setembro 30, 2014

"A falácia democrática", por Gianni Carta

PICICA: "A tradição liberal é antidemocrática, segundo Jacques Rancière. O objetivo é criar um governo dos educados e iluminados"

Entrevista

A falácia democrática

A tradição liberal é antidemocrática, segundo Jacques Rancière. O objetivo é criar um governo dos educados e iluminados 

por Gianni Carta publicado 29/09/2014 
 
Jacques Rancière
Jacques Rancière, a democracia é uma ideia extravagante

Ironia das ironias foi o fato de "a direita americana antidemocrática" pretender exportar a democracia durante a invasão do Iraque em 2003, diz o filósofo francês Jacques Rancière a CartaCapital. Em O ódio à democracia, a ser lançado em breve pela Boitempo (128 págs., R$ 29), Rancière, de 74 anos, "rompe" (termo usado com frequência pelo filósofo) vários mitos construídos para inventar aquilo que acreditamos ser uma democracia. De saída, o conceito "pode significar diversas coisas bastante diferentes e contraditórias". E eis outros mitos rompidos: o sufrágio universal e a subsequente representação não são uma forma democrática através dos quais as pessoas exprimem suas preferências políticas. De fato, a alternância entre os partidos Democrata e Republicano nos Estados Unidos, ou entre a direita e os socialistas na França, é apenas uma escolha das minorias. O liberalismo anglo-saxão defendido por essas minorias é antidemocrático, visto que a igualdade, ou pelo menos a possibilidade de igualdade, é um princípio fundamental da democracia.

CartaCapital: O senhor teve problemas com Althusser em maio 1968, porque via uma diferença entre teoria e prática, mas também porque ele acreditava no poder do professor?

Jacques Rancière: Não tive conflitos com Althusser, como um aluno tem com o seu professor. Fiquei impressionado em maio de 1968 com o fato de a insurreição, a greve geral, o movimento ter deixado em total contradição a doutrina de Althusser, a crítica da ideologia, a afirmação do primado da ciência. Althusser havia criticado fortemente seus alunos. Dizia que eram pequenos burgueses. Do ponto de vista de Althusser, a revolta de 1968 não foi nada. No entanto, a revolta causou a maior greve de trabalhadores da história francesa. Passei a interpretar a teoria de Althusser como aquela na qual a ação política dependerá sempre da ciência transmitida por pessoas com a autoridade para fazê-lo. Testemunhei a contradição entre a tese marxista exacerbada e os movimentos reais.


CC: Em Le Maître Ignorant, de 1987, o senhor defende a igualdade das inteligências. Por sua vez, seu livro atual estipula que a igualdade das inteligências depende da vontade e da condição social. Igualdade é um tema central em seu pensamento.

JR
: O que disse sobre a igualdade é derivado da minha pesquisa sobre a história da emancipação da classe trabalhadora e, em parte, da ideia de emancipação intelectual, desenvolvida no século XIX por Joseph Jacotot. O ponto central é o seguinte: a igualdade não é um objetivo distante, mas um ponto de partida. E a partir desse ponto de vista a emancipação é uma afirmação de capacidade: aqueles capazes de gerir um ateliê ou empresa podem discutir e deliberar sobre os assuntos da comunidade. Fundamental era dissecar essa inversão de posições. Existem oportunidades para pessoas desiguais, dominadas, para traçar o caminho da autoafirmação.


CC: O senhor é um filósofo por formação, ensina e escreve livros de filosofia. Mas muitos críticos dizem ser impossível categorizá-lo graças ao seu interesse por uma série de temas: política, história, cinema, arte, estética.

JR: De acordo com a igualdade das inteligências, o mesmo indivíduo é capaz de interpretar um texto literário, uma situação política ou um filme. O que digo não tem nada de original. Pertenço à década de 1960, quando houve uma espécie de explosão no campo da filosofia. Michel Foucault, por exemplo, estava completamente fora do âmbito normal da filosofia. Interessou-se por hospitais, asilos, prisões. Se a filosofia tem um papel, é o de romper todas essas identificações e o de destacar uma espécie de capacidade intelectual das pessoas. E assim, colocaremos fim nessa rigidez, nessas divisões entre as disciplinas e competências.


CC: Li que a política lhe interessa a partir da perspectiva da literatura. Se verdade, entendo como Victor Hugo poderia formar uma opinião política. Mas como pode Joseph Conrad inspirá-lo politicamente?

JR: Nunca disse que a política me atrai a partir da literatura. Dito isso, há uma forma de política exclusiva à literatura. E esta forma de política não se limita a visões de mundo, aos engajamentos políticos de escritores ou às suas maneiras de representar a sociedade. Há uma relação entre os dois tipos de democracia, mas elas são diferentes. Por que Conrad? Conrad faz parte de um movimento a envolver escritores como Flaubert, Joyce e Virginia Woolf, entre outros. Quebram uma forma de autoridade que era inerente às estruturas narrativas tradicionais.  Flaubert é um exemplo dessa mudança. Uma camponesa torna-se tão interessante quanto uma grande dama. Sua vida, considerada medíocre e repetitiva, torna-se palco de uma tragédia. Considere o prefácio de O Negro de Narciso (The Nigger of the "Narcissus", de 1897). Eis a possibilidade do herói fictício, mesmo em um sentido negativo. Conrad pertence a essa revolução democrática do romance, embora ele tenha uma posição reacionária: denunciou os anarquistas e os revolucionários. Mas acho isso interessante, porque há uma tensão entre uma democracia específica à forma ficcional e à estética e, ao mesmo tempo, narrativas revolucionárias, ou antidemocráticas, no sentido literário.


CC: O termo democracia "é uma expressão de ódio" desde os tempos da Grécia, quando alguns achavam mais crível o governo da multidão. O ódio continua. A violência ligada ao ódio é novidade. O senhor escreve: "A democracia pode criar a 'coragem, por isso a alegria'". De que forma?

JR: Tentei, em O Ódio, dizer que a democracia não é mera forma de governo ou um sistema igualitário longínquo. Ao contrário, a democracia é, antes de tudo, uma ideia extravagante. Expus a tese de um poder para aqueles isentos de poder e sem títulos ao poder. Escrevi que, paradoxalmente, por causa da falta de poder há política porque há democracia. Há política graças ao poder paradoxal de pessoas que não são nada, não têm qualidades especiais e não possuem títulos. Há democracia nos recentes movimentos: “Primavera Árabe”, “Indignados”, “Occupy” etc. Nesses casos, solidifica-se um poder das pessoas em estado de excesso, que é independente em relação ao poder inteiramente incorporado no Estado. Sublinhei que a democracia não é uma forma de governo, é sempre um poder em estado de excesso em relação à democracia formal, sem a necessidade de ser transformado em um futuro remoto a ser obtido após uma revolução a se distanciar. Portanto, a democracia real é uma forma de ação, não apenas o futuro de uma igualdade econômica compartilhada. Quando falo de democracia real, em tensão com as chamadas instituições democráticas, falo sobre coragem e alegria porque tentamos inventar formas de partilha de poder, como as inteligências iguais.

CC: O senhor faz um esboço um pouco zombeteiro do homem em busca da justiça global: são jovens consumidores, imbecilizados depois de comer muita pipoca diante de programas de reality shows. E isso sem contar suas ilusões anticapitalistas.

JR: Esse é o esboço traçado pelos antidemocratas, como o filósofo Alain Finkielkraut na França. O objetivo é reduzir novos movimentos sociais a jovens exaltados que sabem ler, mas são incapazes de julgar os fatos políticos. Isso não significa que eu ache todos esses movimentos positivos. Por exemplo, no movimento ecológico há uma mistura de poder a todos e, ao mesmo tempo, o poder da ciência. Vimos novas formas de afirmação igualitárias, mas ao mesmo tempo certas perguntas não encontram respostas. “O que vamos fazer depois de suas ocupações?” Há contradições, mas movimentos interessantes trazem contradições.


