dezembro 19, 2014

"Deleuze e o problema da produção; sobre “Deleuze e Bergson” (C. Lambert)" (Quadrado dos Loucos)

PICICA: "Muitos trabalhos monográficos se propõem a cotejar dois filósofos fazendo uma aproximação na teoria, métodos e conclusões. Ainda que para levá-los a colidir e, das faíscas do choque, alastrar novas ideias, abrir um horizonte impensado. Cleber Lambert, em seu Deleuze e Bergson, realiza uma operação conceitual de outro tipo. A tese de Cleber opera um divórcio entre os dois autores. Um Deleuze sem Bergson. Em vez da filosofia como tertúlia entre cupinchas, uma contenda sem trégua entre inimigos com divergências fatais. Henri Bergson provocado a partir do ponto de vista do inimigo que Deleuze seria." 

Deleuze e o problema da produção; sobre “Deleuze e Bergson” (C. Lambert)
“Há uma beatitude da síntese passiva; e todos somos Narcisos, pelo prazer que sentimos ao contemplar (auto-satisfação), se bem que contemplamos outra coisa que não nós mesmos.” (Deleuze, Diferença e repetição)

DLZ


Instauração x especulação

Muitos trabalhos monográficos se propõem a cotejar dois filósofos fazendo uma aproximação na teoria, métodos e conclusões. Ainda que para levá-los a colidir e, das faíscas do choque, alastrar novas ideias, abrir um horizonte impensado. Cleber Lambert, em seu Deleuze e Bergson, realiza uma operação conceitual de outro tipo. A tese de Cleber opera um divórcio entre os dois autores. Um Deleuze sem Bergson. Em vez da filosofia como tertúlia entre cupinchas, uma contenda sem trégua entre inimigos com divergências fatais. Henri Bergson provocado a partir do ponto de vista do inimigo que Deleuze seria.

Deleuze sem Bergson significa um Deleuze arrancado do sono vitalista. Extraído de um quase misticismo de celebração da vida de todas as coisas, dos cânticos ao Múltiplo-Virtual de uma ontologia restaurada. O inimigo de Cleber é a ontologia enquanto problema do absoluto. Bergson marca a passagem da metafísica antiga, fundada no princípio do Uno, estático e soberano, à metafísica dos modernos, a ontologia do movente, dos fluxos, da vida que se autodiferencia no movimento perpétuo de seu elã. Marca a passagem, portanto, entre dois tipos de especulação principial.

Ao problema metafísico do princípio, na versão especulativa antiga ou moderna, Cleber opõe o problema da instauração. É este o problema de Deleuze sem Bergson.

Destituinte das pretensões metafísicas de sondar o absoluto, a filosofia assume por primeira tarefa abolir o problema do princípio. Quem se preocupa em fundar e fundamentar o movimento do real são aqueles interessados em sistemas de valores, consensos e polícias, cujos universais de justificação caem tão bem no status quo do poder constituído. Isso não é filosofia, é burocracia ontológica a serviço da classe dominante.

Para Deleuze, a filosofia tem sempre um momento de contrapoder. Um ato de resistência em meio ao caos e  as opiniões correntes, a fim de instaurar uma experiência nova, é por si só indesejável àqueles bem situados, para quem pensar criativamente constitui uma ameaça.

A filosofia é uma prática de construção que depende de processos da não-filosofia e os reconfigura. Não existe filosofia pela filosofia: ela está de uma forma ou de outra penetrada por questões que lhe são alheias e sem as quais termina por encolher num esteticismo especulativo conformista.

Arte do conceito, para Deleuze e Cleber, a filosofia é uma fábrica. A história da filosofia é seu almoxarifado. Filosofia semelha à engenharia, mas uma engenharia também da improvisação, capaz de gambiarras, engenhocas e arremedos inusitados. É como o free jazz, intempestiva, virtuosística.

Segundo Deleuze, os conceitos não são universais nem categorias abstratas. São o que de mais concreto poderíamos imaginar. São como sons, cores, sensações. Os conceitos transitam por nós e pelas coisas, operam transformações reais. Se não se movimentar pela pele do não-filosófico, o movimento conceitual gira em falso, quer dizer, recai no problema principal do absoluto, que é o mais vazio. Sem as dimensões vividas da experiência, sem o fluxo sensível, o movimento terminará especulativo, e como tal se isolará em solidões ilusoriamente guerreiras.

