dezembro 31, 2014

"De 2003 a 2014: as hidrelétricas de Lula e Dilma", por Telma Monteiro

PICICA: "As obras das grandes hidrelétricas nos principais rios amazônicos, iniciadas no governo do PT, a partir de 2003, caminharam silenciosamente, na sombra dos escândalos midiáticos.

Mesmo temas como o aumento do desmatamento na Amazônia, a imposição de projetos hidrelétricos na bacia do rio Tapajós, a discussão da PEC 215, que quer dar ao Congresso a atribuição de decidir as demarcações de terras indígenas, a luta do povo Munduruku para auto-demarcar a terra Sawré Muybu, a queda de braço entre o Ministério Público Federal e o judiciário nas ações que apontam as irregularidades nos licenciamentos das hidrelétricas, o uso da Suspensão de Segurança (instituto da ditadura), não ganharam a sociedade. Não ganharam as ruas e nem os corações dos brasileiros." 

De 2003 a 2014: as hidrelétricas de Lula e Dilma Imprimir E-mail
Escrito por Telma Monteiro   
Sexta, 19 de Dezembro de 2014





Um ano conturbado esse 2014. Vai ficar como mais um capítulo da história dos governos Lula e Dilma Rousseff, pautados pela corrupção. Corrupção, também, que pode estar entranhada no setor elétrico. A sanha de construir hidrelétricas nos rios amazônicos com a coparticipação das mesmas empreiteiras envolvidas no esquema de propinas da Petrobras, como mostra a Operação Lava Jato, é sinal inequívoco de metástase.

Busquei escrever uma retrospectiva resumida dos processos das grandes hidrelétricas em construção nos rios amazônicos, nos últimos doze anos. É preciso expurgar a Eletrobras também.
Mensalão, julgamento, condenação e prisão de autoridades do governo, campanhas eleitorais que envergonharam os eleitores, presidentes e vice-presidentes de grandes empreiteiras e diretores da Petrobras indiciados marcaram o Brasil nos últimos doze meses. Nada mais que um resumo do que temos assistido nos últimos doze anos.

As obras das grandes hidrelétricas nos principais rios amazônicos, iniciadas no governo do PT, a partir de 2003, caminharam silenciosamente, na sombra dos escândalos midiáticos.

Mesmo temas como o aumento do desmatamento na Amazônia, a imposição de projetos hidrelétricos na bacia do rio Tapajós, a discussão da PEC 215, que quer dar ao Congresso a atribuição de decidir as demarcações de terras indígenas, a luta do povo Munduruku para auto-demarcar a terra Sawré Muybu, a queda de braço entre o Ministério Público Federal e o judiciário nas ações que apontam as irregularidades nos licenciamentos das hidrelétricas, o uso da Suspensão de Segurança (instituto da ditadura), não ganharam a sociedade. Não ganharam as ruas e nem os corações dos brasileiros.

O Novo Modelo Institucional de Energia (Lei nº 10847/10848 de 2004) foi concebido por Dilma Rousseff a partir de 2003, como ministra de Minas e Energia (MME). Lula e Dilma não perderam tempo. A galinha dos ovos de ouro do PT passou a ser o setor energético, que ficou nas mãos do seu principal aliado, o PMDB, sob a batuta de José Sarney. O Ministério das Minas e Energia (MME), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Empresa de Pesquisa Energética (EPE) ficaram com Edison Lobão, Márcio Zimmermann e Maurício Tolmasquim, respectivamente. Elas formam, há doze anos, uma espécie troika institucional indevassável e inacessível.

A construção das usinas incluídas no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) tem como objetivo satisfazer a volúpia por grandes obras do cartel de empreiteiras, maiores doadoras das campanhas de Lula e Dilma. Paralelamente, o aumento do consumo de energia na região Norte, devido à instalação de novas plantas eletro-intensivas ligadas à mineração, deu ao governo federal mais uma desculpa para aprovar mais hidrelétricas. Esse consumo, segundo dados que constam no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da usina hidrelétrica (UHE) Teles Pires, cresceu de 6,3% para 8,6%.
Para completar esta introdução, relembro que o Plano Nacional de Energia (PNE) 2030 prevê o incremento de mais 88 mil MW (megawatts) de geração com hidrelétricas e de apenas quatro mil MW em geração eólica para os próximos 25 anos. Esses 88 mil MW equivalem a 20 usinas como a UHE Belo Monte ou 93 como a UHE Teles Pires.

Um ofício de 21 fevereiro de 2011, assinado por Amílcar Guerreiro, diretor da EPE, para a Funai, ressalta que, de 48 projetos hidrelétricos, 18 atingem áreas de Terras Indígenas (TI). Afirma que 16 projetos, embora não estejam diretamente em TIs, estão a menos de 50 quilômetros delas, como a UHE São Manoel e a UHE Foz do Apiacás. Ainda confirma que os projetos hidrelétricos no PAC 2 somam 80% com algum grau de interferência com TI.

Parece uma promessa de que vai piorar.

Hidrelétricas Santo Antônio e Jirau – rio Madeira


Com Lula já eleito, no final de 2002, a Odebrecht conseguiu aprovar os estudos de viabilidade das usinas do Madeira em velocidade de trem-bala. No início de 2003, a construção do então chamado Complexo do Madeira já era comemorada na Aneel.

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Dilma Rousseff era a ministra de Minas e Energia de Lula. Os dois juntos meteram os pés nas portas da Amazônia, escancarando-as, ao defender a imprescindibilidade das usinas do Madeira. Começava aí a era do estupro dos rios amazônicos.

De 2003 até 2014, as hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, não saíram da pauta da mídia. Quando obtiveram a Licença Prévia (LP), em julho de 2007, contaram com a ajuda da diretoria do Ibama e, talvez, da ingenuidade e arrogância (imperdoáveis) da então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Contrariando a decisão da equipe técnica do próprio Ibama, que concluiu pela inviabilidade dos empreendimentos, a LP foi concedida.

O processo das usinas do Madeira chegou a surpreender. Uma só licença prévia para duas hidrelétricas foi um fato inédito. O primeiro leilão, da UHE Santo Antônio, em dezembro de 2007, foi arrematado pela dobradinha Furnas e Odebrecht. Cartas marcadas. Afinal, a concepção e os estudos preliminares foram elaborados pela Odebrecht, lá nos idos de 2002.

O segundo leilão, da UHE Jirau, trouxe a grande surpresa. Com um deságio maior, a concorrência tirou a UHE Jirau das mãos da dupla Furnas e Odebrecht. A Camargo Corrêa e a GDF Suez entraram para vencer o lobby de Furnas e Odebrecht, que até então dava como favas contadas o arremate dos dois empreendimentos. Economia de escala.

Dois leilões, dois ganhadores, duas das maiores empreiteiras do Brasil e o Ibama concedeu duas Licenças de Instalação (LI) para uma só LP. A partir daí começou uma verdadeira avalanche de irregularidades: violações dos direitos humanos, alijamento dos povos indígenas do processo de licenciamento, descumprimento da Convenção 169 da OIT e falta de consulta prévia. O consórcio vencedor de Jirau decidiu, então, alterar a localização da usina no rio Madeira. Outro fato inédito.

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Os dois consórcios vencedores passaram a se digladiar. Vieram as greves nos canteiros das duas obras, denúncias de trabalho semiescravo, ações na justiça ajuizadas pelos ministérios públicos, a destruição da margem direita a jusante da barragem da UHE Santo Antônio, que levou consigo o bairro Triângulo, a alteração da cota do reservatório de Santo Antônio, que resultou no aumento da área alagada. Para coroar tanta insensatez, aconteceu a maior cheia da história do rio Madeira, agravada pelas hidrelétricas, que quase fez desaparecer Porto Velho, no início de 2014.

Custo atualizado da UHE Santo Antônio: R$ 19,5 bilhões – Construtora: Odebrecht; custo atualizado da UHE Jirau: R$ 18 bilhões – Construtora: Camargo Corrêa

Hidrelétrica Belo Monte – rio Xingu


Não precisou muito tempo para o retorno do espectro do monstro chamado Belo Monte, no rio Xingu. Esse sim, o pesadelo em forma de hidrelétrica. Quem pensou que as usinas do Madeira eram o pior se enganou. Começou uma sensação de déjà vu.
A Eletrobras desengavetou o projeto no rio Xingu. Enfiar Belo Monte goela abaixo da sociedade foi num átimo. Afinal, a desculpa do governo tem sido a de que estamos na iminência de outro apagão igual ao de 2001. Ou se construiria Belo Monte ou o Brasil pararia! Mensagem subliminar que funcionou.