CC: A associação que fazemos entre democracia e capitalismo remonta aos Pais Fundadores nos Estados Unidos?

JR: A tradição liberal é antidemocrática. Os Pais Fundadores não fundaram a democracia porque redigiram uma Constituição para limitar o poder do povo. Queriam era garantir o poder a todos, em princípio. Mas o poder iria para os esclarecidos, educados. E em suas mentes, é claro, iluminados e educados eram proprietários capazes de administrar suas propriedades e, portanto, também capazes de pensar sobre o papel da propriedade no centro da sociedade. O projeto era precisamente submeter a democracia, isto é, o poder de todos, e assim criar um governo da elite, dos ricos, e seus intelectuais. E chamamos esse tipo de governo de democracia, eis o problema.


CC: O senhor pleiteia que "não vivemos em democracias", mas em Estados de Direito oligárquico. Eleições e representação são mitos. Mas, e se a esquerda da esquerda ganha aqui na França ou em outro lugar?

JR: A esquerda da esquerda é um conceito um tanto ambíguo. Existe uma classe de políticos que tomou o poder. De direita ou esquerda, eles têm programas que não são feitos por eles. São impostos pelas instituições financeiras supranacionais e/ou internacionais. Há grupos marginais, mas geralmente não tentam minar a própria estrutura à qual a democracia é submetida. Não consideram a questão do que é uma verdadeira democracia para o povo.


CC: Como o senhor vê a ascensão da extrema-direita na Europa?

JR: É uma reação à tomada do poder por uma pequena minoria. O Frente Nacional, na França, sempre se posicionou contra um sistema que tinha duas legendas a compartilhar o poder indefinidamente, e a empurrar o povo para fora do sistema. É um erro, creio, explicar o sucesso da extrema-direita apenas à ascensão do racismo e da xenofobia. Isso a despeito do fato de que parte da extrema-direita é abastecida por esses temas. Mas o sucesso do Frente Nacional tem outras fontes, como o déficit real da democracia, e ao fato de a direita e a esquerda fazerem a mesma política. Tudo isso criou um espaço, agora ocupado pela extrema-direita. A ascensão da extrema-direita também está ligada ao fracasso histórico do marxismo. A esquerda perdeu credibilidade.


CC: A extrema-direita ganhou muitos votos por se opor aos imigrantes. O senhor cita Hannah Arendt e Burke. Esses pensadores dizem que "os direitos humanos são vazios e tautológicos", visto que o homem sem classe social não tem direitos. São os casos dos africanos e árabes que chegam à Europa. A questão se torna ainda mais complicada com a globalização.

JR: Existe uma desordem no mundo relacionada ao realpolitik. É liderada pelas grandes potências há mais de meio século. Deixo de lado o caso do mundo islâmico, outro vasto tema. No mundo ocidental, em sentido amplo, há contradições entre a restrição da livre circulação de pessoas, mas não há entraves para a livre circulação de mercadorias. Portanto, estamos em um mundo onde há grandes áreas sem perspectivas. Por isso, uma massa de pessoas é impulsionada pela atual distribuição de riqueza a tentar ir onde está o capital. O motivo: é lá onde existe a possibilidade de encontrar trabalho. E o Ocidente acha que deve filtrá-los. Eles devem ser mandados de volta para suas casas. Existem outros dois tipos de problemas. Os imigrantes bloqueados e aqueles já instalados nos nossos países. Eles têm um status inferior, são relegados às margens da sociedade. E, de fato, há a questão dos direitos humanos. Há um movimento democrático que poderia ser colocado a serviço dessas populações colocadas às margens do sistema. Porém, mesmo essa ação democrática foi traída pelas organizações e pelos partidos oficiais. O resultado é que temos agora esse lado violento nos subúrbios, como vimos há dez anos na França. E há esse sentimento de mal-estar que habita os imigrantes e os ocidentais a convivercom eles.

CC: Muitos dos críticos da democracia nos EUA eram a favor da invasão. É um paradoxo, não?

JR
: Essa confusão é o resultado do fato de a democracia poder significar coisas extremamente diferentes e contraditórias. A direita americana pensou que a democracia era boa para os iraquianos: a democracia no Iraque seria como aquela no Ocidente. Mas como a antidemocrática direita americana pode exportar a democracia? Obviamente, eles estavam completamente errados. Não há paradoxo porque a própria ideia que os americanos tinham de democracia foi instrutivo. É Isso que emerge da famosa declaração de Donald Rumsfeld diante dos saques após a queda de Saddam: a liberdade é uma bagunça, é anarquia.


Leia a entrevista em francês neste link.

Fonte: Carta Capital

"Eleilções 2014: Levy e a Maldade Banal da Política Brasileira", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Da Banalidade do Mal até a Maldade Banal: a política brasileira chega, via aerotrem, ao fundo do poço."

Eleilções 2014: Levy e a Maldade Banal da Política Brasileira

Angelus Novus_ Paul Klee
Levy Fidelix, o eterno candidato nanico do aerotrem, foi o destaque do debate entre presidenciáveis de ontem. Por si só, tal fato já seria grave. No entanto, a maneira como isso  aconteceu tornou tudo mais acintoso: ao ser perguntado pela candidata do PSOL, Luciana Genro, sobre direitos para a comunidade LGBTT, ele teve em um surto de homofobia no qual equiparou homossexuais a pedófilos, atacou o casamento gay e falou que "nós" -- as pessoas de bem? -- deveriam ir pra cima "dessa minoria" -- isso tudo num país no qual os crimes de ódio contra homossexuais, travestis e transsexuais motivados simplesmente por sua orientação sexual, vestimenta ou identidade de gênero ocorrem, cada vez mais, aos montes.

Pior ainda, Luciana não respondeu à altura, tampouco os outros candidatos se importaram em  usar de seu tempo para repreendê-lo. Passou batido -- mas não pelas redes sociais, nas quais a hashtag #LevyVoceENojento é, nesta manhã de segunda-feira, o assunto mais abordado no Brasil pelo Twitter, nem pela imprensa internacional, como o Guardian da Inglaterra não nos deixa mentir

Enfim, no penúltimo debate antes da votação do primeiro turno, a pior eleição presidencial da (breve) história (quase) democrática brasileira encontrou seu momento emblemático. Não, não poderia ser pior, mas dificilmente seria mais ilustrativo. Não que as coisas tenham ficado ruins agora, ao contrário. 1989, por exemplo, foi nossa primeira e melhor eleição, dali em diante a situação só piorou. Mas essa piora talvez tenha a ver com a maneira como aquele eleição terminou.

Cheia de gigantes da política brasileira -- e muitos campeões da luta por liberdade e justiça social --, aquele pleito foi vencido pelo pior, mais despreparado só que mais bem financiado candidato, Fernando Collor. A história todos conhecem: dali em poucos anos, Collor foi destronado, mas o mal que ele representa jamais foi revertido. As reformas privatistas continuaram, aceleradas com mais competência por FHC e depois mitigadas com Lula e Dilma; as eleições, dali em diante, se tornaram caríssimos espetáculos de propaganda, norteados por debates superficiais e recuados.

FHC e Lula, embora tenham sido eleitos já nesse esquema, superavam em parte o processo pelo peso político de ambos. No pós-Lula, a crise ficou mais patente. A maneira como o debate não tem consistência, não é apresentado claramente e se mantém envergonhado nas entrelinhas é um espectro que envolve todos os principais candidatos. Os pretendentes folclóricos, hoje, se bandearam para jogar com frases vazias de extrema-direita. Os pequenos candidatos de esquerda, derrapam.

