setembro 16, 2014

"Genealogia da Moral – “Culpa”, “Má consciência”, e coisas afins ", por Rafael Trindade

PICICA: "quem quer o Deus cristão? Quem se sente devedor? Quem precisa do sacerdote ascético? O escravo, claro, ele não pode afirmar, por isso nega o outro. Ele precisa aliviar seus tormentos! O escravo quer, mas quer o nada (Deus); nesta negação tem a falsa ilusão da afirmação. Ele quer pagar a dívida, mas não consegue; ele quer afirmar-se, mas não pode; ele quer ser senhor, mas não é. Como ele não pode expandir-se, devido à sua fraqueza, ele inverte os valores e diz que só não age assim porque é bom, manso, humilde, espera o reino do céus e a volta de cristo.

Há uma crescente interiorização de seus impulsos, e consequentemente, de sua raiva, ódio e ressentimento. Para manter tudo no lugar, o sacerdote ascético administra seus remédios, conservando o homem da má consciência sempre manso, dócil, confuso e obediente (veja aqui).  E o sacerdote ascético termina com o processo, invertendo o ressentimento e salvando a própria vontade que declina.

Mas o que há de mais baixo no homem moderno é que ele quer fazer todos se sentirem culpados, devedores como ele. Para isso, espalha os valores ascéticos aos quatro ventos, levando sua doença para cada vez mais longe."

Genealogia da Moral – “Culpa”, “Má consciência”, e coisas afins

 
Desespero, Mats Eriksson
Desespero, Mats Eriksson
Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem?” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 1

Como fizemos do homem um animal capaz de prometer? E mais, como tornamos o homem este animal que se envergonha de si mesmo? A culpa e a má consciência são consequências diretas do ressentimento e inversão dos valores (veja aqui). Veremos neste texto o que Nietzsche chama de interiorização do homem. Mas antes vale voltar ao método genealógico e perguntar: quem quer prometer?


É útil para o homem ser capaz de prometer. Somos Vontade de Potência, que age no mundo, criando e dando sentido. Ao dar valor às coisas, temos a capacidade de efetuar trocas com outros homens. A relação credor-devedor nasce das trocas que efetuamos ao darmos valor às coisas. “Estabelecer preços, medir valores, imaginar equivalências, trocar” (p.54). Mas, diz Nietzsche, a única forma de ativar a memória no homem é através da dor. A própria dor tem um valor positivo na pré-história da humanidade. Ela serve tanto como pagamento de uma dívida, como marca que permite ao homem lembrar-se posteriormente de suas promessas. A dor é sempre exterior, ela é parte necessária da vida, é preciso amá-la. Na relação credor-devedor do começo da humanidade o castigo existia exatamente para impedir a culpa: paga-se a dívida com uma punição e põe-se fim à questão.

Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – e no castigo também há muito de festivo!” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 6

O primeiro passo para a interiorização do homem acontece quando ele se torna incapaz de esquecer. Sim, somos dispépticos: não temos a força ativa capaz de limpar a consciência. A força ativa que há em nós deve forçar a consciência a ficar vazia, para abrir-se ao novo, experimentar coisas diferentes, mergulhar novamente no mundo. Desaprendendo a esquecer na hora certa, aprendemos a lembrar na hora errada.

Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais e cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar [...] eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 1

É útil para a cultura um animal capaz de prometer, ele se torna confiável, mas isso deve ser usado apenas no sentido de fazer do homem um animal mais forte. A promessa se dá entre iguais em força que se beneficiam ao lembrar do que prometeram um ao outro:

O homem ‘livre’, o possuidor de uma duradoura e inquebrantável vontade, tem nesta posse a sua medida de valor: olhando para os outros a partir de si, ele honra ou despreza; e tão necessariamente quanto honra os seus iguais, os fortes e confiáveis (os que podem prometer – ou seja, todo aquele que promete como um soberano, de modo raro, com peso e lentidão, e que é avaro com sua confiança, que distingue quando confia, que dá sua palavra como algo seguro, porque sabe que é forte o bastante para mantê-la contra o que for adverso” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 2

Mas no homem do ressentimento, estas forças ativas se tornaram debilitadas, ele não consegue mais esquecer. Consequência: todo estímulo se torna um incômodo, toda lembrança se torna um tormento, toda memória uma lamentação. “Oh! No meu tempo… ah! Quando eu era jovem…“, é um dos possíveis casos, mas o homem do ressentimento também não esquece as dores, ele vive remoendo e ruminando a dor que não consegue digerir: “Aquela ofensa, aquele dia; ele me pagará, ele não perde por esperar!“. Mas isso significa que Nietzsche despreza a memória? Não, tomemos cuidado com as palavras, toda força reativa existe e sempre existirá, mas o escritor de Genealogia da Moral apenas quer colocá-la em seu devido lugar. No homem do ressentimento, a memória se torna dor interiorizada, então, a saudável relação credor-devedor (que envolvia a dor como algo externo, mas necessário) se transforma em uma relação credor-culpa.