Por isso que aqueles dedicados apenas a reproduzir os jargões, diluir os cânones ou cultuar os grandes filósofos não passam de funcionários da filosofia, com todos os tipos de taras e grifes dessa atividade acadêmica. São menos que epígonos (uma malta de epígonos pode ser uma força ameaçadora). É menos que isso. Os deleuzismos e as deleuzadas, sua fascinação lexical e zonas de conforto próprias, não vão quando muito além de um expressionismo espontaneísta e vitalista, ou de um quase behaviorismo; no elogio sem propósito dos fluxos, redes e do desejo. Manejam bem as palavras but don´t deliver.

Empirismo transcendental 

O problema especulativo principial está associado a uma imagem dogmática do pensamento. O absoluto consome o esforço filosófico e paralisa a capacidade criadora do conceito, levando à fadiga. Ela está associada irremediavelmente a uma teoria idealista da subjetividade, impotente em criar e formar coalizão com contrapoderes não-filosóficos, e que por isso é facilmente acomodável na ordem dos discursos, e então achatada como um carro numa prensa de ferro velho. É a fábrica fordista de bacharéis.

Deleuze (s)em Bergson, por Cleber, recusa a covardia de prender-se ao problema do absoluto, ainda que sob a forma — bacana — do movente, fluido, vitalista. Enquanto o princípio servir de âncora do movimento conceitual, estaremos nos movendo dentro de um plano em que o próprio princípio domina. Perdem-se as velocidades infinitas, perde-se a imanência enquanto incondicionado, perde-se a ginga. Como diz Cleber, a experiência fica submetida ao problema principial.

Porque, com Deleuze, é da experiência que estamos falando. Deleuze faz a passagem da analítica transcendental de Kant ao empirismo transcendental. Transcendental, em Kant, se refere à investigação pelas condições de possibilidade das coisas (do conhecimento dos fenômenos, da ação moral, do juízo). Kant deduz e analisa as condições puras de toda experiência possível. Deleuze rejeita o programa, especulativo demais. A pesquisa das condições de possibilidade da experiência só pode se dar com a ação que leva ao ato essa mesma experiência. Não se trata então do exercício de uma faculdade que preexistiria à experiência resultante desse esforço.

Ou seja, descobrir as condições da experiência implica antes de qualquer coisa agir sobre elas. O conhecimento procede segundo um aprendizado que é criativo, ao abrir novo campo de experiências. O que chega a ser intuitivo. Só se pode aprender a nadar nadando. Somente se sabe o que quer dizer nadar, no nível vivido e sensível, quando entramos na água. Nenhuma representação da experiência de nadar pode substituir o nadar mesmo, quando entramos na água. A intuição não pode ser atingida mediante condições puras, especuladas pela filosofia. A intuição é consciência coextensiva à vida.

Daí o problema da instauração, que Cleber desdobra, tem tudo a ver com a virada de Kant a Deleuze. A instauração leva a um esforço que de outra forma não realizaríamos. Não temos assim alguma divisão entre teoria e prática, tampouco a sua alternância dialética. O que se instaura é uma experiência real, uma sensibilidade, falar em teoria e prática já é algo derivado e posterior à intuição primária daquela experiência. E nadar não é também um modo de sentir? Esta uma teoria materialista da subjetividade, uma que não prescinde da práxis.

Daí que a recente onda de viradas ontológicas é motivo para uma grande desconfiança. Parecem trazer uma lufada bergsoniana de restauração do problema principial, da especulação ao redor do ser absoluto, com seus cansaços e escleroses do pensamento. Sejam elas as viradas ontológicas da filosofia “política” (haveria alguma filosofia apolítica?!), sejam aquelas da antropologia. Trazem todas um ar de restauração do antigo regime, na sequência da revolução pós-estruturalista.

A metafísica canibal entre as restaurações


Cleber pontua a tese com a crítica às construções filosóficas de Eduardo Viveiros de Castro, abre-alas de uma retomada da ontologia em termos antropológicos, ou da antropologia em termos ontológicos. Uma “ontologia tática”, a fim de destituir o princípio colonialista da metafísica e, mediante sucessivas inversões, engenhosas reviravoltas e infindáveis trocadilhos, instituir os lineamentos de outra metafísica, a metafísica canibal para um antropocentrismo superior.

