novembro 11, 2014

"O fim do mundo à americana e sua salvação", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "A defasagem do filme em relação a um mundo em franca mutação é absoluta, diante do “perigo chinês”, dos conflitos abertos da era Obama e da proliferação de lutas e frentes pelo mundo. Se a crise do meio ambiente tem alguma saída, vem pela radicalização de uma democracia global, nunca pela missão autoatribuída de elites e messias brancos, com bottons do Partido Republicano. Sem deus ex machina, só a democracia. Na contramão das transformações, Interestelar marca passo na pretensão megalomaníaca do cinemão de Hollywood. Uma imagem tão futurista quanto em via de extinção." 

O fim do mundo à americana e sua salvação
Crítica de Interestelar, Christopher Nolan, 2014.

Farm


Primeiro foi o trigo, depois o quiabo, agora é a vez do milho. Tudo em extinção. O apocalipse ambiental já aconteceu. Mas o fim do mundo não veio com a subida das águas nem pelo choque de um cometa. O mundo acaba numa lenta agonia com a exaustão paulatina dos recursos naturais, devastados por pragas incontroláveis e tempestades de areia. Os últimos humanos converteram o mundo numa imensa plantação de milho, em cujas colheitas remanescentes se agarram antes do esgotamento derradeiro. Não há mais sentido em estados, exércitos, grandes projetos ou cidades efervescentes. Tudo isso desapareceu ante à necessidade básica de comer.

O protagonista, Cooper, mora numa pequena propriedade rural do meio-oeste americano, com seu pai e o casal de filhos, Tom e Murph. Chamado na diretoria da escola, é recebido por dois professores de esquerda. Uma mulher e um negro, que repreendem o comportamento da filha. Murph teima em afirmar que o homem teria ido à Lua no século 20, contrariando os livros de história. A corrida espacial, afinal, não passou de uma farsa de televisão montada para assustar os soviéticos e vencer a guerra fria. O que estava em jogo, na verdade, era a consolidação de uma economia predatória baseada no consumo e desperdício, o que preparou o terreno para a catástrofe ambiental no século seguinte. O pai insiste que quer ver os filhos como cientistas e engenheiros, ao que os diretores recomendam a resignação: “somos uma geração de fazendeiros”.

Cooper no entanto não se conforma em pensar pequeno. Angustiado com a impotência que parece acometer todos em sua volta, não pretende ficar preso aos ciclos de uma natureza que decidiu sufocar a espécie humana aos poucos. Contatado por uma entidade estranha que se apresenta para a filha, ele irá seguir os sinais divinos, embarcando na teodiceia restauradora dos valores em que nunca deixou de acreditar, apesar do ocaso social. Ele passa a exercer o papel do eleito para salvar a humanidade. A mão do destino o conduz até uma espécie de Área 51 no meio do deserto, onde uma elite política de cientistas trabalha secretamente num plano redentor, já em andamento. O plano consiste em desbravar galáxias distantes a partir de wormholes providencialmente surgidos, a fim de encontrar um planeta habitável para fazer o êxodo. Cooper, como todo bom messias, chega na hora certa para pilotar a expedição.

Poderíamos estar no universo de um Oswald Spengler (O declínio do ocidente), o darwinismo social contra as tendências fracas que adoecem e paralisam o ímpeto civilizatório de dominação. Ou no cinema de um John Ford, em que a frontier comparece para energizar um mundo caduco e gerar novos valores. Nas franjas do desconhecido, o horizonte da fronteira aberta classifica o homem entre fortes e fracos, sadios e doentes, de onde brota o melhor de cada um, a autêntica plantação dos valores da América. Cooper prefere aventuras indômitas ao sedentarismo da família. Sabe o que faz e vai cumprir a missão, nem que pra isso tenha de atravessar o hiperespaço, desafiar as leis da física e mergulhar nas entranhas de um buraco negro.

Interestelar dramatiza o conflito entre os céus da ciência e a terra do atraso. Drama que se desdobra entre os filhos de Cooper. Se Murph representa a ciência racional que pretende redimir o homem, Tom é o típico interiorano pequeno-proprietário branco, reativo a novas ideias. Mas a transcendência aparece também do lado da filha, que se junta aos sabe-tudo da NASA como se a resposta à crise pudesse vir da resolução de uma equação. No filme, é exatamente o que acontece, quando o messias cumpre seu papel transmitindo o segredo do universo diretamente da quinta dimensão (Deus) para as pranchetas de Murph. A eureca salvadora desfecha o enredo num golpe único, num breakthrough narrativo que eleva o mundo da pasmaceira à superabundância. É a conquista da terra prometida.

Embora recheado da polpa de ficção científica de um A.C. Clarke, Asimov ou C. Sagan, Interestelar não é uma ficção leve imersa num caldo cultural liberal-democrático de divulgação de conhecimentos científicos. E menos ainda uma problematização da condição humana diante da expansão alucinada de horizontes celestes, acompanhada da exasperação de angústias que sempre puxam para a terra e o mundano, como em Solaris ou 2001: Uma odisseia no espaço. Em vez da trama existencialista do filme de Tarkovski, a aparição repetitiva de sentimentalismos; em vez do conflagrado HAL900 de S. Kubrick, mascotes eletrônicos sem personalidade, prontos a se sacrificar pelo bem da humanidade.
No âmbito do cinemão blockbuster, o filme responde a Avatar (J. Cameron). Se Avatar expunha a vontade de renovar os mitos com a cosmovisão tecnoutópica dos Navi, Interestelar propõe uma restauração dos valores da América. Ante a perda da fé da pós-modernidade, Cooper reafirma uma missão cujo núcleo moral inabalável se esgueira pela narrativa de maneira singela: ele não quer decepcionar a filha. Avatar sugeria o avanço inadiável para um altercapitalismo, com um espírito do tempo mais globalizado, responsável e sustentável. O novo blockbuster de Nolan é uma violenta reafirmação da liderança prometeica das elites mais esclarecidas. Não à toa os efeitos especiais de Avatar remetam ao mundo dos games e à sensibilidade ecológica, enquanto Interestelar esteja ancorado plasticamente à era Reagan. Em Interestelar, os astronautas vestem uniformes da NASA, os contatos de terceiro grau acontecem no Kansas e a colonização espacial finca bandeiras com estrelas e listras.

A defasagem do filme em relação a um mundo em franca mutação é absoluta, diante do “perigo chinês”, dos conflitos abertos da era Obama e da proliferação de lutas e frentes pelo mundo. Se a crise do meio ambiente tem alguma saída, vem pela radicalização de uma democracia global, nunca pela missão autoatribuída de elites e messias brancos, com bottons do Partido Republicano. Sem deus ex machina, só a democracia. Na contramão das transformações, Interestelar marca passo na pretensão megalomaníaca do cinemão de Hollywood. Uma imagem tão futurista quanto em via de extinção.


Fonte: Quadrado dos Loucos

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