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Lula em plena campanha, em 2002, num documento chamado O Lugar da Amazônia no Desenvolvimento do Brasil, condenou a construção de mega-obras de hidrelétricas na Amazônia. Citou Belo Monte. Enquanto se dava o processo de licenciamento das usinas do Madeira, em 2006, Belo Monte emergia das cinzas dos anos 1980, numa nova versão.

A sociedade civil assistia atônita a mais uma surpresinha do governo petista. O projeto defendido pela Eletrobras, com total apoio de Lula e Dilma, está desviando as águas do rio Xingu. Uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta, a Volta Grande do Xingu vai secar. E Belo Monte, em construção, só vai gerar um terço da energia que sua estrutura de R$ 30 bilhões comportaria.

Em 2007, as empreiteiras Camargo Corrêa, Odebrecht e Andrade Gutierrez surgem para elaborar os estudos de Belo Monte. Odebrecht e Camargo Corrêa, mais uma vez, no centro do plano de construir mais hidrelétricas na Amazônia.

Entre avanços e recuos do processo de licenciamento, ações do MP, novas audiências públicas e adiamentos do leilão, em fevereiro de 2010, o Ibama concedeu a LP e em abril o leilão foi consumado. Restou selada a destruição do Volta Grande do Xingu.
O leilão de Belo Monte foi um equívoco. Estava inicialmente prevista a participação de três grandes empreiteiras: Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez. As mesmas que estão envolvidas no esquema de corrupção da Petrobras. As três foram as responsáveis, junto com a Eletrobras, pela elaboração de todos os estudos de Belo Monte.

As empreiteiras Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez formaram um consórcio que constrói Belo Monte. Afinal, fazer a obra sem a responsabilidade dos custos ambientais e sociais, e sem o ônus das batalhas na justiça, é muito mais rentável. Mamata.
Em 2010, Lula e o PT se preparavam para eleger Dilma Rousseff presidente da República.

A construção da UHE Belo Monte tem consolidado os mesmos problemas do caos que se instalou em Porto Velho com as usinas do Madeira. A história se repetiu e recrudesceu o movimento indígena contra as usinas nos rios amazônicos. Atores e diretores de Hollywood, denúncias na OEA e ONU, protestos nas capitais da Europa, protestos indígenas em Brasília, greves nos canteiros de obras, destruição ambiental, prejuízos. Nada disso demoveu o governo do PT. Belo Monte está lá, fantasmagórica com seus esqueletos de concreto, com umas poucas castanheiras gigantes poupadas no desmatamento do sítio Pimental.

A construção de Belo Monte está destruindo a vida e a natureza. Pescadores, povos indígenas, populações ribeirinhas, pequenos agricultores, floresta e rio sagrado. As engrenagens da justiça estão lentas para salvar o Xingu. Uma ferrugem sórdida as emperra.
Custo atualizado da UHE Belo Monte: R$ 25,9 bilhões – Consórcio Construtor: Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez

Hidrelétrica Teles Pires – rio Teles Pires


O aproveitamento hidrelétrico do rio Teles Pires está nos planos governamentais desde os anos 1980, quando foi feito o inventário da bacia hidrográfica. Do projeto inicial, que permaneceu esquecido até 2001, já constavam outros seis aproveitamentos hidrelétricos. Mas foi sob o governo do PT que o projeto emplacou.

Em 2005, um consórcio formado pelas empresas estatais Eletrobras, Furnas e Eletronorte resolveu desengavetá-lo e manter os planos para as seis hidrelétricas. O rio Teles Pires tão ameaçado não teve sequer estudos dos impactos sinérgicos e cumulativos da região. O Ibama iniciou o processo de licenciamento em 2010.

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A hidrelétrica Teles Pires já está afetando duramente a região situada no trecho onde começa uma sequência de cachoeiras chamadas Sete Quedas, no baixo curso do rio Teles Pires. A hidrelétrica, em construção, está na divisa entre dois grandes municípios em dois estados: Jacareacanga, no Pará, e Paranaíta, no Mato Grosso.

As empresas Neoenergia (50,1%), Eletrosul (24,5%), Furnas (24,5%) e Odebrecht (0,9%) formam o consórcio vencedor do leilão.

A UHE Teles Pires não ultrapassará 50 anos de vida útil, se for levado em conta o agravamento das características hidrológicas da região. As mudanças climáticas, os períodos cada vez mais intensos de regimes de cheias e vazantes, o aumento do aporte de sedimentos devido à ocupação a montante (rio acima em direção às nascentes),poderiam reduzir ainda mais o tempo de geração comercial. Esse projeto anacrônico se transformará, em menos de cinquenta anos, num fóssil jovem em meio a um deserto induzido no coração da Amazônia.

Sob o governo do PT se deu a Rio+20.
Os impactos da hidrelétrica afetarão as terras indígenas Kayabi e duas Unidades de Conservação - a Reserva Estadual de pesca Esportiva, no Pará, e o Parque Estadual do Cristalino, em Mato Grosso.

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No município de Jacareacanga (PA), 59% são terras indígenas. A área rural afetada pela usina Teles Pires tem 66 mil quilômetros quadrados, 20 mil habitantes, é de difícil acesso, de vegetação nativa e é ocupada por terras indígenas. O sistema de transmissão da energia desse complexo hidrelétrico está previsto para ter cerca de mil quilômetros e um corredor de 20 quilômetros de largura.
Custo atualizado da UHE Teles Pires: R$ 4 bilhões – Construtora: Odebrecht

Hidrelétrica São Manoel – rio Teles Pires


As TI Kayabi e TI Munduruku, mais a jusante, já sofrem os impactos da construção das usinas no rio Teles Pires. A UHE Teles Pires e a UHE São Manoel, também em construção, estão afetando 16 importantes sítios arqueológicos. Vinte quilômetros separam a UHE Teles Pires da UHE São Manoel.

O processo de licenciamento da UHE São Manoel começou em 2007. Já datam dessa época as falhas gritantes nos estudos ambientais e no Estudo do Componente Indígena (ECI). No parecer técnico do Ibama, de 2010, foram apontadas 33 pendências. O EIA/RIMA foi rejeitado pela equipe técnica do Ibama, uma vez que ele não atendia ao Termo de Referência.

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O processo de licenciamento da UHE São Manoel ficou praticamente parado até abril de 2013. O Ibama marcou as audiências públicas para setembro de 2013. O leilão de compra de energia elétrica foi realizado em dezembro de 2013 e o vencedor foi o Consórcio formado pelas empresas EDP Energias do Brasil (66,67%) e Furnas Centrais Elétricas (33,33%), que constituíram a sociedade de propósito específico denominada Empresa de Energia São Manoel S.A.

Em 2014, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, assinou o Contrato de Concessão para exploração do potencial hidrelétrico da UHE São Manoel, localizada no rio Teles Pires, município de Jacareacanga, estado do Pará. Até outubro deste ano, o Ministério Público Federal havia ajuizado sete ações contra a construção da UHE São Manoel. Todas apontam irregularidades no processo de licenciamento. A LP foi concedida pelo Ibama em novembro de 2013 e a LI em agosto de 2014.

As obras já começaram. A destruição do rio faz chorar.

Custo atualizado da UHE São Manoel: R$ 3 bilhões – Construtora: Consórcio Constran-UTC.

Hidrelétrica São Luiz do Tapajós – rio Tapajós


Em processo de elaboração dos estudos ambientais. Ficou para o próximo mandato de Dilma Rousseff. O leilão está marcado para o segundo semestre de 2015. O rio já está condenado?