Resultado de uma experiência do pensamento do antropólogo regulada pelo material etnográfico das terras baixas sul-americanas, um experimento de equivocação consequente; a metafísica canibal tem por leitmotiv de suas operações o conceito de Outro (ou estrutura-Outrem, ou devir-outro).

Nesse sentido, a alteridade oferece a ocasião para se fazer uma experiência sobre nossa própria cultura, sobre nosso ser. Quanto mais radical a alteridade, quanto mais distante estiver do Eu, mais fecunda a operação de preenchimento de nós mesmos, enquanto outros de nós mesmos. Se a metafísica antropocêntrica dos modernos reproduz obsessivamente a sua própria identidade, autoportante e autorreferencial, ao definir-se como não-outro; a metafísica canibal ama o distante ao pautar-se pela diferença interna que o outro, o absolutamente outro faz cooptar. Visa assim à alteridade como princípio ontológico, revertido então como ponto de vista de si mesmo, do Eu. Tudo para escapar da Grande Partilha imposta pela modernidade ocidentalocêntrica e sua metafísica colonizadora, que distingue o sujeito do que ele não é: o incivilizado, o primitivo, o não-humano. O propósito, dessa maneira, será descolonizar o pensamento.

Tem a ver com a antropofagia, reverberando Oswald de Andrade noutros termos. O inimigo não é devorado enquanto matéria comestível. Nem enquanto espírito a acumular-se no patrimônio anímico do devorador. O inimigo é devorado enquanto signo, valor posicional que seu ponto de vista constitui. É devorado enquanto corpo que propicia a transmutação. Na antropofagia, devora-se a relação de inimigo do devorado em relação ao devorador. Come-se não o outro como um ente, mas a alteridade. Noutras palavras, o antropófago come o transcendental em relação com o empírico, e não apenas o empírico.

Ao longo do complexo ritual do canibalismo guerreiro, o devorador fala de si do ponto de vista do inimigo. Dá-se uma troca sequencial de pontos de vista, até a devoração plena. Não é que o eu se torna o outro, que seria mera comutação extensiva e quantitativa. O outro é devorado enquanto outro, quando o eu se constitui enquanto outro (o outro do outro). Esse jogo comutativo se dá no plano intensivo e qualitativo das diferenças internas. Um relacionismo ontológico, quando as posições de Eu e Outro proliferam na medida em que constituem inteiros mundos possíveis, inteiras sensibilidades e tensões de experiência. Heterogênese, diria Deleuze. O(do)ntologia, Oswaldo.

Para Cleber, subsiste um ethos oculto nessa virada ontológica da antropologia (e vice-versa), tão reiteradamente centrada na alteridade, que é a fascinação por um grande fora, pela figura fugidia e sedutora do absolutamente diferente. Uma espécie de assombro aristotélico na base afetiva desse esforço que, a seu modo, não deixa de ser fastidioso. Cleber cita indiretamente Melville, a partir de Jaworski: as tormentas são desejadas desde que sejam aquelas tempestades de seu oceano particular, de meu quest próprio em busca do desconhecido. Como o capitão experiente que, enfastiado pela modorra dos portos, precisa de tempos em tempos revigorar-se nas águas revoltas, embora sua viagem não vá realmente longe, ele sabe muito bem os males que o espreitam e as ilhas no meio dos caminhos.

Segundo Cleber, talvez nas linhas mais ácidas, a injunção para que se “abra ao aberto” tem um quê de egotrip: busco e amo o mais distante, o que não é meu, apenas para terminada a aventura retornar a mim mesmo e ao meu, ao fim e ao cabo, enriquecido. O navio está dentro de uma garrafa da sala.

