setembro 22, 2014

"1874 – TRÊS NOVELAS OU “O QUE SE PASSOU?” – Gilles Deleuze & Félix Guattari" (Territórios de Filosofia)

PICICA: "Gostaríamos de mostrar que a novela se define em função de linhas vivas, linhas de carne, em relação às quais ela opera, por sua vez, uma revelação muito especial. Marcel Arland tem razão em afirmar sobre a novela: “São apenas linhas puras, até nas nuanças e isto é apenas pura e consciente virtude do verbo”."


1874 – TRÊS NOVELAS OU “O QUE SE PASSOU?”
Gilles Deleuze & Félix Guattari.*
Não é muito difícil determinar a essência da “novela” como gênero literário: existe uma novela quando tudo está organizado em torno da questão “Que se passou? Que pode ter acontecido?”. O conto é o contrário da novela porque mantém o leitor ansioso quanto a uma outra questão: que acontecerá? Algo sempre irá se passar, irá acontecer. Quanto ao romance, nele acontece sempre alguma coisa, ainda que o romance integre, na variação de seu perpétuo presente vivo (duração), elementos da novela e do conto. Nesse aspecto, o romance policial é um gênero particularmente híbrido, visto que, muito freqüentemente, alguma coisa = x, da ordem de um assassinato ou de um roubo, aconteceu, mas o que aconteceu será descoberto e isso no presente determinado pelo policial-modelo. Seria um erro, entretanto, reduzir esses diferentes aspectos às três dimensões do tempo. Alguma coisa aconteceu ou alguma coisa acontecerá podem designar, por sua vez, um passado tão imediato, um futuro tão próximo que não se distinguem (diria Husserl) das retenções e pretensões do próprio presente. A distinção entre eles não deixa de ser menos legítima, em nome dos diferentes movimentos que animam o presente, que são contemporâneos do presente, um se movendo com ele, mas um outro colocando-o já no passado desde que presente é presente (novela), um outro arrastando-o para o futuro ao mesmo tempo (conto). Temos a sorte de dispor de um mesmo tema tratado por um contista e por um novelista: há dois amantes, e um morre subitamente no quarto do outro. No conto de Maupassant, “Uma astúcia”, tudo é direcionado para as questões: “Que acontecerá? Como o sobrevivente sairá dessa situação? O que o libertador, no caso um médico, poderá inventar?”. Na novela de Barbey d’Aurevilly, “A cortina carmesim”, tudo é direcionado para: aconteceu algo, mas o quê? Não apenas porque não se sabe verdadeiramente a causa da recente morte da fria jovem, como também não se saberá nunca por que ela se entregou ao jovem oficial, e tampouco se saberá como o libertador, no caso o coronel do regimento, pôde em seguida ajeitar as coisas1.

Não se deve achar que seja mais fácil deixar tudo de modo vago: o fato de ter acontecido algo — e mesmo diversas coisas sucessivas — que jamais será conhecido, não exige menos minúcia e precisão do que no outro caso, em que o autor deve inventar detalhadamente o que será necessário saber. Nunca se saberá o que acaba de acontecer, sempre se saberá o que irá acontecer — estas são as duas inquietações diferentes do leitor, face à novela e ao conto, mas são duas maneiras pelas quais o presente vivo se divide a cada instante. Na novela, não se espera que algo aconteça, conta-se com o fato de que algo já tenha acabado de acontecer. A novela é uma última notícia, ao passo que o conto é um primeiro conto. A “presença” do contista e a do novelista são completamente diferentes (diferente é também a presença do romancista). Mas não invoquemos demasiadamente as dimensões do tempo: a novela tem tão pouco a ver com uma memória do passado, ou com um ato de reflexão, que ela ocorre, ao contrário, a partir de um esquecimento fundamental. Ela evolui na ambiência do “que aconteceu”, porque nos coloca em relação com um incognoscível ou um imperceptível (e não o inverso: não é porque falaria de um passado que ela não poderia mais nos dar a conhecer). A rigor, nada aconteceu, mas é justamente esse nada que nos faz dizer: que pode ter acontecido para que eu esquecesse onde coloquei minhas chaves, para que não saiba mais se enviei aquela carta…, etc? Que pequena artéria no meu cérebro pode ter se rompido? Qual é esse nada que faz com que algo tenha se passado? A novela está fundamentalmente em relação com um segredo (não com uma matéria ou com um objeto do segredo que deveria ser descoberto, mas com a forma do segredo que permanece impenetrável), ao passo que o conto está em relação com a descoberta (a forma da descoberta, independentemente daquilo que se pode descobrir). Além disso, a novela põe em cena posturas do corpo e do espírito, que são como dobras ou envolvimentos, ao passo que o conto põe em jogo atitudes, posições, que são desdobramentos ou desenvolvimentos, mesmo os mais inesperados. Não é difícil compreender, em Barbey, o gosto pela postura do corpo, isto é, pelos estados nos quais o corpo é surpreendido quando algo acaba de acontecer. Barbey chega a sugerir, no prefácio de Diabólicos, que há um diabolismo das posturas do corpo, uma sexualidade, uma pornografia e uma escatologia dessas posturas, muito diferentes das que entretanto também marcam, simultaneamente, as atitudes ou as posições do corpo. A postura é como um suspense invertido. Não se trata então de remeter a novela ao passado, e o conto ao futuro, mas de dizer que a novela remete, no próprio presente, à dimensão formal de algo que aconteceu, mesmo se este algo não for nada ou permanecer incognoscível. Do mesmo modo, não se tentará fazer coincidir a diferença novela-conto com categorias como as do fantástico, do maravilhoso, etc. — este seria um outro problema e não há qualquer razão para se fixar coincidências nisso. A seqüência da novela é: Que aconteceu? (modalidade ou expressão), Segredo (forma), Postura do corpo (conteúdo).

