novembro 20, 2014

"Black blocs de São Paulo (resenha)", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Em 2010, Jessé Souza lançou um livro que já virou leitura obrigatória. Chama-se Batalhadores do Brasil e preenche de histórias uma nova categoria sociológica voltada a explicar as mudanças profundas e duradouras da sociedade brasileira. Este livro de 2014 (Mascarados; a verdadeira história dos adeptos da tática black bloc) testemunha um momento crucial em que as categorias se despedaçam e, além das classes sociais, emerge uma nova classe, uma classe que existe porque luta. Ainda precária, incipiente, mas viva. Os black blocs são um vetor de um acontecimento maior." 

Black blocs de São Paulo (resenha)
Resenha de SOLANO, Esther (et al). Mascarados; a verdadeira história dos adeptos da tática black bloc. São Paulo: Geração, 2014. 288 p.

Índice


Esqueça o subtítulo. São muitas as histórias e muitos os pontos de vista que este livro contêm. Um poliedro de verdades, como esclarece a introdução. Seu propósito declarado é multiplicar narrativas dos black blocs, sobre eles, com eles. O livro não julga. Desdobra e problematiza as experiências em seu direito próprio, na condição política de resistência a que pertencem.

O foco é a cidade de São Paulo, no período das manifestações de junho à Copa do Mundo. Em São Paulo, a tática black bloc ganhou regularidade e cristalizou, aos poucos, grupos de afinidade. É possível falar, talvez impropriamente, num Black Bloc (com maiúsculas). Embora essencialmente se trate de uma tática, ainda assim é possível definir um conjunto de “adeptos da tática”, que passaram a repetir comportamentos e uma identidade visual. Ainda estão para ser escritos livros sobre os black blocs noutras cidades, onde talvez a força do black bloc tenha sido dispersar, hibridizar, e contornar, exatamente, a possibilidade de circunscrever um âmbito numerável de “adeptos”.

O livro se divide em três momentos. O primeiro (Esther Solano) se baseia em percepções e problematizações da pesquisadora a partir das ações black bloc, nas assembleias, ações diretas, correrias e delegacias. O segundo momento (Bruno Paes Manso) é uma narrativa jornalística mais distanciada, atenta às ressonâncias, à coagulação de sentidos que a cidade precipitava sobre os black blocs. O terceiro momento (William Novaes) traça perfis individuais, busca a compreensão das motivações, a visada sociológica que se delonga nas peças do quebra-cabeça existencial que sustentou o fenômeno. Os três momentos dialogam com o repertório de perguntas frequentes sobre quem são, o que querem, e como se organizam os black blocs. Se os dois primeiros momentos são escritos em travelling, o terceiro procede em panorâmica. Os três falam do acontecimento.

O posfácio (Pablo Ortellado) faz um deslocamento, ao reconstruir a genealogia dos black blocs. Parte da tradição da desobediência civil, passa pelos autonomistas europeus dos anos oitenta, até chegar nos alterglobalistas de Seattle dos noventa. Pablo oferece um contradiscurso. Um remédio anti-ideológico à narrativa-mestra da grande imprensa, que desde o princípio acusou minorias barulhentas e vândalas de frustrar, primeiro, o direito de ir e vir dos trabalhadores, segundo, o direito do cidadão de bem de manifestar-se sem violência. Pablo contextualiza um discurso onipresente entre os black blocs: a violência performática é fichinha quando comparada à violência institucional que aquela denuncia. Se a primeira se prende à propriedade privada (em geral, vidraças e lixeiras), a última tritura corpos às dezenas de milhares por ano. Uma atinge símbolos do capital (agências bancárias, prédios públicos, grandes redes lojistas), a outra vandaliza a juventude pobre e negra das grandes metrópoles. Ao ler o livro, veremos que não é exatamente assim: a ação black bloc em São Paulo ocasionalmente também assumiu por alvo o estado em sua face mais visível: os policiais.

O mérito de Esther, Bruno e Willian é recompor o acontecimento desde o plano da alteridade. Quando os black blocs exprimem a violência, não estão falando a partir de alguma posição teórica. O noticiário é sobre eles. A violência da cidade está neles. A violência aparece como relação política e social. É o racismo das batidas policiais, a violência da milícia que ameaça, é ser arrancado bem cedo desde um bairro distante pra aguentar o patrão, é o pai que bebe e bate na mãe, os amigos que humilham o homossexual, são os corpos prensados do transporte coletivo, o tempo imenso arrancado pelo trânsito, o sentimento de desalento econômico, bloqueio existencial e asfixia urbana numa cidade onde paradoxalmente o amor virou artigo da moda.

Diante dessa violência, a ação black bloc colhe a hipocrisia da defesa do patrimônio público e da condenação em abstrato. Que bateu recordes olímpicos quando, diante dos protestos, parte da esquerda brasileira teceu ladainhas sobre voluntarismo, chamadas à ordem estratégica ou sermões sobre como fazer e não fazer. Não apenas desinteressados em relacionar-se com os black blocs: desejaram mesmo esconjurá-los e até chamaram a polícia. Esses esquerdistas não foram bons-moços: foram canalhas (o que geralmente dá no mesmo). Se a narrativa-mestra da grande mídia atribui aos black blocs um caráter apolítico de crime, mero assunto de polícia, a esquerda antiprotesto foi além: qualificou-os politicamente como fascistas. Teriam expulsado as “pessoas comuns”, argumento universal de desqualificação — argumento aliás envergonhado, pois atribui a um terceiro genérico a própria inconfessável repulsa.