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Telma Monteiro é ativista socioambiental, pesquisadora, editora do blog http://www.telmadmonteiro.blogspot.com.br, especializado em projetos infraestruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil
Fonte: Correio da Cidadania

"Antiautoajuda para 2015", por Eliane Brum

PICICA: "Em defesa do mal-estar para nos salvar de uma vida morta e de um planeta hostil. Chega de viver no modo avião"

Antiautoajuda para 2015

Em defesa do mal-estar para nos salvar de uma vida morta e de um planeta hostil. Chega de viver no modo avião



Não tenho certeza se esse ano vai acabar. Tenho uma convicção crescente de que os anos não acabam mais. Não há mais aquela zona de transição e a troca de calendário, assim como de agendas, é só mais uma convenção que, se é que um dia teve sentido, reencena-se agora apenas como gesto esvaziado. Menos a celebração de uma vida que se repactua, individual e coletivamente, mais como farsa. E talvez, pelo menos no Brasil, poderíamos já afirmar que 2013 começou em junho e não em janeiro, junto com as manifestações, e continua até hoje. Mas esse é um tema para outra coluna, ainda por ser escrita. O que me interessa aqui é que nossos rituais de fim e começo giram cada vez mais em falso, e não apenas porque há muito foram apropriados pelo mercado. Há algo maior, menos fácil de perceber, mas nem por isso menos dolorosamente presente. Algo que pressentimos, mas temos dificuldade de nomear. Algo que nos assusta, ou pelo menos assusta a muitos. E, por nos assustar, em vez de nos despertar, anestesia. Talvez para uma época de anos que, de tão acelerados, não terminam mais, o mais indicado seja não resoluções de ano-novo nem manuais sobre ser feliz ou bem sucedido, mas antiautoajuda.

Quando as pessoas dizem que se sentem mal, que é cada vez mais difícil levantar da cama pela manhã, que passam o dia com raiva ou com vontade de chorar, que sofrem com ansiedade e que à noite têm dificuldade para dormir, não me parece que essas pessoas estão doentes ou expressam qualquer tipo de anomalia. Ao contrário. Neste mundo, sentir-se mal pode ser um sinal claro de excelente saúde mental. Quem está feliz e saltitante como um carneiro de desenho animado é que talvez tenha sérios problemas. É com estes que deveria soar uma sirene e por estes que os psiquiatras maníacos por medicação deveriam se mobilizar, disparando não pílulas, mas joelhaços como os do Analista de Bagé, do tipo “acorda e se liga”. É preciso se desconectar totalmente da realidade para não ser afetado por esse mundo que ajudamos a criar e que nos violenta. Não acho que os felizes e saltitantes sejam mais reais do que o Papai Noel e todas as suas renas, mas, se existissem, seriam estes os alienados mentais do nosso tempo.

Olho ao redor e não todos, mas quase, usam algum tipo de medicamento psíquico. Para dormir, para acordar, para ficar menos ansioso, para chorar menos, para conseguir trabalhar, para ser “produtivo”. “Para dar conta” é uma expressão usual. Mas será que temos de dar conta do que não é possível dar conta? Será que somos obrigados a nos submeter a uma vida que vaza e a uma lógica que nos coisifica porque nos deixamos coisificar? Será que não dar conta é justamente o que precisa ser escutado, é nossa porção ainda viva gritando que algo está muito errado no nosso cotidiano de zumbi? E que é preciso romper e não se adequar a um tempo cada vez mais acelerado e a uma vida não humana, pela qual nos arrastamos com nossos olhos mortos, consumindo pílulas de regulação do humor e engolindo diagnósticos de patologias cada vez mais mirabolantes? E consumindo e engolindo produtos e imagens, produtos e imagens, produtos e imagens?

Neste mundo, sentir-se mal é sinônimo de excelente saúde mental

A resposta não está dada. Se estivesse, não seria uma resposta, mas um dogma. Mas, se a resposta é uma construção de cada um, talvez nesse momento seja também uma construção coletiva, na medida em que parece ser um fenômeno de massa. Ou, para os que medem tudo pela inscrição na saúde, uma das marcas da nossa época, estaríamos diante de uma pandemia de mal-estar. Quero aqui defender o mal-estar. Não como se ele fosse um vírus, um alienígena, um algo que não deveria estar ali, e portanto tornar-se-ia imperativo silenciá-lo. Defendo o mal-estar – o seu, o meu, o nosso – como aquilo que desde as cavernas nos mantém vivos e fez do homo sapiens uma espécie altamente adaptada – ainda que destrutiva e, nos últimos séculos, também autodestrutiva. É o mal-estar que nos diz que algo está errado e é preciso se mover. Não como um gesto fácil, um preceito de autoajuda, mas como uma troca de posição, o que custa, demora e exige os nossos melhores esforços. Exige que, pela manhã, a gente não apenas acorde, mas desperte.

Anos atrás eu escreveria, como escrevi algumas vezes, que o mal-estar desta época, que me parece diferente do mal-estar de outras épocas históricas, se dá por várias razões relacionadas à modernidade e a suas criações concretas e simbólicas. Se dá inclusive por suas ilusões de potência e fantasias de superação de limites. Mas em especial pela nossa redução de pessoas a consumidores, pela subjugação de nossos corpos – e almas – ao mercado e pela danação de viver num tempo acelerado.

Sobre essa particularidade, a psicanalista Maria Rita Kehl escreveu um livro muito interessante, chamado O Tempo e o Cão (Boitempo), em que reflete de forma original sobre o que as depressões expressam sobre o nosso mundo também como sintoma social. Logo no início, ela conta a experiência pessoal de atropelar um cachorro na estrada – e a experiência aqui não é uma escolha aleatória de palavra. Kehl viu o cachorro, mas a velocidade em que estava a impedia de parar ou desviar completamente dele. Conseguiu apenas não matá-lo. Logo, o animal, cambaleando rumo ao acostamento, ficou para trás no espelho retrovisor. É isso o que acontece com as nossas experiências na velocidade ditada por essa época em que o tempo foi rebaixado a dinheiro – uma brutalidade que permitimos, reproduzimos e com a qual compactuamos sem perceber o quanto de morte há nessa conversão.


Defendo o mal-estar como aquilo que nos mantém vivos desde as cavernas

Sobre a aceleração, diz a psicanalista: “Mal nos damos conta dela, a banal velocidade da vida, até que algum mau encontro venha revelar a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida do corpo, em casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da vida psíquica. (...) Seu esquecimento (do cão) se somaria ao apagamento de milhares de outras percepções instantâneas às quais nos limitamos a reagir rapidamente para em seguida, com igual rapidez, esquecê-las. (...) Do mau encontro, que poderia ter acabado com a vida daquele cão, resultou uma ligeira mancha escura no meu para-choque. (...) O acidente da estrada me fez refletir a respeito da relação entre as depressões e a experiência do tempo, que na contemporaneidade praticamente se resume à experiência da velocidade”. O que acontece com as manchas escuras, com o sangue deixado para trás, dentro e fora de nós? Não são elas que nos assombram nas noites em que ofegamos antes de engolir um comprimido? Como viver humanamente num tempo não humano? E como aceitamos ser submetidos à bestialidade de uma vida não viva?

Hoje me parece que algo novo se impõe, intimamente relacionado a tudo isso, mas que empresta uma concretude esmagadora e um sentido de urgência exponencial a todas as questões da existência. E, apenas nesse sentido, algo fascinante. A mudança climática, um fato ainda muito mais explícito na mente de cientistas e ambientalistas do que da sociedade em geral é esse algo. A evidência de que aquele que possivelmente seja o maior desafio de toda a história humana ainda não tenha se tornado a preocupação maior do que se chama de “cidadão comum” é não uma mostra de sua insignificância na vida cotidiana, mas uma prova de sua enormidade na vida cotidiana. É tão grande que nos tornamos cegos e surdos.


Como nos submetemos a viver num tempo acelerado e não humano?

Em uma entrevista recente, aqui publicada como “Diálogos sobre o fim do mundo”, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro evoca o pensador alemão Günther Anders (1902-1992) para explicar essa alienação. Anders afirmava que a arma nuclear era uma prova de que algo tinha acontecido com a humanidade no momento em que se mostrou incapaz de imaginar os efeitos daquilo que se tornou capaz de fazer. Reproduzo aqui esse trecho da entrevista: “É uma situação antiutópica. O que é um utopista? Um utopista é uma pessoa que consegue imaginar um mundo melhor, mas não consegue fazer, não conhece os meios nem sabe como. E nós estamos virando o contrário. Nós somos capazes tecnicamente de fazer coisas que não somos nem capazes de imaginar. A gente sabe fazer a bomba atômica, mas não sabe pensar a bomba atômica. O Günther Anders usa uma imagem interessante, a de que existe essa ideia em biologia da percepção de fenômenos subliminares, abaixo da linha de percepção. Tem aquela coisa que é tão baixinha, que você ouve mas não sabe que ouviu; você vê, mas não sabe que viu; como pequenas distinções de cores. São fenômenos literalmente subliminares, abaixo do limite da sua percepção. Nós, segundo ele, estamos criando uma outra coisa agora que não existia, o supraliminar. Ou seja, é tão grande, que você não consegue ver nem imaginar. A crise climática é uma dessas coisas. Como é que você vai imaginar um troço que depende de milhares de parâmetros, que é um transatlântico que está andando e tem uma massa inercial gigantesca? As pessoas ficam paralisadas, dá uma espécie de paralisia cognitiva”.