Tomemos Fitzgerald, que é um contista e um novelista genial. Mas ele é novelista toda vez que pergunta: que pode ter acontecido para que se chegasse a esse ponto? Só ele soube levar tal questão a esse grau de intensidade. Não que essa seja uma questão da memória, da reflexão, nem da velhice ou da fadiga, ao passo que o conto seria de infância, de ação ou de elã. É entretanto verdade que Fitzgerald só coloca sua questão de novelista quando está pessoalmente esgotado, fatigado, doente, ou ainda pior. Mas, também aí, não é necessariamente esta a relação: poderia ser uma questão de vigor e de amor. E ainda o é, mesmo nessas condições desesperadas. Seria preciso, antes, conceber as coisas como uma questão de percepção: entra-se em um cômodo e se percebe algo como já presente, tendo acabado de acontecer, mesmo se ainda não se realizou. Ou então sabe-se que o que está sendo realizado já o é pela última vez, terminou. Ouve-se um “eu te amo” sabendo-se que é dito pela última vez. Semiótica perceptiva. Deus, o que pode ter acontecido, quando tudo é e permanece imperceptível, e para que tudo seja e permaneça imperceptível para sempre?

Em seguida não há apenas a especificidade da novela, há a maneira específica pela qual a novela trata uma matéria universal. Pois somos feitos de linhas. Não queremos apenas falar de linhas de escrita; estas se conjugam com outras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de infortúnio, linhas que criam a variação da própria linha de escrita, linhas que estão entre as linhas escritas. Pode ser que a novela possua sua maneira própria de fazer surgir e de combinar essas linhas que pertencem, entretanto, a todo mundo e a qualquer gênero. Vladimir Propp, com grande sobriedade, dizia que o conto deveria ser definido em função de movimentos exteriores e interiores que ele qualificava, formalizava e combinava de maneira específica2. Gostaríamos de mostrar que a novela se define em função de linhas vivas, linhas de carne, em relação às quais ela opera, por sua vez, uma revelação muito especial. Marcel Arland tem razão em afirmar sobre a novela: “São apenas linhas puras, até nas nuanças e isto é apenas pura e consciente virtude do verbo”3.

Primeira Novela

“Na gaiola”, HenrY James, 1898 (tr. fr. Stock)

A heroína, uma jovem telegrafista, tem uma vida muito demarcada, muito contabilizada, que se processa por segmentos delimitados: os telegramas que ela registra sucessivamente a cada dia, as pessoas que enviam esses telegramas, a classe social dessas pessoas que não se utilizam do telégrafo da mesma maneira, as palavras que devem ser necessariamente contadas. Além disso, sua gaiola de telegrafista é como um segmento contíguo à mercearia vizinha, onde seu noivo trabalha. Contigüidade de territórios. E o noivo não pára de planejar, de demarcar o futuro, o trabalho, as férias, a casa. Existe aí, como para cada um de nós, uma linha de segmentaridade dura em que tudo parece contável e previsto, o início e o fim de um segmento, a passagem de um segmento a outro. Nossa vida é feita assim: não apenas os grandes conjuntos molares (Estados, instituições, classes), mas as pessoas como elementos de um conjunto, os sentimentos como relacionamentos entre pessoas são segmentarizados, de um modo que não é feito para perturbar nem para dispersar, mas ao contrário para garantir e controlar a identidade de cada instância, incluindo-se aí a identidade pessoal. O noivo pode dizer à jovem: considerando-se as diferenças entre nossos segmentos, temos os mesmos gostos e somos parecidos. Sou homem e você é mulher, você é telegrafista e eu sou merceeiro, você conta as palavras e eu peso as coisas, nossos segmentos se afinam, se conjugam. Conjugalidade. Todo um jogo de territórios bem determinados, planejados. Tem-se um porvir, não um devir. Eis uma primeira linha de vida, linha de segmentaridade dura ou molar; de forma alguma é uma linha de morte, já que ocupa e atravessa nossa vida, e finalmente parecerá sempre triunfar. Ela comporta até mesmo muita ternura e amor. Seria fácil demais dizer: “essa linha é ruim”, pois vocês a encontrarão por toda a parte, e em todas as outras.

Um casal rico entra na agência de correios e traz à jovem a revelação, ou pelo menos a confirmação, de uma outra vida: telegramas múltiplos, cifrados, assinados com pseudônimos. Não se sabe mais exatamente quem é quem, nem o que significa o quê. Ao invés de uma linha dura, feita de segmentos bem determinados, o telégrafo forma agora um fluxo maleável, marcado por quanta que são como pequenas segmentações em ato, captadas em seu nascimento como em um raio de lua ou em uma escala intensiva. Graças à “sua arte prodigiosa da interpretação”, a jovem percebe o homem como possuidor de um segredo que o põe em perigo, cada vez mais em perigo, em postura de perigo. Não se trata apenas de suas relações amorosas com a mulher. Henry James chega, aqui, ao momento de sua obra em que não é mais a matéria de um segredo que lhe interessa, mesmo se ele conseguiu fazer com que essa matéria fosse completamente banal e pouco importante. O que conta agora é a forma do segredo cuja matéria nem tem mesmo mais que ser descoberta (não se saberá, haverá diversas possibilidades, haverá uma indeterminação objetiva, uma espécie de molecularização do segredo). É justamente em relação a esse homem, e diretamente com ele, que a jovem telegrafista desenvolve uma estranha cumplicidade passional, toda uma vida molecular intensa que nem mesmo entra em rivalidade com aquela que leva com seu próprio noivo. Que se passou, que pode mesmo ter acontecido? Essa vida, entretanto, não está na sua cabeça, e não é imaginária. Dir-se-ia, antes, que existem aí duas políticas, como a jovem o sugere em uma conversa marcante com o noivo: uma macropolítica e uma micropolítica, que não consideram absolutamente da mesma forma as classes, os sexos, as pessoas, os sentimentos. Ou, antes, que há dois tipos de relações bem distintas: os relacionamentos intrínsecos de casais que põem em jogo conjuntos ou elementos bem determinados (as classes sociais, os homens e as mulheres, determinadas pessoas), e em seguida os relacionamentos menos localizáveis, sempre exteriores a eles mesmos, que concernem, antes, a fluxos e partículas que escapam dessas classes, desses sexos, dessas pessoas. Por que esses últimos relacionamentos são relacionamentos de duplos, mais do que de casais} “Ela temia essa outra ela mesma que, sem dúvida, a esperava do lado de fora; talvez fosse ele que a esperasse, ele que era seu outro ela mesma e de quem ela tinha medo.” De qualquer modo, eis uma linha muito diferente da precedente, uma linha de segmentação maleável ou molecular, onde os segmentos são como quanta de desterritorialização. E nessa linha que se define um presente cuja própria forma é a de um algo que aconteceu, já passado, por mais próximo que se esteja dele, já que a matéria inapreensível desse algo está inteiramente molecularizada, em velocidades que ultrapassam os limiares ordinários de percepção. Entretanto, não se dirá que ela seja necessariamente melhor.