A distância registrada nos últimos anos entre o sistema político e as demandas é imenso. As convulsões de 2013 já deixaram isso bastante claro. Depois, se dizia: que protestem nas urnas. Mas como? As eleições, este breve momento -- o entretempo entre os mandos, onde o poder real é anomicamente mitigado --, se esvaem normalizados, esvaziados diante da irracionalidade fascista. Só havia uma saída: xingar Levy, dizer-lhe um simples "cala boca, idiota" (sim, Lucas, você tem razão). Nada aconteceu, contudo.

É fato que alguma reação vá acontecer agora, para além da indignação da rede. E é bom que ocorra. Mas do que isso se trata é outra coisa: essa perplexidade letárgica que, nesse caso, se manifestou na normalização da homofobia como "opinião" -- ainda que "folclórica" --, o que se estende para uma série de outras condutas. Sim, foi um "instante" que passou e deixou, pelo menos uma parte de nós, de queixo caído. Mas um instante, e nada mais, é o necessário para matar uma pessoa ou o mundo todo.

É a partir dessa naturalização (lenta, gradual...) do absurdo que se instaura o pior dos mundos. Devagar ocorre, mas quando elas vêm, chegam rápido como um aerotrem. É preciso, como Benjamin, aprender com o anjo da História: talvez de um jeito menos depressivo, mas sem deixar de ser trágico.
Fonte: O Descurvo

"Debates eleitorais sobre a questão urbana não dialogam com demanda das ruas’". Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito

PICICA: "Em mais uma de suas entrevistas quanto à ausência ou distorção de grandes temas nacionais no debate eleitoral, conversamos com Guilherme Boulos, para falar de políticas urbanas e de moradia e da abordagem dos candidatos sobre elas. O balanço que o coordenador do MTST faz não é nada alentador.

“Não há nenhuma proposta inovadora colocada em pauta. É o seguinte: política urbana é tomar lado. Hoje, quem controla a política urbana no país é o capital privado, as grandes construtoras, incorporadoras, empreiteiras. É essa gente que faz a verdadeira gestão do planejamento urbano da cidade, de acordo com seus interesses de lucros e rentabilidade. Enquanto tal lógica não for sanada, o problema da moradia não será seriamente enfrentado”, afirmou.

Em sua visão, o debate, ao menos entre as candidaturas dominantes, está colocado “à direita”. “Estão criticando o Minha Casa Minha Vida, mas não pelo que tem de ruim, mas pelo que tem de bom, que é o subsídio”, comentou.

Boulos reconhece o avanço do governo em investir grandes somas num programa habitacional, mas bate na tecla, a partir dos próprios dados oficiais, de que tal iniciativa não poderá prosperar enquanto for pautada pelas grandes empreiteiras que, na prática, são a voz de comando  na política habitacional.

“Não basta fazer 1,7 milhão moradias, como fez a Minha Casa Minha Vida desde 2009, com o Lula e a Dilma. Porque, a cada moradia que se constrói, são produzidos novos sem teto, na mesma proporção, pois não há política urbana que enfrente a especulação”, resumiu." 


Debates eleitorais sobre a questão urbana não dialogam com demanda das ruas’ Imprimir E-mail
Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação   
Sexta, 26 de Setembro de 2014




Em mais uma de suas entrevistas quanto à ausência ou distorção de grandes temas nacionais no debate eleitoral, conversamos com Guilherme Boulos, para falar de políticas urbanas e de moradia e da abordagem dos candidatos sobre elas. O balanço que o coordenador do MTST faz não é nada alentador.

“Não há nenhuma proposta inovadora colocada em pauta. É o seguinte: política urbana é tomar lado. Hoje, quem controla a política urbana no país é o capital privado, as grandes construtoras, incorporadoras, empreiteiras. É essa gente que faz a verdadeira gestão do planejamento urbano da cidade, de acordo com seus interesses de lucros e rentabilidade. Enquanto tal lógica não for sanada, o problema da moradia não será seriamente enfrentado”, afirmou.

Em sua visão, o debate, ao menos entre as candidaturas dominantes, está colocado “à direita”. “Estão criticando o Minha Casa Minha Vida, mas não pelo que tem de ruim, mas pelo que tem de bom, que é o subsídio”, comentou.

Boulos reconhece o avanço do governo em investir grandes somas num programa habitacional, mas bate na tecla, a partir dos próprios dados oficiais, de que tal iniciativa não poderá prosperar enquanto for pautada pelas grandes empreiteiras que, na prática, são a voz de comando  na política habitacional.

“Não basta fazer 1,7 milhão moradias, como fez a Minha Casa Minha Vida desde 2009, com o Lula e a Dilma. Porque, a cada moradia que se constrói, são produzidos novos sem teto, na mesma proporção, pois não há política urbana que enfrente a especulação”, resumiu.


A entrevista completa com Guilherme Boulos pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Após as massivas manifestações de 2013, catalisadas pelo tema do transporte público gratuito, os movimentos relacionados à moradia e mobilidade urbana adquiriram dimensão em todo país, com uma leva de ocupações urbanas, inclusive por ocasião da Copa do Mundo. Qual a sua opinião sobre a abordagem que têm recebido estes temas nos debates pré-eleitorais, especialmente aquele travado pelas grandes candidaturas presidenciais? 

Guilheme Boulos: No que se refere às três principais candidaturas, o debate sobre a questão urbana é extremamente rebaixado. Não se vê, na prática, nenhuma proposta expressiva que represente aquilo que ocorreu em junho de 2013 e nas mobilizações em relação aos temas de moradia neste ano. A discussão no campo da moradia se limita ao Minha Casa Minha Vida, ou seja, se vai continuar ou vai acabar o programa habitacional. O governo está fazendo a discussão do tema “pela direita”. O Minha Casa Minha Vida é um programa muito limitado. Nós temos críticas bastante sérias a este programa, como expressamos nos últimos meses de mobilização.

Estão agora criticando o Minha Casa Minha Vida, mas não pelo que tem de ruim, mas pelo que tem de bom, que é o subsídio. O debate se dá em torno de diminuir ou não o subsídio, uma discussão atrasadíssima. O subsídio é uma conquista da política de moradia e da política urbana. Não se faz política urbana focada em direitos sociais sem subsídio. Isso vale para o campo da moradia, do transporte, da saúde, enfim, o conjunto dos investimentos sociais.

É preciso entender que o subsídio não é um gasto. O subsídio é um investimento para garantir direito social.

Correio da Cidadania: Considera que alguma das candidaturas mais ideológicas e progressistas, ainda que com sua abrangência bem menor, têm conseguido trazer o tema à tona, de forma a fazê-lo reverberar?
 
Guilheme Boulos: Acho que sim. A candidatura da Luciana Genro, em particular, incorporou o seu programa de governo ao seu discurso público, tanto em debates como em entrevistas. Em suas alusões, aparecem muitas vezes as nossas propostas em relação aos temas de reforma urbana e da moradia, no sentido de fortalecer a gestão direta em detrimento do programa sugerido pelas empreiteiras, como ocorre na prática. Sugere partir para uma política nacional de desapropriação, regulamentação federal do Estatuto das Cidades, combate à especulação imobiliária como ponto zero para uma política urbana mais democrática... Neste sentido, nós vemos na candidatura da Luciana uma tentativa de levantar tais pontos.


Correio da Cidadania: E os candidatos aos governos de estados que abrigam cidades onde o problema se apresenta de forma mais proeminente, como São Paulo, BH e Rio, com dezenas de ocupações e reintegrações de posse em andamento: como pensa que as principais forças eleitorais, no âmbito estadual, vêm debatendo o tema das ocupações urbanas?