Diverso o nomadismo para Deleuze. Em vez de pôr o pé na estrada e go west na busca de alucinações, índios e arte underground, o distante é uma viagem intensiva. O desconhecido está nas coisas mais próximas. Afinal, não preciso subir o rio Mekong para me reencontrar com o coronel Kurtz. Tampouco construir uma fábrica de porcelanas no meio da Amazônia, ou derivar em jangadas atrás de Eldorados enquanto as flechas despencam das margens. É possível embriagar-se com água, viajar sem sair do lugar e alucinar com a velhinha sentada no banco da praça vista da janela de um quartinho numa cidade qualquer do interior de Minas Gerais, numa tarde morta de abril. No teatro deleuziano, saem de cena escritores viris como Hemingway ou Malraux, e entram em cena Fernando Pessoa ou Kafka, invisível little man numa paisagem de escriturários. Menos aventuras de Rin Tin Tin e mais Snoopy.

A insuficiência do virtual


Num capítulo inteiro de Metafísicas canibais, Eduardo faz questão de afastar a produção e o devir. Haveria uma inflexão na obra de Deleuze e Guattari. Se o Anti-Édipo (1972) estaria ainda marcado pela problemática da produção, em Mil Platôs (1980) ela já estaria superada pelo conceito de devir. O que tem a ver com as formulações políticas, Eduardo elegerá uma afinidade eletiva com este que seria o último Deleuze, remetendo o conceito de produção ao inferno civilizacional.

É que o conceito de produção ainda estaria preso à metafísica ocidentalocêntrica dos modernos. Produzir seria, em hegelianismo insuprimível, a relação subjugadora do Homem com a Natureza, o Primitivo, a Mulher. É uma relação de dominação ontológica, na base dos projetos autoritários de dominação da natureza e dos povos dominados. Tal conceito reproduziria invariavelmente a relação de superioridade epistêmica entre o Sujeito que produz, e o Objeto que é e pode ser usado como matéria-prima, inclusive o objeto da força-trabalho. A produção fica parecendo, assim, uma espécie de princípio de objetificação de tônus novecentista, que ressoou na dialética do esclarecimento de um Adorno, ou então na inoperosidade de Agamben, ou — concedo — nos ultravulgarizados marxismos dos ditos governos progressistas de esquerda.

O conceito de devir, ainda segundo Eduardo, ultrapassaria a problemática quantitativa e extensiva para se situar no grau qualitativo e intensivo, com outra geografia filosófica. A humanidade não mais se constituiria unificando as multiplicidades num projeto produtivista e quantitativista de mundo unidimensional: o mundo moderno do progresso, maravilhoso apenas na propaganda. Com o devir, se torna possível perceber e sentir como a humanidade se tornaria, ela própria, uma multiplicidade: múltiplos pontos de vista capazes de constituir naturezas inteiras. Nada de multiculturalismo (multiplicidade de culturas na humanidade), mas multinaturalismo. O mundo se povoa de mundos com direito próprio. Mudando-se de ponto de vista, não muda a percepção das coisas, mudam as próprias coisas, sensibilidades inteiras, outros conceitos de vida, outros modos de existência. No entanto, o conceito de produção está ancorado no mundo antropocêntrico e modernizante, uninaturalista. A virada ao devir ajuda a desabrochar o polimorfismo da transiência cósmica.
O plano traçado por Eduardo, como explica Cleber, é o da totalidade virtual, do Múltiplo-Virtual — aliás, topos frequente na recepção da obra de Deleuze. Por esse plano transitam os movimentos conceituais e seus enrodilhamentos com as coisas e os  acontecimentos. Na metafísica canibal, a totalidade virtual aparece especialmente na ideia do tempo mítico, aquele tempo primevo em que divindades, humanos e não-humanos estariam amalgamados, humanidade como multiplicidade intensiva. Na obra de Eduardo, o tempo mítico consiste numa memória biocósmica, que lembra o caosmo de Felix Guattari, e que se explica na atualidade dos infinitos pontos de vista humanos e não-humanos, em variação contínua entre si, gerando as coisas do(s) mundo(s). O multinaturalismo opera, a partir daí, mediante transmutações e transformações que, apesar da linguagem antropológica, assumem as coordenadas intensivas do sistema deleuziano do Múltiplo-Virtual, a bem da verdade, atualizam — com impressionante precisão, capricho e fruição estética — o arcabouço filosófico do pós-estruturalismo.