É certo que as duas linhas não param de interferir, de reagir uma sobre a outra, e de introduzir cada uma na outra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez. Em seu ensaio sobre o romance, Nathalie Sarraute louva os romancistas ingleses por não terem apenas descoberto, como Proust ou Dostoievski, os grandes movimentos, os grandes territórios e os grandes pontos do inconsciente que fazem reencontrar o tempo ou reviver o passado, mas por terem percorrido, à contracorrente, essas linhas moleculares, simultaneamente presentes e imperceptíveis. Ela mostra como o diálogo ou a conversação obedecem aos cortes de uma segmentaridade fixa, a vastos movimentos de distribuição regrada correspondendo às atitudes e posições de cada um, mas também como eles são percorridos e arrastados por micromovimentos, segmentações finas distribuídas de modo totalmente diferente, partículas inencontráveis de uma matéria anônima, minúsculas fissuras e posturas que não passam mais pelas mesmas instâncias, mesmo no inconsciente, linhas secretas de desorientação ou de desterritorialização: toda uma subconversação na conversação, diz ela, isto é, uma micropolítica da conversação4.

Em seguida, a heroína de James, em sua segmentaridade flexível ou em sua linha de fluxo, chega a uma espécie de quantum maximum para além do qual ela não pode mais ir (mesmo se quisesse, não poderia ter ido mais longe). Essas vibrações que nos atravessam, perigo de exacerbá-las para além de nossa resistência. Dissolveu-se na forma do segredo — que se passou? — o relacionamento molecular da telegrafista com o telegrafante — já que nada aconteceu. Cada um dos dois será lançado de volta à sua segmentaridade dura: ele esposará a senhora que se tornou viúva, ela esposará seu noivo. Entretanto, tudo mudou. Ela alcançou como que uma linha nova, uma terceira, uma espécie de linha de fuga, igualmente real, mesmo que ela se faça no mesmo lugar: linha que não mais admite qualquer segmento, e que é, antes, como que a explosão das duas séries segmentares. Ela atravessou o muro, saiu dos buracos negros. Alcançou uma espécie de desterritorialização absoluta. “Ela terminou por saber tanto acerca disso que nada mais podia interpretar. Não havia, para ela, mais obscuridades que a fizessem ver mais claro, só restava uma luz crua”.

Não se pode ir mais longe na vida do que nessa frase de James. O segredo mudou mais uma vez de natureza. Sem dúvida, o segredo tem sempre a ver com o amor e com a sexualidade. Porém, ora era apenas a matéria escondida, e mais escondida porque era ordinária, dada no passado, e por não sabermos mais qual forma encontrar para ela: vejam, eu me dobro ao meu segredo, vejam qual mistério opera em mim, uma maneira de me fazer de interessante, aquilo que Lawrence denominava o “segredinho sujo”, meu Édipo por assim dizer. Ora o segredo se tornava a forma de um algo cuja matéria toda era molecularizada, imperceptível, inassinalável: não um dado no passado, mas o não-doável de “que aconteceu?”. Mas, na terceira linha, nem mesmo há forma — nada além de uma pura linha abstrata. É porque não temos mais nada a esconder que não podemos mais ser apreendidos. Tornar-se imperceptível, ter desfeito o amor para se tornar capaz de amar. Ter desfeito o seu próprio eu para estar enfim sozinho, e encontrar o verdadeiro duplo no outro extremo da linha. Passageiro clandestino de uma viagem imóvel. Devir como todo o mundo, mais exatamente esse só é um devir para aquele que sabe que é ninguém, que não é mais alguém. Ele se pintou cinza sobre cinza. Como diz Kierkegaard, nada distingue o cavaleiro da fé de um burguês alemão que entra em casa ou se apresenta na agência de Correios: nenhum sinal telegráfico especial emana dele, ele produz ou reproduz constantemente segmentos finitos, mas já está em uma linha diferente que não podemos nem mesmo suspeitar5. De qualquer modo, a linha telegráfica não é um símbolo e tampouco é simples. Há pelo menos três delas: de segmentaridade dura e bem talhada, de segmentação molecular e em seguida a linha abstrata, a linha de fuga, não menos mortal, não menos viva. Na primeira há muitas falas e conversações, questões ou respostas, intermináveis explicações, esclarecimentos; a segunda é feita de silêncios, de alusões, de subentendidos rápidos, que se oferecem à interpretação. Mas se a terceira fulgura, se a linha de fuga é como um trem em marcha, é porque nela se salta linearmente, pode-se enfim falar aí “literalmente”, de qualquer coisa, talo de erva, catástrofe ou sensação, em uma aceitação tranqüila do que acontece em que nada pode mais valer por outra coisa. Entretanto, as três linhas não param de se misturar.