Guilheme Boulos: Eu tenho acompanhado o debate mais em São Paulo, onde fico. E o que tenho visto é o mesmo nível rebaixado da campanha federal. Não há, de fato, nenhuma proposta inovadora colocada em pauta. É o seguinte: política urbana é tomar lado. Hoje, quem controla a política urbana no país é o capital privado, as grandes construtoras, incorporadoras, empreiteiras. É essa gente que faz a verdadeira gestão do planejamento urbano da cidade, de acordo com seus interesses de lucros e rentabilidade.
 
Se, de fato, se quer construir uma política urbana onde os mais pobres participem, para reverter o processo de segregação, exclusão, no qual o pobre é jogado para cada vez mais longe, em locais com menos infraestruturas, menos serviços públicos, é preciso enfrentar o capital imobiliário. Quem o fizer terá de se valer de mecanismos para retomar as terras ao poder público, porque a base da política urbana é a terra. Hoje, a terra está na mão do mercado. É preciso construir mecanismos mais eficazes de regulação do mercado imobiliário.

O mercado imobiliário é uma festa, fazem o que querem. É oferta e procura e pronto. Ao controlar as câmaras municipais, e inclusive parte dos Executivos, conseguem aprovar as leis e as exceções que eles bem entendem. Portanto, uma outra política urbana, popular e democrática para o país de hoje, necessariamente passa por enfrentar os donos da cidade: o setor imobiliário.

Correio da Cidadania: O que poderia dizer sobre o grande problema da moradia e mobilidade na cidade de São Paulo, dos movimentos que têm enfrentado essa situação e da postura do governo do estado e da prefeitura diante desse cenário? 

Guilheme Boulos: O governo do Estado de São Paulo teve historicamente a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) como política habitacional. E a CDHU fracassou em seu empenho. A CDHU também manteve toda a lógica de construção por empreiteiras, de moradias de má qualidade e com prestações altas. Muitas vezes, as famílias não conseguem terminar de pagar uma habitação.

Outro fator é que se constrói exclusivamente nas periferias. E a política habitacional do governo do estado, na realidade, acaba adquirindo uma maior visibilidade na hora do despejo, quando manda a polícia militar desalojar de forma violenta milhares e milhares de famílias, como ocorreu no Pinheirinho, em São José dos Campos. E como ocorre semanalmente, às vezes diariamente, aqui na capital e na região metropolitana.

Na prefeitura, nós vemos que, a partir de certo momento, o prefeito Haddad fez um esforço maior de dialogar com os movimentos e compreender as reais necessidades de abrir uma parte de seu programa para a gestão direta dos empreendimentos, tal como propomos. Mas há ainda um buraco na política habitacional do governo Haddad, no qual ela se encontra com o governo estadual, pelo fato de não ter construído alternativas para o despejo, um problema urgente.

Lembre o que nós vimos na semana passada, em São Paulo, naquele despejo violentíssimo que depois se tornou uma verdadeira guerra no centro da cidade. Isso não foi um fato isolado, como querem nos fazer crer. Está acontecendo frequentemente. Não aparecem para o público as famílias desalojadas, agredidas, violentadas, enfim, tendo negado seu direito à moradia.

Portanto, a prefeitura de São Paulo e o governo estadual, infelizmente, não têm se disposto a construir uma alternativa para o problema do despejo. Uma alternativa emergencial que dê conta de enfrentá-lo. Há um exemplo muito concreto: a ocupação Chico Mendes, num terreno municipal da região do Morumbi. Duas mil famílias ocuparam o terreno, numa expressão clara do combate à segregação territorial. E a prefeitura pediu liminar de reintegração de posse e não se dispôs a fazer uma negociação mais efetiva.

Correio da Cidadania: Como a direção e movimentos de ocupação urbana ligados ao MTST têm lidado com esta conjuntura pré-eleitoral? Existe algum pensamento tático e/ou estratégico de modo a que se aproveite este momento para expandir a conscientização do público em geral sobre o grave problema urbano de moradia e mobilidade?


Guilheme Boulos: Não achamos que as eleições sejam um momento de politização. Normalmente, com o nível de campanha eleitoral que se faz, com o marketing predominando sobre qualquer debate político real, achamos que acaba sendo um momento de despolitização.

O movimento, no momento eleitoral, pretende fazer as mesmas mobilizações que tem feito nos últimos meses e nos últimos anos, denunciando e tornando o problema mais público. Mas não vemos que haja uma abertura, de fato, para um debate político no processo eleitoral. Ao contrário, é mais difícil fazer tal debate porque estamos diante de um ambiente em que predomina a maquiagem.

Correio da Cidadania: E como definiria, em linhas gerais, o grande problema da habitação no Brasil de hoje e a postura que assumida pelos governos Lula/Dilma?

Guilheme Boulos: O problema de habitação no Brasil é um barril de pólvora. Se nós pensarmos hoje o que são as nossas grandes cidades, pautadas pela segregação, pelos muros sociais e com o comando da especulação imobiliária, vamos ver que aquele problema da mobilidade, que explodiu em junho de 2013, é crônico. Mas, no último período, o tema do direito à moradia está no foco da nossa avaliação, a partir do que têm sido os índices abusivos de reajuste de alugueis. A política habitacional não pode ser estritamente uma política habitacional. Ela tem de estar congregada com a política urbana. Essa é a questão que nós criticamos diretamente nos governos do PT.

Não basta fazer 1,7 milhão moradias, como fez a Minha Casa Minha Vida desde 2009, com o Lula e a Dilma. Sabe o que aconteceu? Fizeram 1,7 milhão moradias e o déficit habitacional do país aumentou. Era de 5,3 milhões de famílias em 2008, e hoje é de 5,8 milhões. Portanto, na prática, enxuga gelo. É isso que nós temos denunciado já há algum tempo.

Por quê? Porque, a cada moradia que se constrói, são produzidos novos sem teto, na mesma proporção, pois não há política urbana que enfrente a especulação. Um dos critérios do déficit habitacional medido pelo IBGE, um debate no qual o MTST está participando, é o ônus excessivo com o aluguel. Ou seja, quando a família compromete mais de 30% da renda com aluguel. Esse item explodiu nos últimos anos, porque não há um controle da especulação imobiliária.

Assim, não basta construir novas habitações. Claro que construir novas habitações é importante. Ter subsídio é importantíssimo. Temos de reconhecer que essa foi uma conquista do governo nos últimos anos. No entanto, o programa está direcionado para favorecer as empreiteiras. Elas foram as grandes gestoras do programa, as moradias construídas são de baixa qualidade, de tamanho minúsculo, em regiões absolutamente periféricas, e não há uma política urbana de enfrentamento à especulação imobiliária e ao capital imobiliário.

Por isso, o problema habitacional tem se agravado. Vivemos hoje uma contradição: temos um programa habitacional federal que não existia na década passada, com investimento pesado, mas que, ao mesmo tempo, não diminui o problema habitacional. Na verdade, o problema habitacional está se agravando, o déficit aumentando e isso tem a ver, como já salientado, com a falta de política urbana que enfrente a especulação imobiliária.

Quem cria sem teto é a lógica do capital imobiliário. Enquanto tal lógica não for sanada, o problema da moradia não será seriamente enfrentado.

Correio da Cidadania: Como dirigente e membro do MTST, tem algum palpite sobre os resultados eleitorais que poderiam ser mais negativos, ou mais positivos, para as lutas que vêm sendo travadas?

Guilheme Boulos: Como coloquei aqui nessas argumentações, nós somos críticos ao governo Dilma. Temos críticas diretas ao governo Dilma e ao governo do PT. Porém, o mais trágico é que o debate eleitoral está pautado pela direita. Os dois outros candidatos mais votados, o Aécio Neves e a Marina Silva, não estão criticando o governo do PT por não ter feito as reformas estruturais, por não ter enfrentado de forma mais direta o capital. Estão criticando o governo do PT por, supostamente, ter feito tal enfrentamento!