Alain Badiou criticou, em O clamor do ser, o passe-partout do virtual, que seria a falha fatal da maquinaria de Deleuze. Basicamente, a cisão entre virtual e atual colapsaria a univocidade do ser, tornando-se dois campos categoriais e assim reproduzindo o esquema ôntico/ontológico de Heidegger. O programa da imanência vai pra cucuia. E mais, a criação se tornaria impossível, já que todas as tentativas de inovar seriam rebatidas e niveladas, num tipo de fechamento de segunda ordem que a totalidade virtual provocaria. Essa foi uma crítica semelhante a que Badiou fez a Spinoza, ao não conceber linha de fuga à implacável necessidade da substância infinitamente infinita do edifício spinozista.

Badiou atingiu a pá de um moinho. A linha de fuga está no devir. Só que o devir, enquanto linha de fuga às aporias de fechamento do Múltiplo-Virtual, não pode ser dissociado da questão da produção. Isto vale tanto para a maquinaria intensiva desenvolvida por Deleuze, quanto na ética em cinco tomos de Spinoza. Aliás, a maquinaria deleuziana pegou no almoxarifado algumas rebimbocas insubstituíveis da filosofia de Spinoza. Diferença e repetição (1968), de Deleuze, seria impensável sem o conceito de produção, que depois vai plasmar o Anti-Édipo, no conceito de inconsciente, e também Mil Platôs, fração essencial do conceito de agenciamento maquínico.

Pra desdobrar isto, é preciso ir além do Múltiplo-Virtual e superar o que Alberto Toscano chama de “insuficiência do virtual” nas apreensões da obra deleuziana. É preciso então revisar a doutrina das três sínteses do tempo, de Diferença em repetição, onde o esquema atual/virtual é articulado com a questão da individuação. Fazer isso é exatamente retomar a proposta primeira de Cleber Lambert: um Deleuze sem Bergson. Na formulação do empirismo transcendental, matriz fundamental da filosofia da diferença, não basta assumir Kant como inimigo. É preciso acolher a sugestão de Cleber e assumir Bergson também.

A cidade proibida da terceira síntese, em Diferença e repetição
 

No empirismo transcendental de Deleuze, não basta deduzir as condições da experiência, mas explicar a sua gênese interna. Em Kant, toda experiência possível está condicionada, logo subordinada, ao sujeito transcendental. Este opera mediante sínteses sucessivas, unificando a experiência nas formas puras da percepção, do entendimento, da moralidade. As sínteses funcionam no nível da representação do sujeito, para o sujeito. Funda-se assim uma experiência que não se pode libertar do sujeito que lhe condiciona as formas e estruturas.

Em Deleuze, contudo, as sínteses são pré-subjetivas e pré-representativas, e não passam por nenhum sujeito transcendental. Não existe, aliás, um único sujeito: o transcendental é um campo pré-individual, inconsciente, repleto de eus liliputianos. Deleuze atravessa, aqui, a trilha de Bergson, mas também do estruturalismo à francesa. Mais do que dissolver o sujeito, ele foi fragmentado e dispersado numa miríade de subjetividades, onde o Eu é efeito derivado e a posteriori.

Para Deleuze, as sínteses não são necessariamente obra de algum sujeito, porque elas podem ser passivas, obra de maquinismos do inconsciente. O inconsciente, por sua vez, não é individual, mas dispersivo e pré-individual, como um gás. A doutrina das três sínteses do tempo, elaborada por Deleuze no segundo capítulo de Diferença e repetição, se baseia em três sínteses passivas: hábito, memória e o aion.

O tempo do hábito é aquele da urgência da vida. Os blocos elementares do tempo são sintetizados na forma do presente vivo. Este. As inúmeras qualidades sensíveis experimentadas a cada vez são convertidas neste tempo em que imediatamente estamos, e que dura. É uma síntese passiva, na medida em que nenhum sujeito determina a sua formação. Os elementos se reúnem segundo N lógicas e terminam por formar o tempo do presente.

O passado e o futuro também pertencem à primeira síntese, enquanto subconjuntos do presente. Também existe um passado experimentado a partir deste presente, justamente o passado que acabou de passar e que, como continua sendo sentido, também pertence ao presente. Assim como um futuro antecipado a partir deste presente que pertence igualmente ao presente de onde pode ser intuído. A posteriori, o entendimento é capaz de formular sínteses ativas elaborando um passado e um futuro individuais, mas este já é um momento derivado e de menor importância em relação à síntese passiva inicial, a do presente vivo.