Segunda Novela

“The CRACK UP”, Fitzgerald, 1936 (tr. fr. Gallimard)

Que aconteceu? Esta é a pergunta que Fitzgerald não pára de debater no final, tendo dito que “qualquer vida é, bem entendido, um processo de demolição”. Como entender esse “bem entendido”? Pode-se dizer, antes de tudo, que a vida não pára de se engajar em uma segmentaridade cada vez mais dura e ressecada. Para o escritor Fitzgerald, há a usura das viagens, com os seus segmentos bem demarcados. Há também, de segmentos em segmentos, a crise econômica, a perda da riqueza, a fadiga e o envelhecimento, o alcoolismo, a falência da conjugalidade, a ascensão do cinema, o surgimento do fascismo, do stalinismo, a perda de sucesso e de talento — aí mesmo onde Fitzgerald encontrará sua genialidade. ”Grandes impulsos súbitos que vêm ou parecem vir de fora” e que atuam por cortes demasiadamente significantes, fazendo-nos passar de um termo a outro, em “escolhas” binárias sucessivas: rico-pobre… Mesmo que a mudança se fizesse no outro sentido, nada viria compensar o endurecimento, o envelhecimento que sobrecodifica tudo o que acontece. Eis uma linha de segmentaridade dura, que põe em jogo grandes massas, mesmo se era, no início, maleável.

Mas Fitzgerald diz que há um outro tipo de rachadura, seguindo uma segmentaridade totalmente diferente. Não são mais grandes cortes, mas microfissuras, como as de um prato, bem mais sutis e mais maleáveis, e que se produzem sobretudo quando as coisas vão melhor do outro lado. Se há envelhecimento também nessa linha, este não ocorre da mesma maneira: só envelhecemos aqui quando não sentimos mais isso na outra linha, e só nos apercebemos disso na outra linha quando “isso” já aconteceu nesta. Nesse momento, que não corresponde às idades da outra linha, atingimos um grau, um quantum, uma intensidade para além da qual não podemos mais ir. (Essa história de intensidades é muito delicada: a mais bela intensidade torna-se nociva quando ultrapassa nossas forças nesse momento, é preciso poder suportar, estar em boas condições). Mas o que aconteceu exatamente? Na verdade, nada de assinalável nem de perceptível; mudanças moleculares, redistribuições de desejo que fazem com que, quando algo acontece, o eu que o esperava já esteja morto, ou antes aquele que o esperaria ainda não chegou. Dessa vez, impulsos e rachaduras na imanência de um rizoma, ao invés dos grandes movimentos e dos grandes cortes determinados pela transcendência de uma árvore. A fissura “se produz quase sem que o saibamos, mas na verdade tomamos consciência dela subitamente”. Essa linha molecular mais maleável, não menos inquietante, muito mais inquietante, não é simplesmente interior ou pessoal: ela também põe todas as coisas em jogo, mas em uma outra escala e sob outras formas, com segmentações de outra natureza, rizomáticas ao invés de arborescentes. Uma micropolítica.

E em seguida há ainda uma terceira linha, como uma linha de ruptura, e que marca a explosão das outras duas, sua percussão… em proveito de outra coisa? “Concluí que aqueles que haviam sobrevivido tinham realizado uma verdadeira ruptura. Ruptura quer dizer muita coisa e não tem nada a ver com ruptura de cadeia, em que estamos geralmente destinados a encontrar uma outra cadeia ou a retomar a antiga”. Fitzgerald opõe aqui a ruptura aos pseudo-cortes estruturais nas cadeias ditas significantes. Mas ele igualmente a distingue das ligações ou dos talos mais maleáveis, mais subterrâneos, do tipo “viagem” ou mesmo transportes moleculares. “A célebre Evasão ou a fuga para longe de tudo é uma excursão dentro de uma armadilha, mesmo se a armadilha compreende os mares do Sul, que só são feitos para aqueles que querem navegar neles ou pintá-los. Uma verdadeira ruptura é algo a que não se pode voltar, que é irremissível porque faz com que o passado tenha deixado de existir.” Será possível que as viagens sejam sempre um retorno à segmentaridade dura? E sempre papai e mamãe que se reencontra na viagem e, como Melville, até mesmo nos mares do Sul? Músculos endurecidos? Será preciso acreditar que a própria segmentaridade flexível torna a formar no microscópio, e miniaturizadas, as grandes figuras das quais pretendia escapar? Sobre todas as viagens, pesa a frase inesquecível de Beckett: “Que eu saiba, não viajamos pelo prazer de viajar; somos idiotas, mas não a esse ponto”.