A política econômica neoliberal é defendida abertamente pelo Aécio Neves, já que seu ministro da Fazenda seria o Armínio Fraga. Não precisa dizer mais nada. A Marina Silva, quando bota a turminha dela lá pra defender a autonomia do Banco Central, tripé macroeconômico, redução das metas de inflação e, ao mesmo tempo, dizer que vai aprofundar os programas sociais, mostra que não tem o menor cabimento.

Portanto, infelizmente, as eleições estão sendo pautadas pela direita. Com raras exceções, como a Luciana Genro, que coloca um debate mais à esquerda. Mas, pela lógica do sistema político brasileiro, com financiamento privado de campanha e desigualdade do espaço eleitoral para o debate, tal discurso acaba não tendo eco. Acaba prevalecendo o discurso que pauta o debate eleitoral pela direita. Um grande problema para nós.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

Fonte: Correio da Cidadania

"Raquel Rolnik: 'A moradia virou um novo setor onde o capital financeiro pode aterrizar'"

PICICA: "(...) no começo do século XX a questão da moradia era encarada como uma política social, que, através da intervenção do Estado, representava uma ação redistributiva para poder garantir que "condições básicas, dignas, de vida" fossem disponíveis para o conjunto da sociedade. Isso acabou a partir dos anos 70 e 80, quando a moradia se "transformou em mercadoria, como um bem de consumo, e, mais recentemente, como um ativo financeiro", ou seja, "a moradia como veículo de valorização financeira"."
raquelrolnik
Brasil - Diário Liberdade - Foto: A urbanista Raquel Rolnik em palestra na Bienal do Ibirapuera, em São Paulo. (Diário Liberdade)


Uma das organizadoras do simpósio, Raquel Rolnik – ex-relatora especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Direito à Moradia Adequada e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – abordou a questão da moradia como política social e direito humano.

Cenário internacional na Europa e nos Estados Unidos

Raquel lembrou que no começo do século XX a questão da moradia era encarada como uma política social, que, através da intervenção do Estado, representava uma ação redistributiva para poder garantir que "condições básicas, dignas, de vida" fossem disponíveis para o conjunto da sociedade. Isso acabou a partir dos anos 70 e 80, quando a moradia se "transformou em mercadoria, como um bem de consumo, e, mais recentemente, como um ativo financeiro", ou seja, "a moradia como veículo de valorização financeira".

Ela ressaltou que as políticas habitacionais no mundo "têm servido muito mais para o capital financeiro do que para as pessoas viverem". "Estamos transitando da ideia de moradia como política social e direito humano para a ideia de moradia como um ativo financeiro."

O capital financeiro busca extrair renda e juros para poder se reproduzir, e a moradia "virou um novo setor onde o capital financeiro pode aterrizar", ampliando o mercado para setores de baixa renda, pra classe média e para os trabalhadores, "com a ideia de que o mercado é capaz de oferecer uma alternativa de moradia para todos, desde que o Estado facilite a ação do mercado", disse.

A urbanista explicou que não se refere mais a um capital financeiro local, mas internacional, "que se articula para investir nesse campo da habitação, e para que isso pudesse acontecer, foi necessário destruir toda a política habitacional que existia anteriormente nos países em que existia uma política habitacional de proteção aos mais pobres", como na Europa do pós-Guerra e nos EUA, que, assim como na Inglaterra, começou a ser destruída a moradia como política habitacional nos governos neoliberais de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, quando foi originado o "processo de privatização da moradia no mundo" todo, a "ideia de que o Estado não deve se meter no assunto" e que o mercado desregulado se vira sozinho. Isso culminou, 30 anos depois, na crise imobiliária de 2008, que se transformou em uma crise capitalista global.

Ela traçou um paralelo entre o regime militar brasileiro e o franquismo espanhol, lembrando uma declaração da então presidente do BNH (Banco Nacional de Habitação) Sandra Passarinho muito semelhante à do ministro da Educação franquista nos anos 50: "Este tem que ser um país de proprietários, não de proletários", para que os trabalhadores se identificassem desde já com a ideologia burguesa da propriedade, da acumulação e "pensassem duas vezes antes de fazer greve, antes de invadir a propriedade dos outros, porque, afinal de contas, têm propriedade a zelar", explicou ironizando.

Finalizou sua explanação sobre o cenário internacional apontando para o fato de que "o capital financeiro internacional, absolutamente fictício, que só serve para gerar mais renda, mais juros e mais enriquecimento vive da extração de renda (nesse caso moradia), da vida e do corpo das pessoas, que têm que se 'matar' para pagar a dívida com os bancos" e ressaltou que "os casos de suicídio não foram poucos" devido ao caos que a crise de 2008 gerou, sobretudo à classe trabalhadora, no mundo todo.

Brasil e países do terceiro mundo

Raquel Rolnik destacou que no Brasil e nos países subdesenvolvidos, como na América Latina, o processo de habitação se deu de forma completamente diferente da Europa e dos Estados Unidos.

"Nós vivemos uma história de auto-produção da nossa moradia", disse, lembrando que aqui os próprios trabalhadores construíram suas habitações, na periferia, nas favelas, e aos poucos. "Foi assim que os trabalhadores construíram seu acesso à moradia, na mais alta precariedade, sem estrutura, sem serviço público, sem construir cidade", extraindo do seu próprio trabalho e da sua própria energia.

Ela destacou mais uma vez o próprio esforço dos trabalhadores por meio dos movimentos e suas próprias conquistas por seu espaço na cidade, mesmo que fosse na periferia, em áreas irregulares, em morros. "A ocupação permitiu que as pessoas, mesmo ganhando um salário miserável, pudessem estar lá, de manhã, exercendo seu papel de exército industrial de reserva, para fazer parte da cidade."
E lamentou o que está acontecendo atualmente. "Com esses processos de desocupação, as pessoas estão perdendo esses espaços que elas mesmas construíram coletivamente na luta, na política e na negociação com o poder", disse. "As construtoras oferecem moradia onde não tem cidade", completou.

Em um segundo desdobramento, há também a relação da financeirização da moradia, da habitação como mercadoria.

"As políticas de subsídio são políticas também que têm um sentido muito mais econômico-financeiro de fazer girar a indústria da construção, da geração de empregos e da ampliação das possibilidades de investimento, inclusive do capital financeiro internacional, do que propriamente atender às demandas reais de quem mais precisa de moradia", explicou.

Raquel Rolnik terminou sua participação advertindo que quando é disponibilizado crédito e subsídios e tanto dinheiro nesse setor, o preço da terra vai subindo cada vez mais. "Então, o aumento do preço dos aluguéis e dos terrenos, em função desse monte de dinheiro circulando nesse mercado, ficou muito acima dos aumentos salariais."

E por último, ofereceu sua perspectiva sobre a crise capitalista atual: "Não é uma crise momentânea, mas uma crise de paradigmas, a gente tem que retomar qual é o sentido da política de moradia como um direito humano (...) jamais [se deve adotar] a imposição de um modelo único que, na verdade, vulnerabilizou e deixou os mais pobres numa situação ainda mais precária e complicada do que já era".

Fonte: Diário da Liberdade

"Quando Estado e Judiciário se unem para promover o apartheid urbano". Escrito por João Whitaker

PICICA: "A cidade de São Paulo viu pela enésima vez o seu centro transformar-se em praça de guerra. Guerra de um só lado, como os grandes exércitos que pelo mundo massacram populações indefesas. Nosso exército é a PM, mandando bombas e balas de borracha em mães com bebês no colo, crianças em cadeira de rodas, idosos. Esses são nossos grandes criminosos, contra os quais o Estado mobiliza forças surpreendentemente numerosas e “eficazes” se compararmos ao flagrante fiasco desses mesmos “agentes da lei” na política de segurança pública e no combate ao crime comum." 