O tempo da memória, a seu passo, institui um passado de segunda ordem. Quer dizer, a memória, aqui, não é tanto o entendimento ativo que o indivíduo tem de seu passado ou faz de seu futuro, que ainda é um entendimento assentado sobre a primeira síntese. Esta memória ativa faz parte, como eu disse, da primeira síntese do hábito, porque está relacionada a um passado impensável sem o presente. Na segunda síntese, trata-se de uma memória passiva, pré-individual, pré-subjetiva. A memória da segunda síntese passiva é uma memória de outro tipo. A memória passiva pode ser pensada em relação ao presente e lhe condiciona a existência, mas não se confunde com o presente vivo, da primeira síntese. Esta memória é transcendental e conforma um passado puro, um passado enquanto passado, pensável de maneira independente ao presente. Além disso, o passado puro é aquele que faz o presente, efetivamente, passar. Da existência do presente, afinal de contas, não decorre que ele deva passar. Por que o presente deixa de ser presente? É necessário que haja uma segunda força, fora do presente, uma força com qualidade distinta, para fazer o presente passar. É essa a ação da síntese da memória ou do passado puro.

A relação entre o presente vivo e o passado puro, entre o hábito e a memória, é a mesma entre a atualidade e a virtualidade. Isto é, cada presente vivo que existe é a atualização da totalidade virtual da memória. A memória da segunda síntese, portanto, não se resume à memória como entendimento pessoal do próprio futuro individual (esta seria somente uma síntese derivada, embora ativa, assentada sobre o hábito). O leitor se recorde que estamos falando de sínteses passivas pré-individuais, pré-representativas e rigorosamente inconscientes. Sempre seguindo Deleuze, a memória de que estamos falando, destarte, é uma memória ontológica, é uma memória que pode ser atualizada de modos infinitamente diferentes, e que não se esgota a cada vez que é atualizada. Não se trata de um movimento de especificação: um ser geral indeterminado se individua em seres particulares com determinações específicas. Nem movimento de emanação: um ser com máximo grau de existência se decanta em seres que partilham de parte de seu grau de existência, diminuídos de ser em relação ao Uno originário. Nada disso, o que seria renunciar à univocidade do ser, logo, à imanência, logo, à instauração de experiência. Com a segunda síntese, cada presente é uma atualização da virtualidade infinita da memória. O que significa dizer que presente e passado paradoxalmente coexistem e são simultâneos, embora de naturezas diversas.

Com as duas sínteses, portanto, se pode construir um sistema extensivo/intensivo, ou atual/virtual, completamente funcional em seus processos de atualização ou virtualização (funciona nos dois sentidos, do hábito à memória e vice-versa). Grossissimo modo, é isso o que Eduardo faz, quando a segunda síntese aparece na gênese da memória biocósmica do tempo mítico, e a primeira síntese com as múltiplas naturezas atualizadas pelas múltiplas perspectivas da humanidade trans-específica. A diferença, anotada por Cleber, é que Eduardo trabalha com figuras individuais do Eu e do Outro, enquanto Deleuze, nas sínteses passivas, trabalha explicitamente com os eus liliputianos narcísicos da nuvem dispersa de subjetividades. Porém, grosso modo, o perspectivismo ameríndio ocupa o lugar da síntese do hábito e o multinaturalismo completa o sistema com a memória ontológica. Nesse meio entre atualizações e virtualizações, os devires funcionam como operadores de individuação, transformações de transformações que geram as coisas singulares.

Ocorre que, pace Bergson, Eduardo e Badiou, o sistema deleuziano não pára nas duas primeiras sínteses. Pelo contrário, o clímax do empirismo transcendental só acontece com a terceira e mais crucial síntese passiva. Quem primeiro ressaltou o fato foi Véronique Bergen, num artigo-contestação [‘À propos de la formule de Badiou, “Deleuze un platonicien involontaire”’] a Badiou, a seguir retomada detalhadamente por Alberto Toscano no livro já citado, O teatro da produção. Como Cleber escreve, a metafísica canibal de Eduardo permanece um pastiche entre as duas primeiras sínteses, sem chegar à terceira.