Eis que, na ruptura, não apenas a matéria do passado se volatizou, mas a forma do que aconteceu, de algo imperceptível que se passou em uma matéria volátil, nem mais existe. Nós mesmos nos tornamos imperceptíveis e clandestinos em uma viagem imóvel. Nada mais pode acontecer nem mesmo ter acontecido. Ninguém mais pode nada por mim nem contra mim. Meus territórios estão fora de alcance, e não porque sejam imaginários; ao contrário, porque eu os estou traçando. Terminadas as grandes ou as pequenas guerras. Terminadas as viagens, sempre a reboque de algo. Não tenho mais qualquer segredo, por ter perdido o rosto, forma e matéria. Não sou mais do que uma linha. Tornei-me capaz de amar, não de um amor universal abstrato, mas aquele que escolherei, e que me escolherá, às cegas, meu duplo, que não tem mais eu do que eu. Salvamo-nos por amor e para o amor, abandonando o amor e o eu. Não somos mais do que uma linha abstrata, como uma flecha que atravessa o vazio. Desterritorialização absoluta. Tornamo-nos como todo mundo, mas de uma maneira pela qual ninguém pode se tornar como todo mundo. Pintamos o mundo sobre nós mesmos, e não a nós mesmos sobre o mundo. Não se deve dizer que o gênio é um homem extraordinário, nem que todo mundo tem genialidade. O gênio é aquele que sabe fazer de todo-mundo um devir (talvez Ulisses, a ambição fracassada de Joyce, parcialmente bem-sucedida em Pound). Entramos em devires-animais, devires-moleculares, enfim em devires-imperceptíveis. “Estava para sempre do outro lado da barricada. A horrível sensação de entusiasmo continuava. (…) Tentaria ser um animal tão correto quanto possível, e se vocês me jogassem um osso com bastante carne por cima, eu seria talvez até mesmo capaz de lhes lamber a mão.” Por que esse tom desesperado? A linha de ruptura ou de verdadeira fuga não teria seu perigo, ainda pior do que as outras? É tempo de morrer. De qualquer modo, Fitzgerald nos propõe a distinção de três linhas que nos atravessam e compõem “uma vida” (título à Maupassant). Linha de corte, linha de fissura, linha de ruptura. A linha de segmentaridade dura, ou de corte molar; a linha de segmentação maleável, ou de fissura molecular; a linha de fuga ou de ruptura, abstrata, mortal e viva, não segmentar.

Terceira Novela

“História do abismo e da luneta”, Pierrette Fleutiaux, 1976 (Julliard)

Há segmentos mais ou menos aproximados, mais ou menos distanciados. Esses segmentos parecem envolver um abismo, uma espécie de grande buraco negro. Em cada segmento, há duas espécies de vigilantes: os de visão curta e os de visão ampla. O que eles vigiam são os movimentos, as manifestações súbitas, as infrações, perturbações e rebeliões que se produzem no abismo. Mas há uma grande diferença entre os dois tipos de vigilantes. Os de visão curta têm uma luneta simples. No abismo, vêem o contorno de células gigantes, de grandes divisões binárias, dicotomias, segmentos eles mesmos bem determinados, do tipo “sala de aula, caserna, H.L.M. ou até mesmo país, vistos de avião”. Vêem ramos, cadeias, fileiras, colunas, dominós, estrias. Às vezes, descobrem, nas bordas, uma figura mal feita, um contorno tremido. Então vai-se buscar a terrível Luneta de raios. Esta não serve para ver, mas para cortar, para recortar. É ela, o instrumento geométrico, que emite um raio laser e faz reinar por toda parte o grande corte significante, restaura a ordem molar por um instante ameaçada. A luneta para recortar sobrecodifica todas as coisas; trabalha na carne e no sangue, mas é apenas geometria pura, a geometria como questão de Estado, e a física dos de vista curta está a serviço dessa máquina. O que é a geometria, o que é o Estado, o que são os de vista curta? Eis aí perguntas que não têm sentido (“falo literalmente”), já que se trata, não mesmo de definir, mas de traçar efetivamente uma linha que não é mais de escritura, uma linha de segmentaridade dura em que todo mundo será julgado e retificado segundo seus contornos, indivíduos ou coletividade.

Bastante diferente é a situação dos telescópios, dos de visão ampla, em sua própria ambigüidade. Eles são pouco numerosos, no máximo um por segmento. Têm uma luneta refinada e complexa. Mas certamente não são chefes. E vêem uma coisa totalmente diferente do que os outros. Vêem toda uma micro-segmentaridade, detalhes de detalhes, “tobogã de possibilidades”, minúsculos movimentos que não esperam para chegar às bordas, linhas ou vibrações que se esboçam bem antes dos contornos, “segmentos que se movimentam com bruscas interrupções”. Todo um rizoma, uma segmentaridade molecular que não se deixa sobrecodificar por um significante como máquina de recortar, nem mesmo atribuir a uma determinada figura, determinado conjunto ou determinado elemento. Essa segunda linha é inseparável da segmentação anônima que a produz, e que a cada instante recoloca tudo em questão, sem objetivo e sem razão: “Que aconteceu?” Os de ampla visão podem adivinhar o futuro, mas é sempre sob a forma do devir de algo que já aconteceu em uma matéria molecular, partículas inencontráveis. É como em biologia: como as grandes divisões e dicotomias celulares, em seus contornos, são acompanhadas por migrações, por invaginações, por deslocamentos, por impulsos morfogenéticos, cujos segmentos não são mais marcados por pontos localizáveis, mas por limiares de intensidade que ocorrem por baixo, mictoses em que tudo se confunde, linhas moleculares que se cruzam no interior de grandes células e de seus cortes. É como em uma sociedade: como os segmentos duros e sobre-cortantes são cortados por baixo por segmentações de uma outra natureza. Mas não é nem uma nem a outra, nem biologia nem sociedade, nem semelhança das duas: “falo literalmente”, traço linhas, linhas de escrita, e a vida passa entre as linhas. Uma linha de segmentaridade maleável se destacou, mesclada à outra, mas muito diferente, traçada de uma maneira tremida pela micropolítica dos de visão ampla. Um caso de política, tão mundial quanto o outro, e ainda mais, porém, em uma escala e em uma forma não-superponível, incomensurável. Mas também um caso de percepção, pois a percepção, a semiótica, a prática, a política, a teoria, estão sempre juntas. Vemos, falamos, pensamos, nesta ou naquela escala e segundo determinada linha que pode ou não se conjugar com a do outro, mesmo se o outro é ainda eu mesmo. Se não, não se deve insistir, nem discutir, mas fugir, fugir, mesmo dizendo “de acordo, mil vezes de acordo”. Não vale a pena falar, seria necessário, em primeiro lugar, trocar os óculos, as bocas e os dentes, todos os segmentos. Não é apenas literalmente que se fala, percebe-se literalmente, vive-se literalmente, quer dizer, seguindo linhas, conectáveis ou não, mesmo quando são muito heterogêneas. E depois, em alguns casos, isso não funciona quando elas são homogêneas6.