O fato de se alienar – ou, como fazem alguns, chamar aqueles que apontam para o óbvio de “ecochatos”, a piada ruim e agora também velha – nem impede a corrosão acelerada do planeta nem a corrosão acelerada da vida cotidiana e interna de cada um. O que quero dizer é que, como todos os nossos gritos existenciais, o fato de negá-los não impede que façam estragos dentro de nós. Acredito que o mal-estar atual – talvez um novo mal-estar da civilização – é hoje visceralmente ligado ao que acontece com o planeta. E que nenhuma investigação da alma humana desse momento histórico, em qualquer campo do conhecimento, possa prescindir de analisar o impacto da mudança climática em curso.

De certo modo, na acepção popular do termo “clima”, referindo-se ao estado de espírito de um grupo ou pessoa, há também uma “mudança climática”. Mesmo que a maioria não consiga nomear o mal-estar, desconfio que a fera sem nome abra seus olhos dentro de nós nas noites escuras, como o restante dos pesadelos que só temos quando acordados. Há esse bicho que ainda nos habita que pressente, mesmo que tenha medo de sentir no nível mais consciente e siga empurrando o que o apavora para dentro, num esforço quase comovente por ignorância e anestesia. E a maior prova, de novo, é a enormidade da negação, inclusive pelo doping por drogas compradas em farmácias e “autorizadas” pelo médico, a grande autoridade desse curioso momento em que o que é doença está invertido.

O novo mal-estar da civilização está hoje ligado à mudança climática

São Paulo é, no Brasil, a vitrine mais impressionante dessa monumental alienação. A maior cidade do país vem se tornando há anos, décadas, um cenário de distopia em que as pessoas evoluem lentamente entre carros e poluição, encurraladas e cada vez mais violentas nos mínimos atos do dia a dia. No último ano, a seca e a crise da água acentuaram e aceleraram a corrosão da vida, mas nem por isso a mudança climática e todas as questões socioambientais relacionadas a ela tiveram qualquer impacto ou a mínima relevância na eleição estadual e principalmente na eleição presidencial. Nada. A maioria, incluindo os governantes, sequer parece perceber que a catástrofe paulista, que atinge a capital e várias cidades do interior, é ligada também à devastação da Amazônia. O tal “mundo como o conhecemos” ruindo e os zumbis evolucionando por ruas incompatíveis com a vida sem qualquer espanto. Nem por isso, ouso acreditar, deixam sequer por um momento de ser roídos por dentro pela exterioridade de sua condição. A vida ainda resiste dentro de nós, mesmo na Zumbilândia. E é o mal-estar que acusa o que resta de humano em nossos corpos.

É de um cientista, Antonio Nobre, um texto fundamental. Ler “O futuro climático da Amazônia” não é uma opção. Faça um favor a si mesmo e reserve uma hora ou duas do seu dia, o tempo de um filme, entre na internet e leia as 40 páginas escritas numa linguagem acessível, que faz pontes com vários campos do conhecimento. Há trechos de grande beleza sobre a maior floresta tropical do planeta, território concreto e simbólico sobre o qual o senso comum, no Brasil alimentado pela propaganda da ditadura civil-militar, construiu uma ideia de exploração e de nacionalismos que só vigora até hoje por total desconhecimento. É também por ignorância nossa que o atual governo, reeleito para mais um mandato, comanda na Amazônia seu projeto megalômano de grandes hidrelétricas com escassa resistência. E causa, agora, neste momento, um desastre ambiental de proporções não mensuradas em vários rios amazônicos e o etnocídio dos povos indígenas da bacia do Xingu.

A Amazônia sobreviveu por 50 milhões de anos a meteoros e glaciações, mas em menos de 50 anos está ameaçada por ação humana

Antonio Nobre mostra como uma floresta com um papel – insubstituível – na regulação do clima do Brasil e do planeta teve, nos últimos 40 anos, 762.979 quilômetros quadrados desmatados: o equivalente a três estados de São Paulo ou duas Alemanhas. Ou o equivalente a mais de 12 mil campos de futebol desmatados por dia, mais de 500 por hora, quase nove por minuto. Somando-se a área de desmatamento corte raso com a área degradada, alcançamos a estimativa aterradora de que, até 2013, 47% da floresta amazônica pode ter sido impactada diretamente por atividade humana desestabilizadora do clima. “A floresta sobreviveu por mais de 50 milhões de anos a vulcanismos, glaciações, meteoros, deriva do continente”, escreve Nobre. “Mas em menos de 50 anos está ameaçada pela ação de humanos.” A Amazônia dá forma ao momento da História em que a humanidade deixa de temer a catástrofe para se tornar a catástrofe.

Como é possível que isso aconteça bem aqui, agora, e tão poucos se importem? Se não despertarmos do nosso torpor assustado, nossos filhos e netos poderão viver e morrer não com a Amazônia transformada em savana, mas sim em deserto, com gigantesco impacto sobre o clima do planeta e a vida de todas as espécies. Para se ter uma ideia da magnitude do que estamos fazendo, por ação ou por omissão, por alienação, anestesia ou automatismo, alguns dados. Uma árvore grande transpira mais de mil litros de água por dia. A cada 24 horas a floresta amazônica lança na atmosfera, pela transpiração, 20 bilhões de toneladas de água – ou 20 trilhões de litros de água. Para se ter uma ideia comparativa, o rio Amazonas lança menos que isso – cerca de 17 bilhões de toneladas de água por dia– no oceano Atlântico. Não é preciso ser um cientista para imaginar o que acontecerá com o planeta sem a floresta.

Nobre defende que já não basta zerar o desmatamento. Alcançamos um nível de destruição em que é preciso regenerar a Amazônia. A floresta não é o “pulmão do mundo”, ela é muito mais do que isso: é o seu coração. Não como uma frase ultrapassada e clichê, mas como um fato científico. É o mundo e não só o Brasil que precisa se engajar nessa luta: o cientista defende que, se não quisermos alcançar o ponto de não retorno, deveríamos empreender – já, agora – um esforço de guerra: começando por uma guerra contra a ignorância. Fazer uma campanha tão forte e eficaz como aquela contra o tabaco. Isso, claro, se quisermos continuar a viver.

Se não quisermos alcançar um ponto de não retorno, é preciso deixar de viver no modo avião
Nessa época de tanta conexão, em que a maioria passa quase todo o tempo de vigília conectado na internet, há essa desconexão mortífera com a realidade do planeta – e de si. Como cidadão, a maioria no máximo recicla o seu lixo, achando que está fazendo um enorme esforço, mas não se informa nem participa dos debates e das decisões sobre as questões do clima, da Amazônia e do meio ambiente. Neste e em vários sentidos, é como existir no “modo avião” do celular. Um estar pela metade, o suficiente apenas para cumprir o mínimo e não se desligar por completo. Um contato sem contato, um toque que não toca nem se deixa tocar. Um viver sem vida.

É preciso sentir o mal-estar. Sentir mesmo – e não silenciá-lo das mais variadas maneiras, inclusive com medicação. Ou, como diz a pensadora americana Donna Haraway: “É preciso viver com terror e alegria”.

Só o mal-estar pode nos salvar.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

Fonte: El País Brasil

"Os limites da lei e o papel pedagógico dos jornais", por Sylvia Debossan Moretzsohn

PICICA: "Será lugar-comum dizer que a internet, à parte suas muitas vantagens, favoreceu o clima de “liberou geral”, no qual as pessoas se acham no direito de dizer o que bem entenderem, como se a liberdade de expressão não tivesse limites. Não é bem assim, e os limites são precisamente os que estão na lei: quem se excede precisa responder por seus atos.

O ambiente que o país viveu nos últimos meses, com o acirramento da disputa eleitoral, não proporcionou apenas a disseminação de mentiras e difamações. Fez crescer o cultivo do ódio, traduzido em atitudes que ultrapassam a ofensa para expressar o elogio do crime e em ataques abertos ao regime democrático.

No primeiro caso, o episódio típico foi protagonizado pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), no início de dezembro, ao interpelar a ex-ministra Maria do Rosário (PT-RS), sua colega na Câmara, e afirmar que não a estupraria porque ela não merecia. No segundo, foram – têm sido – as manifestações públicas em favor de um golpe militar, desde a reta final do segundo turno das eleições para presidente." 


LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Os limites da lei e o papel pedagógico dos jornais

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 30/12/2014 na edição 831



Será lugar-comum dizer que a internet, à parte suas muitas vantagens, favoreceu o clima de “liberou geral”, no qual as pessoas se acham no direito de dizer o que bem entenderem, como se a liberdade de expressão não tivesse limites. Não é bem assim, e os limites são precisamente os que estão na lei: quem se excede precisa responder por seus atos.

O ambiente que o país viveu nos últimos meses, com o acirramento da disputa eleitoral, não proporcionou apenas a disseminação de mentiras e difamações. Fez crescer o cultivo do ódio, traduzido em atitudes que ultrapassam a ofensa para expressar o elogio do crime e em ataques abertos ao regime democrático.

No primeiro caso, o episódio típico foi protagonizado pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), no início de dezembro, ao interpelar a ex-ministra Maria do Rosário (PT-RS), sua colega na Câmara, e afirmar que não a estupraria porque ela não merecia. No segundo, foram – têm sido – as manifestações públicas em favor de um golpe militar, desde a reta final do segundo turno das eleições para presidente.

Contra a impunidade

Em sua coluna de terça-feira (23/12, “O relegado“), o jornalista Janio de Freitas relembrou na Folha de S.Paulo a trajetória do capitão Bolsonaro, quando, ainda tenente, fez ameaças terroristas para forçar o aumento do soldo. Sua atitude seria passível de processo criminal, o que não ocorreu. Ao entrar para a política partidária, foi reeleito sucessivamente, “sempre obrando uma imbecilidade agressiva em seguida a uma cretinice violenta, e vice-versa. Sempre sujeito a um artigo do Código Penal e do Regimento da Câmara. E sempre impunemente”. E só fez crescer: nas últimas eleições, foi o mais votado do estado do Rio, com mais de 464 mil votos.

Curiosamente, alguns jornalistas, embora muito críticos da atitude do deputado, condenaram a hipótese de impor-lhe sanções, justamente em nome da liberdade de expressão. O artigo de Janio funcionou como resposta a esse argumento:

“O ataque à deputada Maria do Rosário, e às mulheres em geral, começou na impunidade ao plano terrorista. Sua defesa a pretexto da liberdade de expressão não tem cabimento: a liberdade de expressão não inclui o direito de agredir verbalmente. Ou, do contrário, não existiriam as tão conhecidas ações penais por calúnia, difamação e injúria, entre outras”.

Contra o golpismo

A mesma condescendência baseada na defesa da liberdade de expressão que enxerga a punição aos excessos como censura favorece a defesa explícita da ruptura da ordem democrática. À contracorrente, o professor Vladimir Safatle publicou artigo na Folha de S.Paulo (9/12, “Intervenção militar“) em que demonstrava a diferença entre protestar contra o governo e defender um golpe:

“(...) pedir por uma ‘intervenção militar’ não é uma ‘opinião’ política, mas pura e simplesmente o crime por excelência.
(...)
“Por isso, quem levanta um cartaz a favor de um golpe militar não pode estar na rua, mas deveria estar ou respondendo a processos por incitação à forma máxima de violência ou diretamente na cadeia.
“Uma sociedade que não pune quem pratica tal violência, mas convive com os que a elogiam como se fosse algo meio pitoresco, cava sua própria cova”. 

Na mesma linha, em novembro, o jornalista Mauro Santayana publicava longo artigo no site do Jornal do Brasil (10/11), insurgindo-se veementemente contra o que chamou de “pilares da estupidez“, cravados nas redes sociais com sua “insidiosa campanha de agressão à democracia”, que acolhia as mais estapafúrdias e delirantes acusações contra a esquerda e fazia ressurgir os mesmos fantasmas que sustentaram o apoio da classe média ao golpe de 1964.

Em 23/12, o colunista voltou à carga (“Aécio e os limites da lei“), repetindo a referência à Lei 7.170, que pune “manifestações contra o atual regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito”.

Um exemplo

Santayana mencionava, então, a vitória do senador Aécio Neves, candidato derrotado à Presidência, que obteve na Justiça a quebra do sigilo cadastral de usuários do Twitter que o acusavam de crimes e uso de drogas. Sugeria que o mesmo deveria ocorrer com os que ofendem a presidente Dilma e demais alvos do mesmo comportamento.

“Os absurdos que são escritos nos sites nacionais a cada momento – alguns chegam a ser constrangedores, pela vilania, ignorância, baixeza, vulgaridade e sordidez – são a prova maior de que vivemos claramente em uma nação em plena vigência do Estado de Direito, com a mais ampla liberdade de expressão e de opinião.
“Esses direitos, no entanto, não se aplicam à calúnia, ao racismo, e à apologia do golpismo, venha este de onde vier, com ataques ao regime democrático e à ordem constitucional.
“A Lei dispõe de meios e de instrumentos para impor limites e punições a esse tipo de crimes”. 

Providências pedagógicas

O caso deixou Santayana otimista quanto à possibilidade de frear “a irrestrita farra de incitação à mentira, ao ódio e à violência, que tem se disseminado, até agora, impunemente, na internet brasileira”.

A esperança pode ser justificada, mas, sob esse aspecto, os jornais teriam um papel pedagógico importante, caso zelassem melhor pelo que se publica nos espaços destinados às manifestações dos leitores em seus sites. Não é tarefa simples, porque exigiria mais investimento em pessoal, para a devida filtragem das contribuições do público. Normalmente, entretanto, deixa-se aos próprios leitores a tarefa de denunciar o que for inconveniente.

Um exemplo recente: matéria do Globo sobre denúncia contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais notórios militares acusados de tortura durante o regime ditatorial, recebeu comentários ofensivos contra quem se posicionava a favor da reportagem (ver aqui). Foram depois removidos, mas tiveram muito mais do que 15 minutos de glória. Outros, que elogiavam o coronel e o apontavam como “um herói e um exemplo para as gerações vindouras”, continuaram no ar.

O estímulo à participação do público precisa estar acompanhado dos limites estabelecidos para essas manifestações. É uma medida preventiva e pedagógica, que define os termos do debate, zela pela civilidade e restringe as possibilidades de disseminação do discurso do ódio.

O mesmo deveria valer para os comentários a artigos. Especialmente no caso da Folha, é recorrente o grosseiro ataque pessoal a certos colunistas, quando o que se espera, em qualquer caso, é a discussão de ideias.

Jornais sempre escolhem o que vão publicar. Nos tempos anteriores à internet, até por uma limitação física, precisavam selecionar as cartas dos leitores. Hoje, a limitação é exclusivamente ética.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007) 

dezembro 30, 2014

"Daniel Munduruku: “Índio é invenção total, folclore puro”". Entrevista com Daniel Munduruku

PICICA: "Volta e meia, o paraense Daniel Monteiro Costa, 50, ouve cochichos de desconhecidos apostando se ele é ou não índio. Quase sempre concluem que não, já que anda vestido como qualquer outra pessoa, fala português corretamente, escreve livros, ganha prêmios – como o Jabuti e a Ordem do Mérito Cultural, da presidência da república – e ainda tem doutorado em educação pela USP. Sempre que isso acontece, Daniel fica feliz. Não se considera um índio, esse “apelido horroroso”, mas tem orgulho de ser munduruku, etnia a que pertence. “Só o nome diz o que a gente é”. É como Daniel Munduruku que assina os 47 livros que já publicou. O mais recente deles, Das coisas que aprendi, foi lançado no dia 25/11 em Salvador. Ele defende, porém, uma variação do “apelido” para marcar a literatura que faz, comumente chamada de literatura indígena, para evitar comparações com escritores como José de Alencar. “A literatura indigenista que ele escreveu detonou com a gente”. Sua luta tem, naturalmente, direção oposta.  Deseja que os povos que habitam o Brasil desde antes de o Brasil existir sejam respeitados como são, sem estereótipos, sem folclore. Para isso, recomenda que as escolas comecem por abolir do calendário a comemoração pelo 19 de abril. No começo deste mês, ele foi escolhido pelo Ministério da Cultura para representar o país no Salão do Livro de Paris, ao lado de 47 autores.