Bom, mas e daí? É algum tipo de ascese deleuziana necessária? Não, mas a ausência da terceira síntese corre o risco de validar a crítica de Badiou e mesmo ameaçar o sistema de fadiga. É que a potência da repetição só ocorre com as três sínteses. E a repetição régia, Deleuze dixit, é a do futuro. Com efeito, não entrar no território da terceira síntese desfaz toda a diferença. Porque significa depurar Deleuze da experiência do pensamento que lhe é a mais potente, que é a experiência do eterno retorno. Sem o pensamento mais alto, não é possível rachar o tempo cronológico, a história e o sujeito, e assim refazer o tecido mais denso da filosofia de Deleuze, que é aquele aliando Deleuze a Marx, pela via de Spinoza. É o seguinte.

Novamente, a produção


A segunda síntese passiva forma o passado puro como transcendental em relação ao empírico do presente vivo. A terceira síntese passiva é a transcendentalidade como tal. É a síntese de um futuro puro, tempo desertificado. Borram-se as fundações e fundamentos, é sem fundo e a-fundamentado. É a hora mais aguda, quando o tempo se liberta de todas as regras e o lance de dados se efetua sem condicionamentos instaurando uma experiência nova. Um tempo que não tem relação nem com o hábito nem com a memória. Pelo contrário, é contra-habitual e produz blocos flutuantes de esquecimento. Apaga as reminiscências e desfaz as urgências da vida. É o aion, um tempo libertado dos acontecimentos que o compunham, uma forma pura do tempo.

Murilo Corrêa, em Nietzsche, Bergson, Deleuze, chama-o “tempo fora dos gonzos, enlouquecido”. Deleuze invoca Borges: “labirinto em linha reta que é invisível e incessante”. Diferentemente de Kant, em que o transcendental é o mais depurado e abstrato, em Deleuze a culminância do formalismo é o que de mais pleno pode existir. Assim como o eterno retorno, a terceira síntese não pode ser simplesmente formulada. Tem de ser vivida, atravessada pelo sensível, é uma experiência vívida e instauradora, e está associada à criação de ser. É, portanto, política — em seu estado mais constituinte, já que para Deleuze e Guattari o ser é a matéria viva da política.

Em O teatro da produção, Toscano explica que, ao chegar ao aion, a investigação pelas condições de existência do empirismo transcendental de Deleuze se transfigura, muda de natureza. Deixa de ser uma investigação e se torna, propriamente, um ethos ético-estético. Torna-se um conceito, ajambrado principalmente com as peças do eterno retorno, da duração e da essentia actuosa spinozista. A síntese passiva do futuro se realiza enquanto irrelato – não se relaciona com a virtualização nem com a atualização, não depende de nenhuma lógica relacional, de Eu ou do Outro. O irrelato da produtividade pura propicia, para Toscano, a individuação anômala do ser, que abre o sistema intensivo do atual/virtual à inovação, e que portanto o torna operável dentro de uma filosofia da produção.

Toscano diferencia individuação e atualização, que se articulam na gênese do real, no capítulo final de O teatro da produção. A individuação passa por um momento produtivo, uma anomalia determinada pela terceira síntese, que é justamente a atuação da práxis constituinte entre os circuitos do virtual e do atual. É a possibilidade de renovar não apenas a atualidade, mas o próprio campo do virtual, uma vez que a experiência do aion se dá na borda do vivenciável, na borda do próprio tempo cronológico.

O antídoto à insuficiência do virtual, em consequência, consiste em assumir a diferencial infinitamente complexa do futuro. O que Toscano chama de “individuação anômala”, em ressonância com a “anomalia selvagem” de Antonio Negri, e que configura a terceira imagem do filósofo, de Cleber Lambert, aquela afeita à experiência da instauração. Em tudo isso, Spinoza ressoa por toda parte, celebrando o divórcio alegre entre Deleuze e Bergson.