Quando Estado e Judiciário se unem para promover o apartheid urbano Imprimir E-mail
Escrito por João Whitaker   
Quarta, 24 de Setembro de 2014




A cidade de São Paulo viu pela enésima vez o seu centro transformar-se em praça de guerra. Guerra de um só lado, como os grandes exércitos que pelo mundo massacram populações indefesas. Nosso exército é a PM, mandando bombas e balas de borracha em mães com bebês no colo, crianças em cadeira de rodas, idosos. Esses são nossos grandes criminosos, contra os quais o Estado mobiliza forças surpreendentemente numerosas e “eficazes” se compararmos ao flagrante fiasco desses mesmos “agentes da lei” na política de segurança pública e no combate ao crime comum.

O sempre combativo Dito, advogado e liderança do movimento de moradia, fez um relato marcante do que ocorreu:

“Pessoas apanharam, crianças e mulheres foram atingidas por bombas dentro do prédio. Teve pessoas com braços quebrados, com pernas, braços e peitos atingidos por balas de borracha; crianças, bebês, mulheres e idosos foram detidos e conduzidos ao 3º DP. Foram expostos no chão do posto de gasolina na rua Aurora com a avenida Rio Branco; uma criança numa cadeira de rodas foi conduzida ao DP dentro de uma viatura policial. Homens, mulheres e crianças relataram que apanharam dentro da ocupação”.

Qual o grande crime para tamanha violência? A imprensa martelou, o dia todo, que se tratava da retirada dos “invasores” de um antigo hotel, hoje vazio, no centro da cidade. A pedido do proprietário, o juiz deu-lhe a reintegração de posse. Se deixarmos barato, diz o pensamento comum, estará “liberada”, e portanto incentivada, a livre invasão à propriedade alheia. Se deixarmos esses vândalos perigosos saírem ocupando por aí qualquer imóvel vazio, logo mais teremos gente invadindo nossas garagens, nosso quintal, nossas casas, quem sabe. Ou poderei, eu ou você, invadir o apartamento que ficou vazio, daquela vizinha de idade que já morreu. Em outras palavras, a sociedade está “em perigo”, estamos, nós os ricos e brancos, ameaçados no nosso direito sagrado à propriedade. Pobres de nós.

Ocorre que, vejam vocês, as coisas não são bem assim. Ocorre que a lei, mais especificamente a do Estatuto da Cidade, de 2001, se for realmente seguida, estabelece que edifícios vazios em uma sociedade com tamanha demanda por moradia, em áreas centrais com tanta infraestrutura (que custam caro à sociedade, que oferece ali esgoto, luz, água, coleta e lixo, linhas de ônibus, e assim por diante), não cumprem sua função social. São, por esse ponto de vista, ilegais. Para piorar, a maior parte deles tem dívidas astronômicas de IPTU, sem que nada lhes ocorra por causa disso.
 
Frente a isso, a população sem moradia apenas tensiona e traz à luz do dia essa contradição ao ocupar, e não invadir, centenas de imóveis mantidos vazios – e, portanto, ilegais frente ao Estatuto da Cidade – sem nenhuma razão aparente nas cidades brasileiras. Vale lembrar que, no Brasil, são cerca de 5 milhões de unidades habitacionais vazias, para um déficit de cerca de 6 milhões. Os números, simbolicamente que seja, falam por si.

O direito à moradia é um dos direitos fundamentais da Constituição brasileira, estabelecidos em seu artigo sexto. Por que, então, invariavelmente, nossos juízes ignoram esse caso e colocam o direito à propriedade, mesmo que uma propriedade frágil, pois irregular frente à cidade, acima do direito fundamental à moradia?
 
Tomemos o famoso, mas triste, caso do Pinheirinho, ocorrido em São José dos Campos há pouco tempo: um terreno de 30 mil m², ocupado havia oito anos por cerca de 1500 famílias. A terra não só estava vazia há anos, como era parte da massa falida de uma empresa sob intervenção judicial do megainvestidor Naji Nahas, envolvido nos mais diversos escândalos financeiros. Mesmo face à fragilidade dessa “propriedade”, e a milhares de famílias instaladas que comprovavam a utilidade pública do terreno e sua viabilidade para uso de moradia, a juíza escolheu proteger a sagrada propriedade, mandando retirar, à força da bala, todos de lá.

Havia ali projetos avançados de urbanização e incorporação daquele bairro à cidade. Brutalmente ceifados por uma decisão judicial altamente questionável. O que estava em jogo, na verdade, e que foi defendido de fato pelo Poder Judiciário, era impedir a democratização da cidade e o direito dos pobres a terem nela um lugar digno, e não o direito único a uma moradia no distante exílio da periferia.

No caso de São Paulo, o que o juiz ignorou e que a imprensa não contou é que o tal hotel nunca foi hotel. O prédio, projeto do renomado arquiteto Giancarlo Gasperini, foi concluído em 1991 para ser um hotel, mas nunca, nem um dia sequer, funcionou como tal. Com a morte do empreendedor, seus sete filhos “se desencantaram” com o negócio e não se entenderam sobre sua venda. Ficou vazio, à exceção do seu térreo, primeiramente usado como cinema, depois sumariamente cimentado para virar estacionamento. Um caso típico de subutilização, passível de aplicação do IPTU Progressivo, de desatendimento à função social da propriedade urbana, de retenção de imóvel para a simples (e pouco certa) especulação por alguma valorização. Seu dono, aliás, possui outro imóvel, também vazio, na Rua 7 de Abril, ali perto.
 
Os “bárbaros” que o ocuparam, chamando atenção tanto para a falta de moradia no país para os mais pobres quanto para a ilegalidade da situação desses prédios, haviam se organizado de maneira exemplar. Buscavam formas de viabilizar o seu uso para moradia, reincorporando-o à sociedade. Tenho uma aluna que faz seu trabalho de graduação nesse edifício. Outra aluna da FAU-USP também o fez lá. Propõem e mostram como é possível um projeto de reabilitação do edifício, para moradias nos andares, mas com usos diversificados e comerciais nas enormes áreas do térreo e dos primeiros andares. Uma solução que poderia beneficiar a todos, inclusive ao proprietário.

Uma possibilidade que é aventada é a de que a prefeitura compre o edifício, pelo seu valor de mercado. De novo uma situação de gritante privilégio à propriedade. Por que o dono de um imóvel desses mereceria receber uma fortuna por um prédio que há décadas é irregular? Pior, pelo que disse o prefeito em entrevista, pede-se por ele a bagatela de R$ 40 milhões. Parece que, para o mercado imobiliário do centro, a regra econômica básica da oferta e da procura inexiste. Como pode um imóvel ter esse preço, se está há décadas vazio e sem demanda de compra?

Em qualquer “país civilizado”, como gosta de dizer nossa elite, um juiz recusaria, em um caso destes, dar a reintegração automática de posse. Não sem ao menos estimular o diálogo e a negociação. Na Inglaterra, há caso em que a justiça transferiu a propriedade de uma casa nos arredores de Londres, por considerar que seus ocupantes, no caso brasileiros que ali fizeram escola de samba, de capoeira, e assim por diante, davam uma contribuição cultural importante ao bairro, muito maior do que a manutenção da casa vazia. Mas nem precisamos ser tão radicais. Em geral, na Holanda, na Alemanha, na França, juízes impõem a negociação só entre atores envolvidos.

