setembro 13, 2014

"Burroughs: do controle à revolução", por Bruno Cava

PICICA: "“Se o controle do Controle é absoluto, porque o Controle precisa controlar? Resposta: o controle precisa do tempo. A morte precisa do tempo como o drogado precisa da droga.” Esta citação de William Burroughs em Ah Pook is here (1979) formula de maneira concisa a visão do autor sobre uma nova forma de dominação social, própria do capitalismo do segundo pós-guerra. Não mais a dominação do homem pelo homem, da aristocracia ou da plutocracia. Acabou o mundo de Hitlers e Stalins, de crápulas engravatados em cúpulas douradas decidindo o futuro da plebe. Chegou a vez de “forças abstratas”, de “pilotos amedrontados ante os controles de uma vasta máquina que eles não podem compreender”, de uma dominação tão sutil quanto pervasiva, tão globalizada quanto minuciosamente epitelial."
 
Burroughs: do controle à revolução
 
SoftMachine2



“Se o controle do Controle é absoluto, porque o Controle precisa controlar? Resposta: o controle precisa do tempo. A morte precisa do tempo como o drogado precisa da droga.” Esta citação de William Burroughs em Ah Pook is here (1979) formula de maneira concisa a visão do autor sobre uma nova forma de dominação social, própria do capitalismo do segundo pós-guerra. Não mais a dominação do homem pelo homem, da aristocracia ou da plutocracia. Acabou o mundo de Hitlers e Stalins, de crápulas engravatados em cúpulas douradas decidindo o futuro da plebe. Chegou a vez de “forças abstratas”, de “pilotos amedrontados ante os controles de uma vasta máquina que eles não podem compreender”, de uma dominação tão sutil quanto pervasiva, tão globalizada quanto minuciosamente epitelial.

A imagem da máquina, de fato, aparece ao longo da obra de Burroughs, inclusive no título de um dos romances, The soft machine (1961). Primeiro da trilogia Nova, foi elaborado segundo a técnica cut-up, radicalizando o estilo de Naked lunch. As passagens eram escritas, recortadas e depois recompostas aleatoriamente, fissurando  a rocha do possível. O “aleatório” da narrativa, contudo, não era o puro acaso: a recombinação ora seguia padrões evanescentes, ora algoritmos esporádicos – no que contribuíram o pintor Brion Gysin e o programador de computadores Ian Sommerville. O resultado é um livro em que se tem a sensação de se estar zipando de canal da TV a cada 10 segundos, numa justaposição de subnarrativas que, aos poucos, vão exalando estranhas ressonâncias e sentidos diagonais. Ler Soft machine exige antes de tudo um descondicionamento da percepção: é preciso “esquecer” a linearidade do texto e suspender o juízo sobre a coerência do enredo, o que causa desconforto do início ao fim. Para aceitar o convite deste livro, é preciso se deixar levar pela densa imagética: road movie promíscuo nos trópicos, a onipresença de orgias homossexuais, experiências extracorpóreas e controle mental, tramas desconexas de espionagem, viagem no tempo e alucinações, muitas alucinações. A paisagem se refere à supermidiatização da sociedade e é povoada por figuras heterogêneas, mundos incompossíveis, pelo grotesco e pelo descontínuo, num roteiro de drástico descentramento da consciência, várias vezes dilacerada.

Publicado no cenário de agitação do começo dos anos 1960, o sentido político de Soft machine foi desenvolvido por Gilles Deleuze. Para o filósofo, o capitalismo hoje é marcado pela passagem das sociedades disciplinares às de controle, tão bem intuída pela obra de Burroughs. Se naquelas a dominação social se caracteriza pela lógica do confinamento – a escola, a fábrica, a prisão, o manicômio -, nestas o controle é exercido no aberto. Não se trata mais da desumanização provocada pelas instituições: a própria instituição do humano se funde com implantes perceptivos e circuitos de sensação, enquanto compulsões comportamentais são induzidas tanto nos apelos de formação da individualidade, quanto na moral de grandes massas gregárias.

Nas sociedades de controle, não se exige mais a obediência voluntária e corpos humanos dóceis: o novo homem-máquina embute as rotinas, os tiques, os automatismos e os circuitos das mais avançadas tecnologias de comunicação, ao mesmo tempo que cada um pode se enxergar livre. Enxertado de micromáquinas, seu tecido se expande nas telas de TV, nos peep shows, arcades, videogames, nos trackings com que todos seus produtos (inclusive políticos) são customizados. A sociedade se torna um gigantesco maquinário de automação, sem centro de comando, megamaquinado na mídia, no dinheiro, no vício, na liberdade.