Daniel Munduruku: “Índio é invenção total, folclore puro”


Daniel Mundukuru: "Índio é invenção total, folclore puro"
Tatiana Mendonça

Volta e meia, o paraense Daniel Monteiro Costa, 50, ouve cochichos de desconhecidos apostando se ele é ou não índio. Quase sempre concluem que não, já que anda vestido como qualquer outra pessoa, fala português corretamente, escreve livros, ganha prêmios – como o Jabuti e a Ordem do Mérito Cultural, da presidência da república – e ainda tem doutorado em educação pela USP. Sempre que isso acontece, Daniel fica feliz. Não se considera um índio, esse “apelido horroroso”, mas tem orgulho de ser munduruku, etnia a que pertence. “Só o nome diz o que a gente é”. É como Daniel Munduruku que assina os 47 livros que já publicou. O mais recente deles, Das coisas que aprendi, foi lançado no dia 25/11 em Salvador. Ele defende, porém, uma variação do “apelido” para marcar a literatura que faz, comumente chamada de literatura indígena, para evitar comparações com escritores como José de Alencar. “A literatura indigenista que ele escreveu detonou com a gente”. Sua luta tem, naturalmente, direção oposta.  Deseja que os povos que habitam o Brasil desde antes de o Brasil existir sejam respeitados como são, sem estereótipos, sem folclore. Para isso, recomenda que as escolas comecem por abolir do calendário a comemoração pelo 19 de abril. No começo deste mês, ele foi escolhido pelo Ministério da Cultura para representar o país no Salão do Livro de Paris, ao lado de 47 autores.

No livro, o senhor fala que na escola a criança “abandona sua compreensão real dos sentidos da existência” em troca de um “futuro linear”. Para combater isso, defende uma pedagogia do “desentortamento do pensamento”. Que pedagogia é essa?

Minha percepção é que criança é livre, inteira, intensa. Quando ela entra na escola, entra numa forma, que é a chamada formação. A criança não divide os saberes. Brincar, aprender, correr, subir na árvore, tudo é uma coisa só. Quando ela vai para a escola, é tirada desse universo integral e é apresentada para ela uma sociedade dividida em conhecimentos. Por isso a escola entorta o pensamento da criança. A gente precisa voltar para a nossa origem de aprender as coisas não divididas. Quando a gente trata as coisas como um conjunto, a gente toma conta, cuida. Não tem rico nem pobre, branco nem preto, noite nem dia. Tudo é uma coisa só e você faz parte da natureza. A escola aprisiona o pensamento nessas categorias de certo, errado, bom e mau. A teia da vida é completa e a gente acaba se esquecendo disso, ao desenvolver a ideia de que nós somos donos. A criança aprende na escola que ela tem que dominar e aí passa a destruir tudo, né, porque é dela, ensinaram isso para ela. É educada para ser senhor da natureza, das coisas.


Como a escola poderia se aproximar disso que o senhor fala?

Não é a escola que tem que fazer isso. Ela é vítima também. A escola foi criada para ser um instrumento de colonização do pensamento. Só quem pode fazer isso é a família, a comunidade. O desentortamento do pensamento só é possível com pais conscientes, com uma comunidade consciente. A escola é um instrumento de escravização. Então não adianta pensar em mudar a escola no sistema econômico que a gente vive. É importante para esse sistema que a gente não goste uns dos outros, porque com a inveja se vendem mais coisas. Aí a gente quer ter a melhor roupa, o melhor carro, a melhor casa. A gente não trata mais ninguém como um igual.


Mas os pais têm cada vez menos tempo de passar esses ensinamentos.

A criança ora é vista como um estorvo, porque ainda não é economicamente produtiva, ora é vista como um investimento. São duas formas desqualificadas de tratar a criança.  A sociedade perdeu a dimensão dos rituais. Não marca mais o tempo como deveria marcar. De modo que as crianças não são mais crianças, adolescentes não são mais adolescentes, estão todos envolvidos com essa busca incessante de ser alguém na vida. E ser alguém na vida parece ser uma maldição que as pessoas carregam consigo, como se criança já não fosse alguém, ou o velho já não fosse alguém. É uma sociedade que está mudando seu conceito de família justamente porque está jogando a mãe no mercado de trabalho. Essa ideia de direitos iguais, mãe e pai, mulher e marido, isso foi a grande derrocada do nosso sistema atual. Não que não seja igual ou não tenha direitos iguais, mas o fato é que a mãe ocupa um papel fundamental na vida da criança. E quando ela abre mão disso, todos pagam um preço muito alto. Eu nem sei se é certo ou errado o que digo, e também não estou preocupado com isso.


As feministas não devem gostar muito.

Quero fazer as pessoas pensarem. É a ideia da teia. Se cada um não segura sua ponta no fio dessa teia, alguma coisa vai ficar faltando. E infelizmente é o que está acontecendo.


O senhor falava de rituais. Nós estamos “desbussolados” em relação ao tempo?

Novamente a gente entra na questão da educação, em que a gente é levado a pensar o tempo como um negócio. A pessoa vive para um tempo que não existe. Especulação e planejamento são palavras que têm a ver com uma tentativa de dominar um tempo que a gente não tem. O que é planejar senão tentar trazer o futuro para o agora? Quando você faz esse movimento, esquece de viver o agora. E aí é que entra a grande lição dos povos indígenas. São povos educados para o hoje. Por isso, são mal vistos na sociedade, são considerados um estorvo, porque não entram na roda-viva da produção, da busca de riquezas. Representam o contrário de tudo isso. Representam o fazer a vida acontecer agora. Só existe esse tempo, esse momento. A criança só é criança hoje. E ela tem que viver plenamente o seu ser criança para poder se realizar. Quando vira adolescente, ela não tem saudade de ser criança. E quando vira adulto, não tem saudade de ser adolescente. E quando você vira avô, é um outro papel. É papel do avô numa sociedade indígena educar o espírito da criança, contar histórias. E isso, claro, numa sociedade que precisa que as pessoas produzam não vale nada… A sociedade de hoje é uma sociedade de um amanhã que não existe.


Como o senhor passou de professor a escritor?

De uma maneira muito natural. Eu me graduei em filosofia, que é um conhecimento que não serve para outra coisa a não ser dar aula. Eu dava aula sobretudo para adolescentes. Comecei a relacionar mitos indígenas brasileiros à mitologia grega e a contar essas histórias também para crianças. Um dia, uma delas me perguntou se ela encontraria em algum livro aquilo que eu estava contando.  Descobri que não, que as histórias que eu sabia contar não estavam escritas. Aquilo foi como um cair de ficha. Comecei a escrever primeiro numa perspectiva pedagógica e depois apenas por deleite. Quando escrevo, é como se atualizasse uma memória, sabe? Meu primeiro livro, Histórias de índio, foi lançado em 1996. Até hoje é meu best-seller, tem mais de 50 mil exemplares vendidos. No conjunto da minha obra, já vendi uns dois milhões de livros.


Sempre se referem ao senhor como um autor de literatura indígena. Esse apêndice o incomoda ou o orgulha?

Sempre faço questão de dizer que sou um indígena que escreve. Alguns colegas escritores falam: ‘Mas, Daniel, você escreve bem… Por que tem que colocar literatura indígena?’.   Respondo que, se eu não colocar literatura indígena, vão me comparar a José de Alencar. Não quero isso. Porque a literatura indigenista que ele escreveu detonou com a gente. Tem muitos livros de bons escritores que dizem  bobagens sobre os indígenas.  Não é culpa deles. É o estereótipo que aprenderam e reproduzem. Hoje a literatura indígena é um fenômeno no Brasil. São mais de 40 autores. É importante que a gente reafirme de onde é que vem o que a gente escreve. Senão, sempre vai dar a impressão de que o indígena é só um brasileiro, e não é isso. O indígena não é brasileiro.


Não?

Não do ponto de vista do lugar dele. Ele é brasileiro do ponto de vista do território, que, aliás, querem acabar com o nosso território… Porque a ideia do brasileiro é exatamente aquele que pertence a esse território, a essa nação, sem contar as diferenças. E nós somos brasileiros, sim, mas diferenciados, e como tal queremos continuar sendo. Não queremos simplesmente ser José de Alencar. Eu quero ser o  Daniel Munduruku. Munduruku significa dizer que eu pertenço a um povo, a uma tradição, a uma trajetória de vida que é peculiar.


Hoje há uma lei que determina que a cultura e a história indígenas sejam ensinadas nas escolas e também há um maior acesso dos indígenas à universidade, por meio das cotas. Quão longe estamos de vê-los por um viés menos folclórico?