O representante do Estado poderá, por meio de requisição e por uma duração de um ano renovável, proceder à posse parcial ou total de moradias vazias ou insuficientemente ocupadas, com o objetivo de destiná-las a pessoas em situação de desabrigo”. Um ardoroso neoliberal diria que o texto é de alguma lei comunista da antiga União Soviética. Trata-se, entretanto, do Código da Construção e Habitação, em vigor na França, um país nas últimas décadas notadamente liberal. Mostra o quanto, em outros lugares, o direito à moradia tem prioridade sobre o direito à propriedade.
Mas, no Brasil, o diálogo não é o objetivo. Em vez de dar um prazo para que proprietário, ocupantes e prefeitura se entendam, para estimular uma solução viável que desse ao prédio sua função social e o tornasse instrumento de um povoamento democrático do centro, o juiz optou pela solução do privilégio à sagrada propriedade.

Vale dizer, inclusive, que o diálogo poderia ser útil para todos. Muitos dos proprietários de imóveis vazios não são especuladores inescrupulosos. Há questões de herança, impasses jurídicos, propriedades falidas, e nesses casos negociações com o Poder Público poderiam desatar nós.

A postura do judiciário, aliás, é exemplarmente elitista e preconceituosa. No Brasil, a dureza da lei é para os pobres. Para os ricos, a condescendência. Há centenas de imóveis de luxo na cidade que se apropriaram de áreas públicas, outros que não pagam IPTU: shoppings centers, centros de convenções, clubes sociais, clubes esportivos. No Ibirapuera, toda uma faixa do parque foi ceifada para a instalação de mansões que estão lá há décadas. Nunca se viu, em nenhum caso, cenas de guerra para a reintegração de posse.

Mas o Exmo. Juiz determina a reintegração de posse, sabendo de suas consequências. Com nossa polícia, sedenta para obedecer friamente a um chamado à violência contra os pobres, as consequências da sentença são conhecidas de antemão: violência desnecessária, injusta e covarde. A justiça, nesse caso, alia-se ao Estado em seu papel opressor e de proteção aos privilégios dominantes.

Para não ser injusto, vale lembrar de uma única ocasião, até onde eu saiba, em que um corajoso juiz de São Paulo deu, há uns dois anos, sentença favorável ao movimento, com inequívoca argumentação: se o Estado não é capaz de garantir o direito fundamental à moradia, e se o edifício está vazio e não cumpre sua função social, que fique ocupado até segunda ordem.

Mas, que ninguém se engane. Isso foi uma exceção. No geral, o que temos é a participação clara do poder judiciário e da força pública no intuito único de resguardar a lógica da cidade segregadora. O que não se quer, sejamos claros, é abrir brechas para que tenhamos pobres nos centros, ou mesmo em toda a cidade “que funciona”. A estes resta a porta da periferia, se é que lá conseguirão encontrar onde morar. Em cenas como as descritas, vemos Justiça e Estado se unindo para produzir e proteger o apartheid social (e racial) urbano.

Há cerca de 30 ocupações no centro com pedidos de reintegração de posse. Se a ignorância jurídica prevalecer, ainda teremos uma tragédia. Não ouso pensar que isso possa ser parte de uma radicalização pré-eleitoral, o Estado buscando os votos conservadores que aplaudem toda e qualquer repressão a “vagabundos”

Minha sugestão? Que a prefeitura se antecipe: que no contexto do novo Plano Diretor e da revisão da Lei de Zoneamento, todos esses edifícios sejam imediatamente definidos como Zonas Especiais de Interesse Social, obrigando seu uso majoritário para habitação social, e sobre eles recaia a cobrança do IPTU Progressivo, obrigando seus donos a dar-lhes uso. De tal forma que caia por terra qualquer perspectiva de lucro exacerbado sobre eles, arrefecendo na teoria a pressa pela reintegração, e abrindo portas para soluções negociadas.

Quem sabe comecemos assim a ver o Estado em um papel regulador e instigador de uma cidade verdadeiramente democrática.

Clique aqui para ver entrevista à Globo News sobre o episódio.

Leia também:
A semana só teve paz no cemitério
 
João Sette Whitaker é arquiteto e urbanista.
Blog: http://cidadesparaquem.org/

Fonte: Correio da Cidadania

setembro 29, 2014

"O Sacerdote Ascético e os remédios contra a existência", by Rafael Trindade

O Sacerdote Ascético e os remédios contra a existência

Giuseppe Maria Crespi - Comunhão
Giuseppe Maria Crespi – Comunhão

A psicologia do sacerdote ascético é uma das grandes descobertas de Nietzsche. Ele concentra em si todo o ressentimento, toda a má consciência, todo o desejo de negar, de difamar, denegrir, desprestigiar a vida. Seu desejo de ser outro provém de seu descontentamento com o seu presente. Mas, ainda assim, seu desejo conserva, a vida se mantém, mesmo que em baixas intensidades. O sacerdote ascético é o médico dos fracos e oprimidos.
Mas é realmente um médico, este sacerdote ascético? – Já notamos que dificilmente podemos chamá-lo de médico, por mais que lhe agrade sentir-se ‘salvador’, ser venerado como ‘salvador’. Apenas o sofrimento mesmo, o desprazer do sofedor, é por ele combatido, não a sua causa, não a doença propriamente – esta deve ser nossa objeção radical à medicação sacerdotal” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, § 17
Voltemos à genealogia: quem deseja a vida fraca? Quem quer se preservar? Quem quer os remédios oferecidos pelo sacerdote ascético? Somente o escravo os aceita de bom grado. Ele diz: “Estou farto de mim! Estou cansado! Dá-me algo para suportar minha dor!“. Pois bem, o sacerdote, seu pastor, seu protetor, seu defensor, administra os narcóticos necessários, através dos quais o homem moderno se entorpece:
  1. Amortecimento Geral: “A dor é um erro“, diz o padre, “devêmos cambatê-la“. E assim começa toda calúnia contra a dor, tudo mais é suprimido com o único intuito de acabar com a dor: o fraco não a suporta, ele abre mão de tudo em nome da letargia. Ao invés de dizer: “A dor é o tempero da vida, é o que a torna interessante!“, o padre faz de tudo para suas pobres ovelinhas não sentirem dor, frio, desconforto. Seu combate é através da renúncia de si: santificação, hibernação, sono profundo, nirvana. Mas é impossível acabar com a dor! Nesta busca sem fim a própria ausência de dor se torna algo positivo e maior que a vida(pulsão de morte?)! O nada se torna tudo: Deus!
  2. Atividade Maquinal: desviar os olhos da dor através do trabalho, que grande cilada. Embuste sem igual, mas que gera resultados nas pobres almas sofredoras! “A mente vazia é oficina do diabo“, e fazemos de tudo para mantermo-nos ocupados. Trabalhar, trabalhar e trabalhar: responder e-mails, fazer relatórios, baixar a alavanca, rodar a linha de montagem, produzir bens materias. “O trabalho enobrece“, diz o padre; e “Deus ajuda quem cedo madruga”, completa o trabalhador. A “benção do trabalho” os impede de cair no desespero! O homem torna-se mais uma peça da máquina, esquece de si mesmo mergulhando na rotina, a consciência é inundada de afazeres e prazos de entrega.
  3. Pequenas Alegrias: O homem cansado do trabalho tem suas pequenas alegrias, seus prazeres reativos. Ele tem o sétimo dia garantido por Deus. O décimo terceiro garantido por seu chefe. O happy-hour onde pode obter facilmente uma bebida que o faça esquecer que logo será segunda-feira. Este remédio associa-se ao anterior e torna-se quase uma obrigação. Divirta-se!, Goze!, descanse, a roda da tortura dará uma volta completa e tudo recomeçará.
  4. Compaixão: Nietzsche desprezava a compaixão como um dos maiores inimigos da humanidade, contudo, o sacerdote ascético a recomenda. No amor ao próximo, na esmola dada, tem-se a sensação de sentir-se superior. O trabalho voluntário dignifica aos olhos alheios. Eles são aliados na dor, na tristeza, não na alegria (já dizia Deleuze, “sim, existem alegrias tristes”). “Ame o próximo como a ti mesmo” traduz-se como “eu sofro, tu sofres, todos sofrem: consolemo-nos”.
  5. Formação de Rebanho: o avanço da humanidade (ou deveríamos dizer do niilismo?), reflete-se no avanço da gregariedade. Assim quis o instinto de fraqueza e assim organizou a inteligência do sacerdote ascético. Nietzsche diz que este é “o avanço e vitória essencial na luta contra a depressão“. O escravo, em sua aversão de si mesmo, busca sempre organizar-se em grandes rebanhos (mas, ironicamente, o homem ainda sente-se sozinho). Os fortes buscam a diferença, mas o rebanho tem horror aos diferentes, sentem-se ameaçados. Os senhores afirmam a diferença, querem que ela retorne! (veja aqui) Mas os escravos querem que todos sejam iguais, juntos, apertados.
  6. Excesso de sentimento: o homem fraco precisa escoar seu ressentimento para algum lado. Pobre dele, repleto de ódio e vingança, não tem para onde extravasar sua Vontade de Potência, só pode fazê-lo através de um afeto que o esgota, o torna exausto. O excesso de sentimento anestesia, debilita, enfraquece, enfim, prostra o homem, recolocando-o em seu cativeiro. A desordem dos afetos é sua bola de ferro presa ao pé: cólera, pavor, volúpia, vingança, esperança, desespero. Ele procura alguém para descarregar suas paixões, pode ser no juiz de futebol, no motorista de ônibus que não parou,(quebrando bancos?,) no lutador de UFC ou, pior, contra si mesmo! Nesta explosão súbita de sentimento enclausurados ele descarrega tudo e fica vazio, letárgico, obediente (veja aqui: “não há padre que não seja onanista“.
O sacerdote ascético tomou para si toda a matilha de cães selvagens que habita no íntimo do homem e virou contra ele próprio. Mas não podemos culpá-lo, ele fez isso apenas para proteger seu rebanho: “nós vos salvamos de vós mesmos“, clamam os padres do alto do altar. A medicalização sacerdotal “melhorou” o homem? Claro, se melhorar significar: domesticar, enfraquecer, desencorajar, refinar, embrandecer, emascular, lesar.
Com esse tratamento a condição enferma, imunda, abjeta, do homem expandiu-se ainda mais. Carcomidos, arruinados, estragados, quebrados, os homens apenas abaixam a cabeça e agradecem a “salvação”. Mas vale lembrar: apenas o sofrimento é combatido, não a causa. Os remédios do sacerdote ascético apenas impedem que o homem se suicide, são tão somente meios de aliviar a dor e o desespero, uma filosofia do consolo, tal como Schopenhauer tanto louvava. É por falta de algo melhor que o homem se submete a tão baixas técnicas e narcóticos, apenas por não encontrar melhores caminhos. Mas aí, mesmo aí, o querer está preservado. Uma vida que degenera ainda é uma vida que afirma, mesmo que afirme o nada.
Tudo estava então descoberto, percebido, explorado, tudo estava à disposição do mago, tudo serviu desde então à vitória do seu ideal, do ideal ascético… ‘Meu reino não é deste mundo’ – ele continuava a dizer: possuía realmente o direito de dizê-lo ainda?…” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §20
Giuseppe Maria Crespi - Confirmação
Giuseppe Maria Crespi – Confirmação

