganização, mas uma mudança qualitativa do triângulo de Lênin. Não adianta, agora, ficar nostálgico de relações de produção de subjetividade obsoletas. Seria incorrer na romantização dos narodnikis, — liquidada teoricamente por Lênin ou Rosa Luxemburgo, — atrás de enclaves passadistas, pré-capitalistas, quando a franja do desenvolvimento capitalista, suas instâncias de controle e exploração, já estão muito além disso, mais inteligentes e pervasivas.

7. O “comum”, portanto, atualiza o marxismo e o leninismo como aposta para a organização nas condições da multiplicidade. O propósito é reagrupar forças dispersas e sem conexão entre si, que só aparecem conectadas na condição de exploração e dominação, segundo a matriz integrada do capitalismo hoje. Conectando-se, requalificam-se em suas diferenças próprias, sem imperativo de unificação nalgum novo sujeito universal de classe. Menos que solução milagrosa ou panaceia, o discurso do comum põe o terreno do conflito, e não existe fora dos processos de luta e subjetivação. O capitalismo já percebeu isso há pelo menos uma década. O “comum”, além de terreno material dos conflitos sociais, é também disputado na teoria. Desde a super-financiada rede de pesquisadores referenciada em Elinor Ostrom, a nobel da economia de 2009, que tenta recuperar o “comum” pela via neoliberal, até os desvios mistificadores ou utópicos, como os “redistas” (Benkler), “culturalivristas” (Lessig), “digitalistas” e “cognitivistas” (apologia acrítica do “capitalismo cognitivo”).

8. O enfraquecimento da forma estado-nação, na realidade, já está no próprio Lênin, ao se debater com as teorias de Kautsky e Hilferding. Contra o primeiro, ele rejeitou sumamente a hipótese de uma globalização capitalista “lisa”, que nivelaria todos os estados. Na virada para o século 20, o estado-nação deu lugar ao estado-imperialista, que passa a terceirizar as contradições, e provocar um realinhamento global dos circuitos capitalistas entre as potências hegemônicas.

Negri e Hardt atualizam essa passagem leninista, do estado-imperialista para o Império. Não significa, como alguns lugares comuns doutrinários insistem, em voltar ao achatamento de Kautsky. Pelo contrário, significa uma nova estratificação: o esquema negriano se dá em três níveis integrados, articulados segundo as formas polibianas da monarquia, aristocracia e democracia. Existe, sim, o nível dos estados, em que vigora uma monarquia (os EUA), mas também o nível da governança financeira, seus institutos de mercado mundial e instâncias de decisão e, além disso, — Marx demanda, — o nível de um proletariado global explorado de maneira deslocalizada, em rede e a grandes distâncias e velocidades. Quer dizer, existe também a força viva e produtiva que impele as lutas e, parasitada, o próprio capitalismo global e todos os estados, e que deve ser considerada como potencial de produção de um “comum” globalizado.

Nesse cenário, Negri e Hardt não propõem abrandar nenhuma contradição (seria a missão do capital), mas aguçá-las num esquema mais complexo, sugerindo estratégias mais sincréticas e flexíveis, do que aquele vigente à época do choque de imperialismos, de Lênin. Daí, também o funcionamento multinível das resistências: tanto contra os golpes monárquicos dos EUA, por ex., a invasão do Iraque; contra o fortalecimento de estados cada vez mais ditatoriais, a serviço da expansão e aprofundamento do capitalismo financeiro, como na China ou, em parte, no neodesenvolvimentismo brasileiro, dirigido pela ânsia em atrair capitais e garantir altas margens de lucro aos investimentos; e em favor, sempre, da possibilidade de articular lutas aproveitando os contágios — também em rede e a grandes distâncias e velocidades, como no ciclo alterglobalização, nos Dias de Ação Global e nas lutas do tipo “Praça Tahrir”, a partir de 2011, — que eu chamaria de “lutas do comum”.

9. O ponto leninista é, ao mesmo tempo, compreender a subjetividade e fortalecer linhas de organização, no sentido das lutas. Nem apenas fazer ciência das contradições do capitalismo, como D. Harvey, porque o capital não morre de contradição. Nem recuar nostalgicamente para refúgios não-capitalistas ou depósitos de pureza, como socialistas populistas, apologetas das “bases”. Nem incorrer em qualquer tipo de elogio ao desenvolvimento por si mesmo. Nem ficar apenas na denúncia moral, porque se dependesse de crítica moral o capitalismo já teria acabado, além do que, sem força organizativa, o triângulo não fecha. Ir além da mera “federação das barricadas” proudhoniana, e contornando sucessivamente as tentativas de recuperação pela democracia burguesa do “pluralismo e participação social”, ou de maneiras mais sofisticadas, numa espécie de “capitalismo 2.0″. O “comum”, assim, não é hipótese teórica. É aposta política em andamento, interna às lutas de um novo ciclo intensificado no Brasil e no mundo nos últimos anos.

10. Em termos práticos, isto significa deslindar das transformações de subjetividade o potencial de organização e ruptura. Ou seja, é construir na expansão de redes e fluxos da cidade, a capacidade de difundir “sovietes biopolíticos”, articulando produção e decisão; construir para além do direito à moradia, o direito de cultivar e desenvolver formas de vida imediatamente implicadas na luta; para além da reivindicação de trabalho, constituir modos autônomos de trabalhar cooperativamente, em organização transversal, reapropriando-se da riqueza social; fazer da produção cultural uma trincheira para a retomada expressiva da paisagem (pixo, intervenções) e do espaço público/privado (ocupação do “comum”) ; derrubar os muros epistêmicos da universidade para conectá-la aos saberes no sentido mais amplo; não apenas defender a favela do racismo institucionalizado no estado, mas construir a favela como cidade, a favela como qualificador da cidade em suas várias dimensões; é ir além da discussão das tarifas de ônibus, para promover a mobilidade urbana e, além dela, a mobilização. Essa mobilização das subjetividades, intensificada por uma força organizativa de novo tipo, imanente à multiplicidade, ela é a própria multidão — que não está dada, é tarefa leninista a fazer.


Imagem: Lenin (Andy Warhol, 1986).

Fonte: Quadrado dos Loucos

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