Mas o irrelato é, também, o antídoto contra toda tentativa de elevar a relação (a relacionalidade enquanto tal) a princípio ontológico, provocando a restauração da ontologia segundo um novo absoluto (a relação). A todo relacionismo ontológico que se pretenda a metafísica mais aplaudida da semana passada. Como explica Cleber, não passa de restauração ontológica que, à metafísica do Uno estático e identitário, substitui com a metafísica do Múltiplo movente e diferencial, agora sob a espécie da relação. Com isso, não havendo anomalia selvagem no sistema, o cansaço obsedante no Outro encerra a práxis numa especulação impotente, lhe faltando, exatamente, a política. Fecha-se a quarta parede da alteridade, e caímos de novo numa peça sartriana.

Portanto, uma nova geofilosofia para a criação política, potente o suficiente para fazer uma máquina de guerra contra o projeto colonialista, passa necessariamente por outro sentido de futuro, liberto de quaisquer princípios absolutizantes, sejam eles a título de relação, alteridade ou fascinação pela alteridade. Esta uma primeira conclusão.

It´s capitalism, stupid


Como não ver, a partir do movimento conceitual de Cleber, na passagem da metafísica do uno, estática e parmenidiana à metafísica do movente, fluxo e heraclitiana, a passagem do capitalismo de estado e disciplina ao capitalismo de empresa e controle? O descentramento do Sujeito na virada da transcendência vertical à “transcendência horizontalizada”, como a passagem do fordismo de sociedade de fábrica ao pós-fordismo da autorregulação da fábrica social?

A “grande transformação” que conduz da modernidade à pós-modernidade do capitalismo? Como não ver na celebração dos fluxos e redes, da existência suposta de um caráter progressista do capitalismo, ainda outra especulação impotente da idade do cinismo, cuja ausência de política conduz às opiniões correntes dos muitos adoradores do pós e do pós-pós, deleuzoides ou não? Como não ver o relacionismo sem poder constituinte como renúncia do novo mundo, descrença na existência daqueles que ainda acreditam no mundo?

Trazer a produção ao cerne do problema da instauração significa dramatizar o conceito de trabalho. Fazer do Uno o Dois: separar trabalho morto do vivo, tecnologia de controle de tecnologia de luta, poder constituído de constituinte? Por que reduzir o conceito de produção a um hegelianismo crescentista, numa mescla inexplicável de La Mettrie e Kautsky? É Marx e não Hegel; Marx e não Feuerbach ou Bruno Bauer; é Marx novamente. Separar o que é do capitalismo, enquanto sistema de antiprodução baseado no trabalho morto, daquilo que lhe excede não apenas intensiva e extensivamente, mas de modo constituinte, uma força prometeica de ser e do novo?

A filosofia está em coalizão com forças revolucionárias. A experiência instauradora tem um rendimento maquínico, aquele que Marx antevia nos Grundrisse e que Deleuze e Guattari desenvolveram no Anti-Édipo e em Mil Platôs. Sem terceira síntese, o Mesmo não se liberta.

O bárbaro tecnicizado de Cleber Lambert não é ainda-outro retorno aos povos primitivos contra-exotizados, suposta última reserva cosmogônica de salvação para a última transcendência. Gaia? a Molécula de Deus? o Grande Moloch do poema de Ginsberg?

O bárbaro tecnicizado de Cleber e Oswald é o maquínico subdesenvolvido, engenho político-filosófico de instauração, surrealismo e comunismo. É esta a antropofagia sem fascinação nem messianismo. Os conceitos passam pelas revoluções e as revoluções pelos conceitos. É o engendramento das coisas coincidente imediatamente com os modos de existência que implicam esse mesmo engendramento, como no Manifesto comunista.

A prova dos nove está em suscitar a imanência que nos leva a criar e lutar. Ainda outra vez, com alegria.
 


NOTA

Este texto é resenha ampliada da tese de doutoramento de Cleber Lambert que, sem exageros, é uma experiência instauradora. 

LAMBERT, Cleber. Deleuze e Bergson. Tensão, esforço e fadiga na instauração filosófica. Tese. São Carlos/Toulouse, 2013.

Disponível no arquivo pessoal do autor em https://www.academia.edu/7173493/Deleuze_e_Bergson._Tens%C3%A3o_esfor%C3%A7o_e_fadiga_na_instaura%C3%A7%C3%A3o_filos%C3%B3fica

Fonte: Quadrado dos Loucos

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