A cultura existiria primariamente para dobrar o homem, moldar sua consciência, criar um ponto de apoio onde ele poderia subir e superar-se. Contudo, ela permitiu que a erva daninha da má consciência crescesse e se espalhasse. A dor, antes externa e parte do processo se tornou algo interno e motivo de vergonha. O homem é um animal que foi quebrado, sua cultura é pesada demais para ele carregá-la em seus ombros; como um camelo (veja aqui), ele se esforça para levar consigo sua moral, seus deveres, suas leis e suas responsabilidades.

Esse animal que querem ‘amansar’, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 16

Não há contrato social, apenas uma guerra interna dos instintos que antes se exteriorizavam. A doença da má consciência é uma desordem fisiológica. Seu resultado? O “cidadão de bem”: cômodo, conciliado, obediente, vão, sentimental, cansado. A pré-história preocupou-se com o adestramento das forças reativas; na história, inverteram-se os valores, preponderaram a fraqueza e a desordem. Resultado: o homem se tornou um plano que fracassou, uma promessa não cumprida. Ele se arrasta no tempo esperando redenção.

Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 16

Vivemos os tempos de paz e tranquilidade, do sossego e da concórdia. O homem forte ainda consegue viver nesta cultura, buscando suas batalhas, criando valores, e se mantendo distante dos fracos e ressentidos. O fraco é um perigo para o forte, ele pode contaminá-lo. Por isso o senhor precisa manter o pathos da distância. Mas o escravo é aquele que inverte os valores, para ele os mansos são os bem-aventurados. Os dóceis, que chamamos de fracos, doentes, não tem para onde descarregar seus instintos, voltando-os para dentro.

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua ‘alma’. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 16

A sociedade exige o amansamento da fera, a expansão dos instintos não tem mais vazão. É o momento da introjeção. Olhando para a vida com rancor, como uma mentira, estas forças viram-se contra si mesmas. O homem escoa agora todos os seus instintos, toda sua agressividade, para dentro. A força é interiorizada e se torna dor; a dor é interiorizada e se torna culpa.


Bicho-homem interiorizado, acuado dentro de si mesmo, aprisionado no ‘Estado’ para fins de domesticação, que inventou a má consciência para se fazer mal” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 22
Giuseppe Crespi
Giuseppe Crespi

Mas do primeiro para o segundo momento é preciso o golpe de gênio de umas das figuras mais interessantes do bestiário nietzschiano: o sacerdote ascético (veja aqui). Ele entra em cena para salvar o homem que sofre pela falta de sentido para sua dor e seu incômodo. A dor é muito pior quando ela não tem sentido. “O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido” (p. 53). Ela é possível de suportar, mas a dor sem sentido é uma maldição! O homem do ressentimento precisa de algo que justifique seu incômodo com o mundo em que vive, seu mal-estar na civilização, sua indisposição. O sacerdote ascético surge para inverter a direção do ressentimento e dar-lhe um sentido.

‘Eu sofro: disso alguém deve ser culpado’ – assim pensa  toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: ‘Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém – somente você é culpada de si!…”. Isto é ousado bastante, falso bastante: mas com isso se alcança uma coisa ao menos, com isto, como disse, a direção do ressentimento é – mudada” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, § 15

Com a dívida infinita nós nos tornamos eternamente culpados. Como não podemos pagar a dívida, nosso credor se torna poderoso e sobrenatural. “O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa” (p. 73). O aprofundamento do ressentimento levou à má consciência, mas ainda não havia uma justificativa para a dor, com o aparecimento do sacerdote cristão a vontade estava salva. Mas a dor e a culpa se tornam ainda mais profundas:

O próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!…” – Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação, § 21

Mas voltemos à genealogia: quem quer o Deus cristão? Quem se sente devedor? Quem precisa do sacerdote ascético? O escravo, claro, ele não pode afirmar, por isso nega o outro. Ele precisa aliviar seus tormentos! O escravo quer, mas quer o nada (Deus); nesta negação tem a falsa ilusão da afirmação. Ele quer pagar a dívida, mas não consegue; ele quer afirmar-se, mas não pode; ele quer ser senhor, mas não é. Como ele não pode expandir-se, devido à sua fraqueza, ele inverte os valores e diz que só não age assim porque é bom, manso, humilde, espera o reino do céus e a volta de cristo.


Há uma crescente interiorização de seus impulsos, e consequentemente, de sua raiva, ódio e ressentimento. Para manter tudo no lugar, o sacerdote ascético administra seus remédios, conservando o homem da má consciência sempre manso, dócil, confuso e obediente (veja aqui).  E o sacerdote ascético termina com o processo, invertendo o ressentimento e salvando a própria vontade que declina.


Mas o que há de mais baixo no homem moderno é que ele quer fazer todos se sentirem culpados, devedores como ele. Para isso, espalha os valores ascéticos aos quatro ventos, levando sua doença para cada vez mais longe. Este é o tema do próximo texto de nossa série.


> Genealogia da Moral: “O que significam ideais ascéticos?” <

Raskolnikov, personagem do livro "Crime e Castigo" de Dostoiévski
Raskolnikov, personagem do livro “Crime e Castigo” de Dostoiévski

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