A ambigüidade da situação dos de visão ampla é a seguinte: eles são capazes de detectar no abismo as microinfrações mais leves, que os outros não vêem; mas constatam também os terríveis danos da Luneta de recortar, sob sua aparente justiça geométrica. Eles têm a impressão de prever e de estar na dianteira, já que vêem a mínima coisa como já tendo acontecido; mas sabem que suas advertências não servem para nada, porque a luneta de recortar regulará tudo, sem aviso prévio, sem necessidade nem possibilidade de previsão. Ora eles sentem nitidamente que vêem algo diferente dos outros; ora, que há apenas uma diferença de grau, inutilizável. Colaboram na mais dura empresa de controle, na mais cruel, mas como não experimentariam uma obscura simpatia pela atividade subterrânea que lhes é revelada? Ambigüidade dessa linha molecular, como se ela hesitasse entre duas vertentes. Um dia (que terá acontecido?) um de visão ampla abandonará seu segmento, se lançará em uma estreita passarela por cima do abismo negro, partirá pela linha de fuga, tendo quebrado sua luneta, ao encontro de um Duplo cego que avança na outra extremidade.

Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza. São linhas que nos compõem, diríamos três espécies de linhas. Ou, antes, conjuntos de linhas, pois cada espécie é múltipla. Podemos nos interessar por uma dessas linhas mais do que pelas outras, e talvez, com efeito, haja uma que seja, não determinante, mas que importe mais do que as outras… se estiver presente. Pois, de todas essas linhas, algumas nos são impostas de fora, pelo menos em parte. Outras nascem um pouco por acaso, de um nada, nunca se saberá por quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem nenhum modelo nem acaso: devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida. As linhas de fuga — não será isso o mais difícil? Certos grupos, certas pessoas não as têm e não as terão jamais. Certos grupos, certas pessoas não possuem essa espécie de linha, ou a perderam. A pintora Florence Julien se interessa especialmente pelas linhas de fuga: ela parte de fotos e inventa o procedimento pelo qual poderá extrair daí linhas, quase abstratas e sem forma. Mas, também aí, é todo um conjunto de linhas muito diversas: a linha de fuga de crianças que saem da escola correndo não é a mesma que a de manifestantes perseguidos pela polícia, nem a de um prisioneiro que foge. Linhas de fuga de animais diferentes: cada espécie, cada indivíduo tem as suas. Fernand Deligny transcreve as linhas e trajetos de crianças autistas, faz mapas: distingue cuidadosamente as “linhas de errância” e as “linhas costumeiras”. E isso não vale somente para os passeios, há também mapas de percepções, mapas de gestos (cozinhar ou recolher madeira), com gestos costumeiros e gestos erráticos. O mesmo para a linguagem, se existir uma. Fernand Deligny abriu suas linhas de escrita para linhas de vida. E constantemente as linhas se cruzam, se superpõem por um instante, se seguem por um certo tempo. Uma linha errática se superpôs a uma linha costumeira e aí a criança faz algo que não pertence mais exatamente a nenhuma das duas, reencontra algo que havia perdido — que aconteceu? — ou então ela salta, agita as mãos, minúsculo e rápido movimento — mas seu próprio gesto emite, por sua vez, diversas linhas7. Em suma, uma linha de fuga, já complexa, com suas singularidades; mas também uma linha molar ou costumeira com seus segmentos; e entre as duas (?), uma linha molecular, com seus quanta que a fazem pender para um lado ou para outro.

Perceber, como diz Deligny, que essas linhas não querem dizer nada. É uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma. Certamente não têm nada a ver com a linguagem, é ao contrário a linguagem que deve segui-las, é a escrita que deve se alimentar delas entre suas próprias linhas. Certamente não têm nada a ver com um significante, com uma determinação de um sujeito pelo significante; é, antes, o significante que surge no nível mais endurecido de uma dessas linhas, o sujeito que nasce no nível mais baixo. Certamente não têm nada a ver com uma estrutura, que sempre se ocupou apenas de pontos e de posições, de arborescências, e que sempre fechou um sistema, exatamente para impedi-lo de fugir. Deligny evoca um Corpo comum no qual essas linhas se inscrevem, como segmentos, limiares ou quanta, territorialidades, desterritorializações ou reterritorializações. As linhas se inscrevem em um Corpo sem órgãos, no qual tudo se traça e foge, ele mesmo uma linha abstrata, sem figuras imaginárias nem funções simbólicas: o real do CsO. A esquizoanálise não tem outro objeto prático: qual é o seu corpo sem órgãos? quais são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? Sua própria linha de fuga? Seu CsO que se confunde com ela? Você racha? Você rachará? Você se desterritorializa? Qual linha você interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem figuras nem símbolos? A esquizoanálise não incide em elementos nem em conjuntos, nem em sujeitos, relacionamentos e estruturas. Ela só incide em lineamentos, que atravessam tanto os grupos quanto os indivíduos. Análise do desejo, a esquizoanálise é imediatamente prática, imediatamente política, quer se trate de um indivíduo, de um grupo ou de uma sociedade. Pois, antes do ser, há a política. A prática não vem após a instalação dos termos e de suas relações, mas participa ativamente do traçado das linhas, enfrenta os mesmos perigos e as mesmas variações do que elas. A esquizoanálise é como a arte da novela. Ou, antes, ela não tem problema algum de aplicação: destaca linhas que tanto podem ser as de uma vida, de uma obra literária ou de arte, de uma sociedade, segundo determinado sistema de coordenadas mantido.