São avanços. Há 10 anos, não tinha literatura indígena para ser lida nas escolas. Já que existe a lei, a gente quer oferecer um material que avance um pouquinho nessa nossa relação, sabe? A gente não quer ser tratado por esse apelido horroroso que colocaram na gente,  índio. A gente quer ser tratado pelos nossos nomes. Apelido só detona a gente. Só o nome diz o que a gente é. Eu ser Munduruku é diferente de ser índio. Índio é uma invenção total, é folclore puro. Agora, ser Munduruku, não. É ter toda uma série de saberes que me dá identidade. As escolas têm que começar a arrancar do seu calendário a comemoração do dia 19 de abril. O que faz uma escola comemorar o dia do Índio? Ela está comemorando o folclore, uma ideia congelada de que são seres do passado, que nem existem mais… Ou quando existem, são esses camaradas meio mestiços, né, que a maioria das pessoas diz: “Ah, esse não é mais índio, não…”. Quantas vezes já ouvi isso, e fico até feliz. Por ser graduado, por ser doutor, por falar bem o português, por escrever livro, por ganhar prêmio… Esse daí não é mais índio… Fico feliz. Finalmente, alguém entendeu alguma coisa (ri).


Quando  pensamos em minorias históricas, vemos alguns avanços nas políticas públicas direcionadas às mulheres, aos negros, aos gays, ao menos em termos de visibilidade. Os índios, no entanto, permanecem como uma espécie de minoria da minoria. Como mudar isso?

O grande problema do indígena é que ele quer uma coisa que os outros não querem. Ele quer terra, precisa da terra para manter sua identidade. O movimento negro, quando muito, luta pela demarcação de um quilombo, mas na maioria das vezes briga pelo direito de ir à universidade, de ter acesso ao mercado de trabalho. Ou seja, luta para ser um brasileiro comum. O indígena não quer fazer parte da sociedade. Ele quer manter a sua maneira de viver. O pior é que estão nas terras que os megalomaníacos capitalistas querem. Para um governo resolver a situação do indígena, tem que brigar com esses grupos que são donos dos financiamentos de campanha. Espero que agora, no segundo mandato de Dilma, inclusive empurrado pelo governo popular, ela tome consciência… Ela tem feito discursos de que vai ouvir mais essas populações, coisa que não fez até agora. Ao mesmo tempo, quando alguém diz que Kátia Abreu vai assumir o Ministério da Agricultura, a gente já fica meio com o pé atrás… Mas ainda tenho um pinguinho de esperança de que o grito das urnas faça acordar esse gigante… Vamos ver.


O senhor vive no interior de São Paulo. Como o senhor acompanha as questões relacionadas à sua tribo?

Com essa coisa de internet, tenho contato direto com a turma dentro das aldeias, nas brigas aí pela não construção de hidrelétricas. O povo munduruku tem decidido que não quer essas hidrelétricas. Talvez para os paulistas e para o pessoal daqui do Nordeste, isso não cause grande impacto, mas é novamente a falta de compreensão de que nós somos uma teia. O que afeta o rio Tapajós lá no meio da Amazônia há de afetar cedo ou tarde essa região aqui e todas as outras do Brasil. Com toda essa transformação climática que a gente está vivendo, é impressionante como as pessoas ainda não  se dão conta disso.


Fonte: A Tarde

Leia a matéria completa em: Daniel Munduruku: "Índio é invenção total, folclore puro" - Geledés
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Fonte: Geledés

"Por que a exceção vira regra? A epidemia de cesáreas no Brasil e a violência obstétrica ", por Alcir Martins

PICICA: "A praticidade com que o nascimento ocorre cirurgicamente é marca dos nossos tempos cada vez mais mercantilizáveis: “time is money”!"

Por que a exceção vira regra? A epidemia de cesáreas no Brasil e a violência obstétrica


A praticidade com que o nascimento ocorre cirurgicamente é marca dos nossos tempos cada vez mais mercantilizáveis: “time is money”!

Foto de parto em manifestação no Uruguai pela liberdade de poder escolher onde parir. Foto: Caren Rhoden

Por Alcir Martins


Tenho o feliz destino de ser pai de duas meninas. Ambas nascidas no mês de abril. Ambas nascidas de cesarianas. Para a mais velha havia data e horário marcado para a realização da tal cirurgia. Para a caçula queríamos um parto normal, o mais natural e humanizado possível. As duas “estouraram” suas bolsas e indicaram o momento em que iriam nascer a despeito de previsões ou agendamentos de outros.

Minha filha mais velha, na véspera da cesariana agendada, rebentou a bolsa amniótica e decidiu nascer algumas horas antes do previsto – previsto pelo médico, não por ela, ora bolas! Ainda assim e apesar dos sinais que indicavam o início do trabalho de parto, foi realizada a cesariana por que não se realiza um parto pélvico por via vaginal – asseverou o doutor.

Parto pélvico ou posição pélvica é o nome que se dá ao “bebê sentado” no útero da mãe. Nesta condição, os quadris e os ombros do bebê saem primeiro do útero e, por fim, a cabeça, ao contrário do parto cefálico, considerado o correto.

Minha filha mais nova também decidiu dar uma beliscadinha e romper a bolsa no meio de uma madrugada dessas. A bolsa rota pode dar início – ou não – ao trabalho de parto. É possível que da ruptura da bolsa até o início do parto propriamente dito ocorra um intervalo de mais de 12 horas. Foi o que ocorreu: passaram-se as horas e, ao completarem-se 18 horas com a bolsa rota e sem dilatações, não tivemos outra alternativa que não a cesariana – orientou o doutor.

Estas duas histórias, com todas suas diferenças de tempo, lugar e conhecimento (empoderamento) sobre a gestação e o parto, guardam duas importantes semelhanças. A primeira delas é que não é verdade, para nenhuma das situações acima, que a cesariana era a única e derradeira alternativa para as mães e para as meninas. Partos pélvicos podem sim ocorrer pela via vaginal sem riscos para a criança ou para a mãe. Exige um maior trabalho, mais atenção e mais tempo do médico. Mas é possível! A bolsa rota sem o início das dilatações pode ser acompanhada pelo obstetra que induzirá ao trabalho de parto ao custo de paciência, dedicação, acompanhamento e tempo!

A segunda semelhança entre o nascimento das minhas duas filhas é que, com a ruptura das bolsas, elas indicaram que a hora de nascer estava próxima ou já havia chegado. A epidemia de cesáreas agendadas, entre outros perigos, traz ao mundo, de maneira muitas vezes (ou sempre) abrupta, um grande número de crianças prematuras. Bebês que poderiam e deveriam ficar mais alguns dias ou semanas no ventre de suas mães são arrancados em dia e hora marcado de maneira a garantir que o profissional da saúde não atrase suas férias nem perca um programa de final de semana ou evento qualquer. A proporção de nascimentos prematuros (antes de 37 semanas) é de cerca de 11,3% no Brasil. Em relação aos bebês que nasceram com 37 ou 38 semanas gestacionais, a proporção fica em 35%. Passadas as 37 semanas os bebês já não são tecnicamente prematuros mas poderiam ganhar mais peso e maturidade dentro do útero materno até a 39ª semana. Essa onda de nascidos com 37 ou 38 semanas no Brasil pode ser explicada pelo número de cesarianas agendadas antes do início do trabalho de parto. Dados alarmantes podem ser conferidos nas pesquisas da FIOCRUZ, “Nascer no Brasil” ou da UNICEF, “Toda Criança Conta”

A praticidade com que o nascimento ocorre cirurgicamente é marca dos nossos tempos cada vez mais mercantilizáveis: “time is money” !

Um parto normal pode demandar tempo. Um parto natural e humanizado se estenderia pelo prazo em que várias cirurgias cesáreas poderiam ser realizadas. Eis aqui uma imposição mercadológica que agride mulheres e crianças todos os dias. A Organização Mundial da Saúde indica como adequado um percentual de 10 a 15% dos partos por via cirúrgica. No Brasil temos mais da metade dos partos realizados por cesáreas, muitas delas desnecessárias ou evitáveis. Na rede privada o número de cesáreas chega a 9 em cada 10 nascimentos. Isso mesmo! Na rede hospitalar privada o índice alcança estratosféricos 88% de cesarianas.

No Brasil somos campeões mundiais da cesárea: 52%. Estamos na contramão! Nos EUA, o percentual de partos cirúrgicos era 33% há poucos anos, atualmente baixaram para 26% por recomendação do Colégio Americano de Obstetrícia. Suiça está em 30%, Alemanha em 29%. No vizinho Uruguai as cesáreas não passam dos 34%.

Os crescentes movimentos em defesa do parto natural, além de questionarem a mercantilização da vida e da saúde; questionam também o próprio discurso da autoridade do médico e, assim, questionam certa manifestação do patriarcado que retira o protagonismo da mulher sobre o seu corpo e o seu parto.