Filme: Doce Amianto

PICICA: "Amianto vive isolada num mundo de fantasia habitado por seus delírios de incontida esperança, onde sua ingenuidade e sua melancolia convivem de mãos dadas. Após sentir-se abandonada por seu amor (O Rapaz), Amianto encontra abrigo na presença de sua amiga morta, Blanche, que a protegerá contra suas dores, ao menos até onde possa." A dica é de Antena Rush.


Filme: Doce Amianto (+16)
Ano: 2013
Roteiro e Direção: Uirá dos Reis e Guto Parente

"Ousadia e potência em Branco sai. Preto fica", por José Geraldo Couto

PICICA: "Filme de Adirley Queirós combina realidade e imaginação, canibaliza múltiplos gêneros e supera narrativas tradicionais sobre oprimido e cultura popular"

Ousadia e potência em Branco sai. Preto fica


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Filme de Adirley Queirós combina realidade e imaginação, canibaliza múltiplos gêneros e supera narrativas tradicionais sobre oprimido e cultura popular

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Foi uma edição histórica do Festival de Brasília a que terminou na terça-feira, 16 de setembro). Não só pela decisão inédita, tomada previamente pelos produtores e diretores dos seis longas-metragens concorrentes, de dividir em partes iguais o prêmio de R$ 250 mil destinado ao melhor filme. Mas também pela força das obras exibidas, em especial do longa escolhido pelo júri oficial, Branco sai. Preto fica, de Adirley Queirós.

Se borrar as fronteiras entre ficção e documentário já se tornou quase corriqueiro, Branco sai radicaliza esse atravessamento ao fazer brotar da realidade mais brutal a fantasia mais livre e transformadora.


Concebido e filmado inteiramente na Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, o filme parte de um acontecimento traumático na vida da comunidade: a ação policial que dissolveu com violência um baile black nos anos 80, deixando uma porção de feridos.


Entre eles, um homem que ficou paraplégico ao levar um tiro e outro que teve amputada uma perna esmagada pela cavalaria. Eles próprios narram sua história, enquanto tocam sua vida, o primeiro (Marquim do Tropa, premiado como melhor ator) colocando no ar sua rádio caseira, o segundo fazendo pernas mecânicas com material reciclado. Mas isso já pode ser ficção. Não importa saber.

Canibalização de gêneros

O salto espetacular do filme consiste em deixar o solo seguro da reconstituição documental dessas vidas destroçadas e propiciar que elas próprias se reinventem na imaginação. Os sobreviventes do massacre se tornam então protagonistas de uma descabelada trama de subversão da ordem existente. Há algo da loucura anárquica do romance Os sete loucos, de Roberto Arlt, igualmente alimentada por um fértil imaginário popular que canibaliza todo tipo de referência cultural.

Espionagem, ficção científica, drama social, tudo isso se mistura com a maior desenvoltura – talvez a palavra certa seja desfaçatez – ao substrato documental, que em nenhum momento é esquecido. A trama fictícia e o registro factual são construídos e expostos com a mesma espessura, amalgamados de modo inextricável. O resultado é um dos filmes mais potentes e estimulantes dos últimos anos, que supera de um só golpe a vitimização dos oprimidos, a submissão colonizada a modelos narrativos hegemônicos, a folclorização da cultura popular e uma porção de outros caminhos fáceis que nosso cinema costuma seguir.

O espectador sai da sessão (pelo menos eu saí) com um sentimento paradoxal: uma tristeza profunda por um país que continua a esmagar e mutilar seus cidadãos socialmente mais vulneráreis e, ao mesmo tempo, uma quase euforia pela crença revigorada na potência libertária do cinema.

País do futuro, presente kafkiano

Pelo menos dois outros longas do festival merecem atenção especial: Brasil S/A, de Marcelo Pedroso (melhor direção, roteiro, montagem, trilha sonora e som), e Sem pena, de Eugenio Puppo (prêmio do público).

Não há espaço para discorrer sobre eles aqui. Basta dizer que o primeiro é uma coreografia de seres e máquinas, sem diálogos, que brinca (a sério) com nossa autoimagem – e nossos autoenganos – de “país do futuro”. O segundo é um documentário que revela de maneira original, e essencialmente cinematográfica, as entranhas do nosso kafkiano sistema penal como uma engrenagem cruel de controle e opressão social. Vamos falar sobre ambos oportunamente. Aqui, o trailer de Sem pena (o de Brasil S/A ainda não está disponível):





 
Fonte: OUTRAS PALAVRAS