Linha de segmentaridade dura ou molar, linha de segmentação maleável e molecular, linha de fuga: muitos problemas se colocam. Em primeiro lugar, referentes ao caráter particular de cada uma delas. Poder-se-ia acreditar que os segmentos duros são determinados, predeterminados socialmente, sobrecodificados pelo Estado; tender-se-ia, em contrapartida, a fazer da segmentaridade maleável um exercício interior, imaginário ou fantasioso. Quanto à linha de fuga, não seria esta inteiramente pessoal, maneira pela qual um indivíduo foge, por conta própria, foge às “suas responsabilidades”, foge do mundo, se refugia no deserto, ou ainda na arte… etc. Falsa impressão. A segmentaridade maleável não tem nada a ver com o imaginário, e a micropolítica não é menos extensiva e real do que a outra. A grande política nunca pode manipular seus conjuntos molares sem passar por essas micro-injeções, essas infiltrações que a favorecem ou que lhe criam obstáculo; e mesmo, quanto maiores os conjuntos, mais se produz uma molecularização das instâncias que eles põem em jogo. Quanto às linhas de fuga, estas não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes em fazê-lo fugir, como se estoura um cano, e não há sistema social que não fuja/escape por todas as extremidades, mesmo se seus segmentos não param de se endurecer para vedar as linhas de fuga. Nada de imaginário nem de simbólico em uma linha de fuga. Não há nada mais ativo do que uma linha de fuga, no animal e no homem8.

E até mesmo a História é forçada a passar por isso, mais do que por “cortes significantes”. A cada momento, o que foge em uma sociedade? É nas linhas de fuga que se inventam armas novas, para opô-las às armas pesadas do Estado, e “pode ser que eu fuja, mas ao longo da minha fuga, busco uma arma”. Nas linhas de fuga os nômades varriam tudo à sua passagem, e encontravam armas novas que deixavam o Faraó estupefacto. De todas as linhas que distinguimos, pode ser que um mesmo grupo ou um mesmo indivíduo as apresentem ao mesmo tempo. Contudo, de modo mais freqüente, um grupo, um indivíduo funciona ele mesmo como linha de fuga; ele a cria mais do que a segue, ele mesmo é a arma viva que ele forja, mais do que se apropria dela. As linhas de fuga são realidades; são muito perigosas para as sociedades, embora estas não possam passar sem elas, e às vezes as preparem.

O segundo problema diria respeito à importância respectiva das linhas. Pode-se partir da segmentaridade dura, é mais fácil, é dado; e em seguida ver como ela é mais ou menos recortada por uma segmentaridade maleável, uma espécie de rizoma que cerca as raízes. E em seguida ver como a ela ainda se acrescenta a linha de fuga. E as alianças e os combates. Mas pode-se partir também da linha de fuga: talvez seja ela a primeira, com sua desterritorialização absoluta. É evidente que a linha de fuga não vem depois, está presente desde o início, mesmo se espera sua hora e a explosão das outras duas. Então a segmentaridade maleável não seria mais do que uma espécie de compromisso, procedendo por desterritorializações relativas, e permitindo reterritorializações que bloqueiam e remetem para a linha dura. É curioso como a segmentaridade maleável está presa entre as outras duas linhas, pronta para tombar para um lado ou para o outro — essa é a sua ambigüidade. E ainda é preciso ver as diversas combinações: a linha de fuga de alguém, grupo ou indivíduo, pode muito bem não favorecer a de um outro; pode, ao contrário, barrá-la, interditá-la a ele, e lançá-lo ainda mais em uma segmentaridade dura. Ocorre bastante no amor que a linha criadora de alguém seja o aprisionamento do outro. Há um problema da composição das linhas, de uma linha com uma outra, mesmo em um mesmo gênero. Não é certo que duas linhas de fuga sejam compatíveis, compossíveis. Não é certo que os corpos sem órgãos se componham facilmente. Não é certo que um amor resista a isso, nem uma política.

Terceiro problema: há a imanência mútua das linhas. Tampouco é fácil desenredá-las. Nenhuma tem transcendência, cada uma trabalha nas outras. Imanência por toda a parte. As linhas de fuga são imanentes ao campo social. A segmentaridade maleável não pára de desfazer as concreções da dura, mas ela reconstitui em seu nível tudo aquilo que desfaz: micro-Édipos, microformações de poder, microfascismos. A linha de fuga faz explodir as duas séries segmentares, mas é capaz do pior: de ricochetear no muro, de recair em um buraco negro, de tomar o caminho da grande regressão, e de refazer os segmentos mais duros ao acaso de seus desvios. Alguém fez travessuras? — isso é pior do que se não tivesse se evadido, cf. aquilo que Lawrence condena em Melville. Entre a matéria de um segredinho sujo na segmentaridade dura, a forma vazia de “o que aconteceu?” na segmentaridade maleável, e a clandestinidade daquilo que não pode mais acontecer na linha de fuga, como não ver os sobressaltos de uma instância tentacular, o Segredo, que ameaça fazer tudo balançar? Entre o Par da primeira segmentaridade, o Duplo da segunda, o Clandestino da linha de fuga, tantas misturas e passagens possíveis. — Enfim ainda o último problema, o mais angustiante, referente aos perigos próprios a cada linha. Pouco há a dizer sobre o perigo da primeira, e seu endurecimento de difícil modificação. Pouco a dizer sobre a ambigüidade da segunda. Mas por que a linha de fuga, mesmo independentemente de seus perigos de recair nas outras duas, comporta, por sua vez, um desespero tão especial, apesar da sua mensagem de alegria, como se algo a ameaçasse exatamente no âmago do seu próprio empreendimento, uma morte, uma demolição, no exato instante em que tudo se esclarece? De Tchekhov, que é exatamente um grande criador de novelas, Chestov dizia: “Ele fez um esforço, não pode haver dúvida a esse respeito, e algo se partiu nele. E a causa desse esforço não foi qualquer labor penoso: ele caiu alquebrado sem ter empreendido uma exploração acima de suas forças. Em suma, foi apenas um acidente absurdo, ele deu um passo em falso, escorregou. (…) Um homem novo apareceu diante de nós, sombrio e melancólico, um criminoso”9. Que aconteceu? Mais uma vez, essa é a questão para todos os personagens de Tchekhov. Não é possível fazer um esforço, e mesmo quebrar algo, sem cair em um buraco negro de amargura e de areia? Mas será que Tchekhov caiu verdadeiramente, não será esse um julgamento totalmente exterior? Não terá o próprio Tchekhov razão em dizer que, por mais sombrios que sejam seus personagens, ele transporta ainda “cinqüenta quilos de amor”? Certamente, não há nada fácil nas linhas que nos compõem e que constituem a essência da Novela, e às vezes da Boa Nova.