Posso andar livremente e posso sonhar, mas meu sonho é sonhado por outra pessoa: é a ficção da Máquina de Controle, do estúdio da realidade que não está em lugar algum: está na pele, nos órgãos, na linguagem, nos gases que pairam pela atmosfera. Os Aparelhos Ideológicos de Estado penetraram na carne como espículas, molecularizados nos cinco sentidos e tantos outros que serão inventados – uma nova awareness da ambiência social. É-se controlado na liberdade mesma, no desejo de emancipação. Não existe ideologia: tudo é corpo. O Controle engendra a própria oposição, que deve ser reduzida aos termos dialéticos com que poderá exercer ainda mais controle, alargando seus limites. É a Nova Police, – de Nova express, terceiro romance da trilogia, de 1964, – a polícia nova depende dos criminosos e conta com eles para se recriar (o que Michel Foucault chamaria de “economia das ilegalidades”). A todo momento, devem ser reprogramadas as resistências, remasterizadas as revoltas, adicionando novos axiomas do código biossocial, com o que o controlato prevê o campo do possível e colmata suas brechas, ao mesmo tempo que oferece a recauchutagem como o novo.

Estaria então tudo dominado? Burroughs e Deleuze se somariam aos pessimistas da totalidade, aos depressivos do espetáculo e do esclarecimento, como Debord ou Adorno? não haveria portanto saída e qualquer resistência mera ilusão? Nada disso.

Burroughs era um grande paranoico, mas a paranoia não deve ser entendida no sentido de patologia. A paranoia é o próprio substrato da sociedade ultracontrolada, e paranoico é o ponto de partida com o que se pode começar a decodificar o real. Como no Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari: quando as máquinas desejantes se engancham no Corpo sem Órgãos (CsO), elas são repelidas imediatamente, num magnetismo de polo inverso, porque o CsO as vê como uma perseguição generalizada.

A construção burroughsiana do controle não deve ser buscada apenas na tecnologia, mas também na biologia. Daí sua maior força explicativa do que, digamos, as prosaicas teletelas de Orwell. Em Burroughs, a droga é a base do controle: para que funcione, é necessário que o controle seja querido e buscado, que a consciência nele se imante, e que a realidade controlada seja vivida como transe, e sua maior alucinação: o trabalho. Mas a droga não vem de fora, como um agente agressivo, como se houvesse uma sociedade saudável ameaçada pelo poder contaminador. Na sociedade de controle, o homem-máquina é construído com defeitos genéticos e desarranjos enzimáticos que fazem com que o próprio corpo produza as substâncias que o intoxicarão. As toxinas vêm da saúde normal. Uma intoxicação que é sistêmica: os bancos, os teatros, as praias e os livros precisam tanto de desintoxicação quanto as pessoas. Sem que haja homem puro a retornar, nenhuma saúde anterior a defender.

No capítulo Mayan caper, de Soft machine, o anti-herói viaja no tempo para libertar os escravos da civilização maia de seus sacerdotes perversos. E consegue fazê-lo assaltando o estúdio da realidade para então recombinar a trilha sonora com que o templo controlava corpos e mentes. Técnica subversiva semelhante à aplicada pelo atendente da loja de hambúrgueres no filme alemão Decoder (Muscha, 1984). Ao trocar a música ambiente de lugares públicos da cidade, ele consegue incitar uma revolta, intoxicando as pessoas de outro humor. Em Deleuze, na sociedade do controle, a revolta se catalisa pela interferência e pelo vírus, modos passivo e ativo de tumultuar o poder do controlato. Recombinar afirmativamente, cut-up, no que Burroughs sugere a técnica de fuga, a mesma com que ele próprio escreve a trilogia Nova. Deleuze e Guatarri também urgirão por uma intervenção na sintaxe, a única via para fazer literatura menor, isto é, chamar um povo que ainda não existe à insurreição.

A contraficção põe o controle em crise através da sintaxe. O campo de possíveis se esgota na semântica de um tempo. Os anticorpos paranoicos do Corpo sem Órgãos não são capazes de anular tais anomalias sintáticas, que o excedem a programação. O Controle precisa do tempo – mas do tempo homogêneo e linear, socialmente necessário, que o capital converte em mais dinheiro. O tempo densificado da criação, kairós, é recombinação em cut-up da sintaxe.

Deleuze enxerga máquinas revolucionárias montadas a partir das ciências e das artes – e não diretamente da atividade militante, que amiúde lhe parece (talvez injustamente) engendramento do próprio Controle, repetidora das moléculas de sujeição social em suas identidades e códigos. O próprio socialismo real, interiorizado como axioma do capitalismo e vice-versa, bem como a conversão da esquerda em grilo falante dos governos. Toxicômanos, não conseguimos nos libertar do sonho dos outros: europeus orientais sonhavam com Big Macs, ao passo que os ocidentais pretendiam planificar economicamente a abundância. Mas os Sputniks vagavam no espaço e Hendrix tocava Eletric Ladyland, bombardeando o inconsciente maquínico além dos sonhos do controlato. Tantos desejos maquinados pela ciência e pela arte, recombinados no evento de Maio de 1968, abriram uma fissura inédita na sintaxe de seu tempo. O novo, aí, não é política Nova – é interferência produtiva, cut up de fragmentos inconscientes que fazem num novo real. A revolução é um estilo político.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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