Por vários registros, os autores dão outra vida aos novos personagens que, mal tendo entrado em cena, foram calados à força. Uma vida cujo entroncamento coletivo nasce do encontro entre diferentes opressões, marcadas em diferentes corpos, e canalizadas na formação contingente do bloco. Aí, as raivas não são individuais: são sociais. Os hormônios não são impulsos destrutivos: são tonificadores para uma elaboração de sofrimento que impulsiona ação e organização, ainda que precárias. As ações encontram as ideias que se transformam, abrindo um espaço novo. A ruptura da rotina é catarse, mas é também libertação. Vários manifestantes preferem as balas de borracha do centro às de aço da periferia, onde a repressão é ainda mais crua. A máscara possibilita a libertação. Ao morfar, o manifestante se converte num ser agente da pólis. Ocupa a cidade noutro ritmo, o medo é vencido, e pode vivenciar uma solidariedade desconhecida. É um gesto político, pleno. A impaciência tem seus direitos quando a paciência é exigida como resignação a uma condição intolerável.

O discurso contra a violência em abstrato é intrinsecamente conservador e ideológico. Só interessa ao poder dominante achatar os vários graus, as diferentes seletividades e incidências da violência, como um processo unitário e homogêneo. A violência não é uma batata: ela é produzida. Quem escreve do ponto de vista da transformação precisa problematizar os níveis: existe a resistência, a força, a violência, o terror. O discurso do poder dominante pressupõe que a violência é uma opção moral cuja origem está na intenção do perpetrador. A violência institucional seria essencialmente reação. O estado seria um mal necessário voltado a combater o mal que existe na sociedade. Os idealistas do estado acreditam na superioridade moral dessa missão, como se o estado estivesse à esquerda da sociedade ou do mercado. Os realistas, em maior número, diriam que o estado pode não terminar fazendo um bem, mas é inevitável e necessário. É assim porque parte da premissa que a sua violência é reação. Por ser intrinsecamente reação, a violência do estado é inevitável e necessária, porque reagir diante do crime, de algum jeito, é inevitável e necessário. Por isso, o esforço de caracterizar atos de violência estatal como reação a um mal anterior. E por isso o mal anterior precisa ser obrigatoriamente moral, porque se o estado também aparecesse na causa o círculo vicioso se fecharia e a legitimidade do conjunto iria pra cucuia. Foi isso que os black blocs (ou a campanha Cadê o Amarildo), denunciaram: a hipocrisia estrutural na questão da violência. As razões da violência andam juntas com a violência das razões. O noticiário, o sistema penal, parte da esquerda: máquinas binárias de achatamento de discursos e corpos.

Como nem tudo são vitórias, black blocs foram bem sucedidos em surfar na espetacularização da violência, mas não conseguiram ou não puderam inovar para escapar dela, quando mais precisavam: confiantes no sucesso inicial, na volúpia de uma sensação de poder inédita, esqueceram que a lógica do espetáculo exige constantes fatos novos, que dá voltas e recupera as derrotas. Dois fatos novos, em particular, tiveram um desfecho muito desfavorável: o confronto com o coronel da PM de São Paulo, em outubro de 2013, a morte acidental do cinegrafista Santiago, no Rio, em fevereiro de 2014. Ambos desfechos tiveram por consequências, em alguma medida, opções que se mostraram erradas. No primeiro caso, a opção de mergulhar na dialética black bloc x polícia, que a essa altura já se mostrava um atoleiro sensacionalista. O segundo, na opção de remetê-lo a fatos isolados e individuais, flertando com a sempre-inaceitável narrativa do “dano colateral”, em vez de assumir o triste episódio como chance para uma reorganização de métodos. O esgotamento se deu aos poucos, e não pode ser atribuído apenas ao esmagamento cada vez mais brutal e sofisticado dirigido pelos governos, em todos os níveis.

Esther insiste que o black bloc veio pra ficar. Eu concordo. Em certa dimensão, já ficaram. O livro vai além da contranarrativa que os black blocs são anticapitalistas que atacam símbolos do capitalismo para denunciar as condições de vida. Seria dizer muito pouco. Seria reduzir a singularidade do acontecimento a um problema social que finalmente explode, mero reflexo sociológico ou antropológico de uma condição objetiva, doravante realizada. Como se as pedras fossem apenas “mensagens”…

Além de contraespetáculo e contraideologia, do anti da recusa, foi muito mais do que isso. O caldo de pixadores, skatistas, punks, anarcos, internet, universidade, periferia, militância, livros de Bakunin, hip hop, Seattle, estética de quadrinhos, — tudo isso conquistou uma potência maior do que, simplesmente, denúncia anti-ideológica e contraespetacularização. Existe um SIM aí — um sim que é caldeamento de um processo novo, juntando diferentes, outra experiência da cidade e um regime diferente de vivenciabilidade dessa experiência. Ao imobilismo provocado por trânsito, plano urbanístico, superlotação, racismo, heteropatriarcado, noticiário; os black blocs aceleram e reocupam, num terreno de recomposição que é movimento da cidade e retomada do direito à cidade. Daí a paulatina reação da ordem em cercá-los, identificá-los, em formar cordões de isolamento sucessivos até culminar nas prisões preventivas e nos caldeirões da Copa, dedicados a re-imobilizá-los.

Em 2010, Jessé Souza lançou um livro que já virou leitura obrigatória. Chama-se Batalhadores do Brasil e preenche de histórias uma nova categoria sociológica voltada a explicar as mudanças profundas e duradouras da sociedade brasileira. Este livro de 2014 testemunha um momento crucial em que as categorias se despedaçam e, além das classes sociais, emerge uma nova classe, uma classe que existe porque luta. Ainda precária, incipiente, mas viva. Os black blocs são um vetor de um acontecimento maior.

Fonte:  Quadrado dos Loucos

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