Quais são os seus pares, quais são os seus duplos, quais são os seus clandestinos, e as misturas entre eles? Quando um diz ao outro: ama em meus lábios o gosto do whisky como amo em teus olhos um clarão da loucura, que linhas estão se compondo ou, ao contrário, se tornando incompossíveis? Fitzgerald: “Talvez cinqüenta por cento dos nossos amigos e parentes lhes dirão de boa fé que foi minha bebida que enlouqueceu Zelda, a outra metade lhes assegurará que foi a sua loucura que me levou à bebida. Nenhum desses julgamentos significaria grande coisa. Esses dois grupos de amigos e de parentes seriam unânimes em dizer que cada um de nós se comportaria bem melhor sem o outro. Com a ironia de que jamais em nossa vida fomos tão desesperadamente apaixonados um pelo outro. Ela ama o álcool em meus lábios. Eu venero suas alucinações mais extravagantes”. “No final nada tinha verdadeiramente importância. Nós nos destruímos. Mas, com toda a honestidade, jamais pensei que nos destruímos um ao outro”. Beleza desses textos. Todas as linhas estão aí: a das famílias e dos amigos, todos aqueles que falam, explicam e psicanalizam, repartem os erros e as razões, toda a máquina binária do Par, unido ou separado, na segmentaridade dura (50%). E em seguida a linha de segmentação maleável, em que o alcoólatra e a louca extraem, como em um beijo nos lábios e nos olhos, a multiplicação de um duplo no limite do que podem suportar em seu estado, com os subentendidos que lhes servem de mensagem interna. Mas ainda a linha de fuga, tanto mais comum pelo fato de estarem separados, ou o inverso, cada um clandestino do outro, duplo tanto mais bem sucedido pelo fato de nada mais ter importância e tudo podem recomeçar, pois eles estão destruídos, mas não um pelo outro. Nada passará pela lembrança, tudo aconteceu nas linhas, entre as linhas, no E que os torna imperceptíveis, um e o outro, nem disjunção nem conjunção, mas linha de fuga que não pára mais de se traçar, para uma nova aceitação, o contrário de uma renúncia ou de uma resignação, uma nova felicidade?

Notas

1 Cf. Les Diaboliques de Barbey, 1874. Certamente, o próprio Maupassant não se limita ao conto: há em sua obra novelas, ou elementos de novelas em seus romances. Por exemplo, em Une vie, o episódio da tia Lison: “Era na época do desvario de Lison. (…) Nunca mais se falou sobre isso, e esse desvario permanecia como que envolto em uma bruma. Uma noite, Lise, que contava então vinte anos, se jogou na água sem que se soubesse o porquê. Nada em sua vida, em suas maneiras, poderia fazer pressentir essa loucura (…)”.

2 V. Propp, Morpbologie du conte, Gallimard.

3 M. Arland, Le Promeneur, ed. du Pavois.

4 Nathalie Sarraute (L’ère du soupçon, “Conversation et sous-conversation”, Gallimard) mostra como Proust analisa os menores movimentos, olhares ou entonações. Entretanto, ele os capta na recordação, atribui-lhes uma “posição”, considera-os como um encadeamento de efeitos e de causas; “raramente tentou revivê-los e fazer com que o leitor os revivesse no presente, enquanto eles se formam e à medida que se desenvolvem como dramas minúsculos, tendo cada um suas peripécias, seu mistério e seu imprevisível desenlace”.

5 Kierkegaard, Crainte et tremblement, Aubier, p. 52 sq.

6 Em uma outra novela da mesma coletânea, “Le dernier angle de transparence”, Pierrette Fleutiaux destaca três linhas de percepção, sem aplicação de um esquema preestabelecido. O herói tem uma percepção molar, que incide sobre conjuntos e elementos bem delineados, cheios e vazios bem repartidos (é uma percepção codificada, herdada, sobrecodificada pelos muros: não se sentar ao lado de sua cadeira etc). Mas ele experimenta também uma percepção molecular, feita de segmentações finas e moventes, traços autônomos em que surgem buracos no cheio, microformas no vazio, entre duas coisas, em que “tudo fervilha e se movimenta” por mil fissuras. A preocupação do herói é que ele não pode escolher entre as duas linhas, saltando constantemente de uma a outra. Viria a salvação de uma terceira linha de percepção, percepção de fuga, “direção hipotética apenas indicada” pelo ângulo das outras duas, “ângulo de transparência” que abre um novo espaço?

7 Fernand Deligny, “Voix et voir”, Cahiers de l’immuable, abril 1975.

8 Henri Laborit escreveu um Eloge de la fuite (Laffont), em que mostra a importância biológica das linhas de fuga no animal. Entretanto, ele concebe essas linhas de modo demasiadamente formal; e, no homem, a fuga lhe parece ligada a valores do imaginário destinados a aumentar a “informação” do mundo.

9 Leon Chestov, L’homme pris au piège, 10-18, p. 83.

*Platô publicado em: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1996. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão.

** Imagem roubada do artista Richard Felton Outcault na tirinha “Une Course de Mouvementée”. Para vê-la desdobre em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/88/-_Buster_Brown_le_petit_farceur_05b.jpg

Fonte: Territórios de Filosofia

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