É opressor e atinge mulheres de todas as classes, a concepção que dá ao médico o controle sobre o parto, tirando da mulher, mais uma vez, o direito de decisão sobre seu próprio corpo. O parto, fisiológico e natural, não pode ser tratado como doença – esta sim exige atendimento e intervenção médica. Gestação e parto – que não são doenças – precisam de acompanhamentos e cuidados para que tudo transcorra bem e, apenas nos casos de complicações, atue o médico e seus procedimentos. O médico e a técnica dominam tudo: até o verbo parir está caindo em desuso, fala-se em ter um bebê, ou ganhar um bebê, que podem ser coisas bem diferentes.

O parto por via vaginal foi perdendo espaço para a cesareana apenas no século XX, quando a cesariana tornou-se aceitável como recurso extraordinário que é – extraordinário porque não é pra ser cotidiano e também porque salva vidas quando necessário – mas passou a ser praticada de maneira exagerada e irresponsável.

O caso é de violência obstétrica (VO). A medicina, neste caso, está direcionada pelo lucro. Repetimos: “time is money”! Uma cesárea se conclui com, no máximo, duas horas de trabalho da equipe médica; já o trabalho de parto é imprevisível, podendo durar até dois dias. Esta praticidade cirúrgica que cabe direitinho na agenda do médico retira da mulher qualquer direito de decidir. O discurso médico e sua autoridade autoritária influencia a mulher e a família envolvida na gestação. Falsos ou exagerados temores são convocados para justificar a suposta segurança e comodidade de uma cesárea. Comodidade para o médico. Ou, simplesmente, porque pelo plano de saúde só faz cesariana, o parto normal no setor privado custa caro.

A violência obstétrica tem muitos meios e formas de manifestação. São as cesáreas e episiotomias (um ‘pique’ no períneo para ‘permitir’(SIC) o parto via vaginal). Mas também são as agressões verbais, humilhações ou ridicularizações, realização de procedimentos sem consentimento, nem informação para que a mulher decida. Começando pela imposição da litotomia (ou posição ginecológica): a mulher fica na horizontal, numa mesa bem ao alcance das mãos médicas mas em posição completamente antinatural para o parto.

A luta pela garantia do direito ao parto humanizado – que não é aquele sem intervenção alguma mas apenas sem intervenção desnecessária – pode reorientar não só o serviço de saúde e a atuação dos profissionais e equipes que atuam nos partos, mas também pode nos provocar a repensar que tipo de seres humanos e de que maneira os estamos colocando no mundo. Não trata-se de um direito daqueles que deva trazer “proteção” às mulheres, mas é sim uma ferramenta de exercício e consolidação da autonomia sobre seus corpos e suas vidas. Sem a autodeterminação e o empoderamento das mulheres o parto nunca será humanizado.

"Dependência de drogas: o problema é a gaiola", por Caue Seigne Ameni

PICICA: "Em quadrinhos, o experimento científico que derrubou o mito segundo a qual substâncias psicoativas são por natureza nocivas e viciantes"


Dependência de drogas: o problema é a gaiola

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Em quadrinhos, o experimento científico que derrubou o mito segundo a qual substâncias psicoativas são por natureza nocivas e viciantes

Por Cauê Seignermartin Ameni

Ao estampar em sua capa, na última quinta-feira (16/1), a imagem de uma paciente do novo programa para usuários de drogas de S.Paulo fumando crack após o trabalho, a Folha de S.Paulo praticou um atentado à privacidade da pessoa em tratamento médico, desencadeando crise de choro e revolta. E foi além. Na tentativa de “demonstrar” uma tese conservadora (a de que as terapias humanizadas são ineficazes para dependentes de drogas), ele ignorou um experimento científico realizado há mais de trinta anos. Já no final da década de 1970, o psicólogo canadense Bruce Alexander demonstrou que a socialização é, claramente, o melhor caminho (se não o único) para enfrentar a dependência química. Sua pesquisa, que passou a influenciar profissionais de saúde em todo o mundo, está descrita até em formato de quadrinhos — inclusive traduzidos para o português (veja-os ao fim deste post). O fato de prevalecer até hoje, entre os velhos jornais brasileiros, a velha crença em métodos de punição e encarceramento só demonstra o atraso destas publicações.
Alexander, que trabalhava na Universidade Simon Fraser, questionou o pensamento predominante em sua época, segundo o qual as substâncias psicoativas produziam dependência, por sua natureza – e por isso deveriam ser proibidas. Para tanto, precisou enfrentar um problema. Em favor da crença comumente aceita, havia dezenas de experimentos “científicos”, geralmente realizados com ratos, e sempre com resultados semelhantes. “Demonstravam” que, uma vez em contato com drogas, os animais tornavam-se incapazes de viver sem elas.


O psicólogo canadense observou, porém, que talvez a causa destes resultados recorrentes não estivesse na correção da hipótese que eles supostamente “comprovavam” — mas num erro metodológico comum a todos os experimentos. Em todo os casos, os ratos testados eram confinados em gaiolas. Tinham um canudo implantado cirurgicamente no sistema circulatório. Eram treinados a movimentar uma alavanca e receber, diretamente no sangue, doses de morfina, heroína ou cocaína. Ao final de algum tempo, preferiam a droga aos alimentos ou à própria água, sendo levados à morte. “Concluía-se cientificamente” que as substâncias eram nocivas e altamente perigosas, e deveriam ser proibidas para humanos. As pesquisas foram um poderoso reforço ao proibicionismo e, mais tarde, à chamada “Guerra contra drogas”, em curso até hoje.

Bruce Alexander resolveu testar outra hipótese. Ao invés confinar os ratos em gaiolas minúsculas e solitárias, construiu para eles um parque 200 vezes maior com túneis, perfumes, cores. Mais importante, colocou outros ratos para interação. A experiência ficara conhecida como Rat Park – algo como Ratolândia em português. Para completar a “festa”, os roedores tinham acesso a duas fontes jorrando, incessantemente, água e morfina. Nestas novas condições, que reproduzem muito melhor a vida real, os resultados foram impressionantes. Percebeu-se, entre outros fatos, que os ratos livres consumiam 19 vezes menos psicoativos que seus iguais enjaulados.

Hoje, com avanço da ciência, há um maior entendimento sobre o funcionamento químico cerebral. O jornalista Denis Russo Burgierman, autor do livro O Fim da Guerra, explica como se dá essa relação: “O centro da questão é um químico chamado dopamina, o principal neurotransmissor do nosso sistema de recompensa. Quando animais sociais ficam isolados e sem estímulos, seus cérebros secam de dopamina. Resultado: um apetite enorme e insaciável pela substância. Drogas – todas elas – têm o poder de aumentar os níveis de dopamina no cérebro, aliviando essa fissura. O nome disso é dependência. Ou seja, não é a droga que causa dependência – é a combinação da droga com uma predisposição. E o único jeito de curar dependência é curar essa predisposição: dando a esse sujeito uma vida melhor, como Bruce Alexander fez com os ratinhos do Rat Park.”

O paralelo com a situação brasileira é evidente. As políticas tradicionais tratam o usuário de drogas como pária a ser afastado do convívio social. Esta posição é radicalizada por autoridades e profissionais de saúde mais conservadores — para quem é preciso internar de forma compulsória os dependentes. Em contrapartida, a nova atitude adotada em São Paulo oferece a eles alojamento digno e ocupação e volta ao convívio social.

Por que são tão fortes e persistentes as teorias retrógradas, mesmo quando descoladas totalmente da realidade? O neurocientista Carl Hart, professor neurocientista da Columbia University, entrevistado recentemente pela New York Times respondeu a essa questão: “Oitenta a 90 por cento das pessoas não são afetadas negativamente pelo uso de drogas, mas, na literatura científica, quase 100 por cento dos relatórios são negativos. Há um foco distorcido em patologia. Nós, os cientistas, sabemos que teremos mais dinheiro, se continuarmos dizendo ao governo que vamos resolver este terrível problema. Temos um papel desonroso na guerra contra as drogas”. Bruce Alexnder e Carl Hart são duas incômodas exceções. Enquanto ao resto, a industria farmacêutica e bélica agradecem o proibicionismo.

Ratolândia (Rat Park)
Ratolândia (Rat Park)
Ratolândia (Rat Park)
Ratolândia (Rat Park)
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Ratolândia (Rat Park)
Ratolândia (Rat Park)
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Ratolândia (Rat Park)
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Fonte: Blog da Redação